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Não cumprimento do gasto mínimo no ensino.

Agenda 18/06/2022 às 10:30

A Emenda 119 afasta responsabilidades dos que não aplicaram, entre 2020 e 2021, os 25% do ensino.

Tal como acontece desde 1934, a atual Constituição estabelece um mínimo de despesa no ensino, incidente sobre a receita que, de longe, predomina na arrecadação pública: a proveniente de impostos, quer os diretamente coletados, quer os transferidos por outros níveis de governo.

Estados e municípios devem, todo ano, aplicar 25% daquela receita na educação básica (art. 212, CF); o Estado no ensino médio e fundamental; o Município na educação infantil e no ensino fundamental (art. 211, § 2º e 3º, da CF).

Além dos 25% de impostos, os governos subnacionais precisam utilizar todo o Fundo da Educação Básica (Fundeb) no próprio ano da arrecadação [1], e à conta desse fundo, 70% remunerarão os profissionais da educação básica. De ilustrar que os 25% são compostos, em boa parcela, pelo próprio Fundeb.

Nos anos de maior intensidade da pandemia Covid (2020 e 2021), as aulas presenciais foram interrompidas em grande parte do biênio, o que reduziu gastos com material didático-pedagógico, transporte de alunos, limpeza e vigilância de escolas, ajuda financeira a creches do 3º setor, entre outros. Além disso, a Lei Complementar 173/2020 suspendeu, entre 1º de março e 31 de dezembro de 2020, as contribuições patronais ao regime próprio de previdência (RPPS), represando, portanto, despesa com razoável peso no orçamento educacional.

Tendo em vista essa redução no gasto em manutenção e desenvolvimento do ensino, algumas prefeituras não realizaram, em 2020/2021, o mínimo constitucional do ensino, os já mencionados 25% de impostos, próprios e transferidos.

Vai daí que as entidades municipalistas pressionaram deputados federais e senadores, resultando tal esforço na anistia, ainda que provisória, da Emenda Constitucional 119, de 27.04.2022, cujo trecho principal transcrevemos:

Art. 1º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 119:

Art. 119. Em decorrência do estado de calamidade pública provocado pela pandemia da Covid-19, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os agentes públicos desses entes federados não poderão ser responsabilizados administrativa, civil ou criminalmente pelo descumprimento, exclusivamente nos exercícios financeiros de 2020 e 2021, do disposto no caput do art. 212 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Para efeitos do disposto no caput deste artigo, o ente deverá complementar na aplicação da manutenção e desenvolvimento do ensino, até o exercício financeiro de 2023, a diferença a menor entre o valor aplicado, conforme informação registrada no sistema integrado de planejamento e orçamento, e o valor mínimo exigível constitucionalmente para os exercícios de 2020 e 2021. 

De notar que a Emenda 119 afasta responsabilidades dos que não aplicaram, entre 2020 e 2021, os 25% do ensino, mas a diferença será reposta no decorrer dos anos 2022 e 2023, ou caso queira o gestor, compensada toda ela no exercício de 2023. Aliás, esse afastamento punitivo beneficia tanto o ente estatal, quanto seus dirigentes políticos (governador ou prefeito).

Observe-se, contudo, que a tal reposição não será corrigida pela inflação do período, o que beneficia o município faltante em, ao menos, 15%, nisso considerando a variação de preços havida no biênio 2020/2021 (IPCA/IBGE).

A propósito, a não aplicação do mínimo constitucional do ensino (25%) traz os seguintes embaraços:

Além do mais, referida transgressão acarreta, quase sempre, parecer desfavorável do tribunal de contas, se bem que, à vista das atuais modificações na Lei da Improbidade Administrativa[2], aquele juízo não mais deve tornar inelegível o agente político, seja governador ou prefeito, para tal considerando que o insuficiente gasto educacional, geralmente, nada tem a ver com fraudes, desvios ou enriquecimento ilícito e, portanto, necessidade de ressarcimento do erário.

De fato e conforme sobredita alteração na Lei da Improbidade, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP), lançou, em 17.05.2022, a Deliberação SEI nº 13.122/2021-07[3], comunicando que a lista dos inelegíveis passa a ser integrada apenas pelos condenados a devolver valores aos cofres públicos (imputação de débito); não mais pelos que sofreram juízo negativo, mas sem necessidade de ressarcir o erário (sem imputação de débito), ainda que multados na forma regimental.

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É o que se vê no art. 2º daquela Deliberação:

Artigo 2º - Integrarão a lista dos inelegíveis aqueles que tenham contas julgadas irregulares com imputação de débito.

Parágrafo único – Não integrarão a lista dos inelegíveis:

1 - aqueles que tiverem suas contas apreciadas mediante emissão de parecer de natureza opinativa;

2 - aqueles que tenham suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito, ainda que tenham sido sancionados com quaisquer multas.

De ilustrar que muitos especialistas desaprovam a Emenda Constitucional 119, argumentando que, na paralisação letiva, os entes estatais poderiam compensar o menor gasto habitual com obras, reformas e outras melhorias nas instalações escolares, além de adquirir equipamentos eletrônicos para os alunos.

Nessa linha, o senador Flávio Arns assim se pronunciou:

“não se pode admitir como razoável a redução generalizada de investimentos na educação púbica durante a Pandemia. Primeiramente, há muitas necessidades represadas que precisam de imediata atenção, como, por exemplo, reforma e adaptação da infraestrutura das escolas. Em 2020, identificou-se que 4.325 escolas sequer possuem banheiro, 8.674 não têm água potável e 35.879 não possuem coleta de esgoto. (...) Os alunos precisam de acesso a equipamentos eletrônicos e internet para lidar com esse novo contexto de ensino, mas, infelizmente, os dados revelam que cerca de 40% dos estudantes da rede pública não possuem computador ou tablet em casa e 4,1 milhões não possuem sequer acesso à internet”.

E, em São Paulo - o estado mais rico da Federação - o respectivo tribunal de contas, mediante auditoria realizada em 485 unidades de ensino (abril de 2022) [4], verificou muitas irregularidades; entre as quais destacamos:

Aqui, de salientar que a Emenda 119 só isenta o não atingimento dos 25% constitucionais, mas, não, a falta de aplicação total do Fundeb (100%) e, dentro dele, a parcela vinculada aos profissionais da educação (70%), quer isso dizer, lacunas na despesa Fundeb, por si só, continuam penalizando os dirigentes estatais, mesmo nos excepcionais anos pandêmicos (2020/2021).

Nesse contexto, vale atentar que o mínimo constitucional de 25% é, integrado, em substancial fração, pelo próprio Fundeb, pois este abarca 20% de robustos itens da arrecadação de impostos (FPM, FPE, IPI/Exportação, ICMS, IPVA).

Em outras palavras, o Fundeb compõe, majoritariamente, vitais rubricas no financiamento educacional, sobretudo nos estados e municípios que perdem dinheiro para aquele fundo; isso, como se sabe, em prol de outros governos com maior rede própria de educação básica; estes, de sua parte, devem aplicar, anualmente, os constitucionais 25% e mais o ganho obtido junto ao Fundeb, o chamado “plus”. Prova disso, alguns tribunais de contas emitem juízo negativo mesmo quando cumprido os 25%, sem que tenha o ente despendido todo o Fundeb arrecadado no exercício (não aplicação do “plus”).

Assim sendo, a Administração, num caso extremo, precisará compensar, até 2023, uma aplicação menor que os 25% constitucionais, apesar de, por menor aplicação do Fundeb, o dirigente estatal receber parecer desfavorável no período abrandado pela Emenda 119: os anos 2020 e 2021.

Além disso, a Emenda 119 traz uma polêmica, que se pode sintetizar na seguinte indagação:

A nosso ver, serão apenas beneficiadas as municipalidades que, no sistema nacional específico, o SIOPE[5], registraram percentual menor que 25%, seja em 2020 ou 2021, seja em ambos os exercícios e, não, as que, por ajuste redutor da corte de contas, deixaram de satisfazer àquele mínimo constitucional.

Pensamos dessa forma, porque trecho da Emenda 119, assim dispõe: “o ente deverá complementar na aplicação da manutenção e desenvolvimento do ensino, até o exercício financeiro de 2023, a diferença a menor entre o valor aplicado, conforme informação registrada no sistema integrado de planejamento e orçamento, e o valor mínimo exigível constitucionalmente para os exercícios de 2020 e 2021 (parágrafo único, art. 119, do ADCT)”.

Então, o ordenamento deixa claro que, regularmente anotados no sistema nacional de planejamento e orçamento da Educação (SIOPE), somente percentuais inferiores a 25% credenciam à desresponsabilização prevista na Emenda 119; nada mais que isso.

Tanto é assim, que a Confederação Nacional de Municípios (CNM) vem demonstrando preocupação porque 1.100 municípios não conseguiram registrar, no SIOPE, receitas e despesas educacionais do último bimestre de 2021, podendo assim perder os benefícios da Emenda 119:

O diretor de Gestão de Fundos e Benefícios do FNDE, Gustavo Lopes de Souza, ressaltou que a preocupação sobre a transmissão de dados no SIOPE não é apenas da CNM, como também do FNDE. “Nossa equipe interna tem adotado medidas junto com a Secretaria do Tesouro Nacional para solucionar as questões e problemas, principalmente em face da Emenda Constitucional 119/2022, que vai afastar a aplicação de qualquer penalidade, sanção, ou restrições aos Estados e Municípios e seus agentes públicos por eventual descumprimento do ano de 2020 e do exercício de 2021”, disse.

O SIOPE é uma ferramenta eletrônica disponibilizada para promover a coleta de informações referentes aos orçamentos da educação. A grande preocupação da CNM acontece justamente porque o prazo de transmissão e validação dos dados do 6º bimestre de 2021 encerrou no dia 30 de janeiro e cerca de 1.100 (20%) Municípios ainda não conseguiram finalizar o envio dos dados [6]

De outra parte, glosas e impugnações dos tribunais de contas evidenciam erro ou dolo do gestor e, não, dificuldade conjuntural para atingir a despesa mínima no ensino; vai daí que tais falhas não poderiam ser revertidas pela legislação excepcional em debate.

Realmente, despesas com festas cívicas, pagamento de professores em desvio de função, compra de gêneros alimentícios para a merenda escolar, subvenções a entidades culturais, gastos de pavimentação e iluminação em frente a prédio escolar, manutenção da biblioteca pública, tudo isso é, sabidamente, gasto impróprio nos 25% do ensino (art. 71, da LDB) e, se assim foi feito, o gestor não procedeu por falta de receita ou necessidade de mais despesa no então emergencial setor da saúde, não podendo, dessa forma, contar com os benefícios da Emenda 119.

A isso se acresça o fato de que alguns tribunais de contas emitem seu parecer opinativo em até dois anos após o encerramento do exercício auditado. Nesse contexto e em caso limítrofe, o município só saberia no final de 2023, se atingiu, ou não, os 25% do ano de 2021, daí inexistindo tempo hábil para a reposição exigida na Emenda Constitucional 119/2020.

Então, não é demais reiterar: o adiamento da Emenda 119 abrange, somente, os que anotaram, no sistema nacional de registro do orçamento educacional (SIOPE), percentual menor que os 25% da Constituição (art. 212) e, não, os que transgrediram a regra após os ajustes redutores dos tribunais de contas, se bem que aqui já se afigura certa dificuldade, pois a metodologia de cálculo do SIOPE nem sempre coincide com a apuração simultânea, anterior à auditoria final, dos sistemas eletrônicos das cortes de contas.

De fato, os sistemas eletrônicos dos tribunais de contas podem ter registrado, nos anos 2020 e 2021, cumprimento dos 25%, enquanto que, em rumo diferente, o sistema nacional (SIOPE) apura percentual inferior àquele mínimo.

Nesse cenário, uma das divergências tem a ver com os 10% do Fundeb, que se pode utilizar nos quatro primeiros meses do ano seguinte (art. 25, § 3º, Lei 14.113/2020). Com efeito, alguns tribunais de contas entendem que estado ou município pode se valer daqueles 10%, mesmo não tendo inteirado, até 31 de dezembro, os 25% do ensino. Já, o SIOPE interpreta diferente, pois o adiamento dos 10% só caberia para os entes que, até o fim do exercício de competência, garantiram o mínimo constitucional do ensino (25%).

De toda forma, os municípios que, no SIOPE 2020-2021, anotaram percentual abaixo dos 25%, devem, a partir de 2022, providenciar a reposição em pauta, abrindo, se for o caso, créditos suplementares ou especiais, sendo que, na elaboração do orçamento 2023, melhor haverá oportunidade de programar a despesa faltante naquele biênio, lembrando que a Emenda 119 não faz distinção temporal, quer isso dizer, o valor pode ser todo reposto em 2023.


[1] Ainda que 10% (dez por cento) possam ser gastos no 1º quadrimestre do ano seguinte (art. 25, § 3º, da Lei 14.113/2020).

[2] Lei Federa nº 14.230, de 2021

[3] https://www.tce.sp.gov.br/sites/default/files/legislacao/DELIBERAÇÃO%20TCESP%20-%20Republicacao.pdf

[4] https://www.tce.sp.gov.br/6524-fiscalizacao-tribunal-348-municipios-encontra-problemas-rede-publica-ensino

[5] SIOPE - Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (SIOPE), mantido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

[6] https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/em-reuniao-cnm-e-fnde-tratam-das-dificuldades-de-transmissao-de-dados-no-siope

Sobre o autor
Flavio Corrêa de Toledo Junior

Professor de orçamento público e responsabilidade fiscal. Autor de livros e artigos técnicos. Ex-Assessor Técnico do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOLEDO JUNIOR, Flavio Corrêa. Não cumprimento do gasto mínimo no ensino.: As controvérsias e dificuldades da Emenda Constitucional 119/2022. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6926, 18 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98663. Acesso em: 23 dez. 2024.

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