PARECER JURIDICO
Consulente: Associação Comercial e Empresarial de São João da Boa Vista - ACE.
Assunto: Solicitação de parecer a respeito da possibilidade de reabertura do comércio local por via judicial.
Pareceristas: R. L. S.1; E.C. F. F.2;
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MEDIDAS DE CONTENÇÃO AO CORONAVÍRUS VS. LIVRE INICIATIVA. PROPORCIONALIDADE. “PRECEDENTE” DE RIBEIRÃO PRETO INAPLICÁVEL À LUZ DA TEORIA DOS PRECEDENTES. ESTADO DE DEFESA. DISPENSABILIDADE. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS DECORRENTE DO REGIME DEMOCRÁTICO. NECESSIDADE DE PROVA ROBUSTA DE ERROS EM SUA MOTIVAÇÃO. INEXISTÊNCIA. TENDÊNCIA DE DEFERÊNCIA AO ADMINISTRADOR PELO JUDICIÁRIO EM CASOS DE GRANDE COMPLEXIDADE TÉCNICA POR RISCO DE VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO DOS PODERES. COGNOSCIBILIDADE JUDICIAL LIMITADA DO MÉRITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO JUDICIAL COM BAIXÍSSIMA PROBABILIDADE DE ÊXITO.
RELATÓRIO
A presente consulta nos foi enviada pela Associação Comercial e Empresarial de São João da Boa Vista - ACE, solicitando parecer técnico-jurídico quanto à possibilidade, pela via judicial, de reabertura do comércio local.
Juntamente com o pedido, nos foi encaminhada decisão proferida nos autos dos HC nº 1500681-23.2021.8.26.0530, da Comarca de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, proferida pelo E. Juiz de Direito Giovani Augusto Serra Azul Guimarães, plantonista na ocasião.
Diante disto, a Consulente enumera os quesitos submetidos à nossa consideração para que seja elaborado o parecer. Tais são:
1 - É hígido de ilegalidade/inconstitucionalidade o Decreto municipal que determinou, entre outras medidas sanitárias, o fechamento do comércio tido por não essencial?
2 - Existe respaldo jurídico constitucional para que, através de procedimento judicial, seja possível a reabertura do comércio sanjoanense? Qual seria a probabilidade de êxito?
3-Poderia a decisão prolatada nos autos do HC nº 1500681-23.2021.8.26.0530, adrede mencionada, ser considerada como precedente apto a viabilizar tal pedido?
A resposta sintética a esses quesitos demanda a análise objetiva e completa dos seguintes fundamentos:
I - Em uma sociedade plural e complexa como a nossa, é comum - e até corriqueira - a restrição das liberdades e direitos fundamentais em prol de outros interesses - coletivos ou não - IGUALMENTE relevantes em razão de impossibilidades fáticas ou jurídicas de coexistência de ambos os interesses, desde que respeitadas certas premissas legais;
II - À luz da idéia de federalismo cooperativo, incorporado pelo Brasil, todos os entes políticos (União, Estados e Municípios) podem tomar em conjunto, sem prevalência da determinação de um ou de outro, medidas que visem à proteção da saúde, desde que respaldadas em estudos científicos isentos, e que a medida seja necessária, proporcional e razoável para a finalidade a que se destina;
III - A imposição de medidas restritivas ao comércio, por intermédio de decreto elaborado pelo Poder Executivo, encontra respaldo na doutrina e jurisprudência largamente majoritária, bem como na teoria da soberania popular;
IV - Atos administrativos como o aqui questionado, em regra, possuem alto grau de presunção de legitimidade e de discricionariedade (em regra, não apreciada pelo Poder Judiciário, por receio de rompimento da separação dos poderes), decorrente da soberania popular outorgada aos seus representantes, de forma que, para sua invalidação pelo Poder Judiciário, é necessária robusta prova de ineficácia da medida (desconhecidas, até então), dado que, em se tratando de assuntos técnicos, os juízes tendem a agir em deferência ao administrador, por aplicação do princípio da aplicação da precaução em matéria sanitária;
V - Compete precipuamente aos municípios editarem normas sobre funcionamento do comércio, por ser assunto de interesse eminentemente local, nos termos da Súmula Vinculante nº 38 da CF/88;
VI - Aplicando-se a melhor doutrina para o caso (Robert Alexy e Ronald Dworkin), as restrições fundamentais se mostram constitucionalmente legítimas, tratando-se de um desacordo moral razoável, onde, em regra, há maior deferência aos poderes representativos;
VII - A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Supremo Tribunal Federal, salvo raríssimas exceções por vezes revertidas, tem se posicionado no sentido da legalidade das medidas de restrição;
VIII - O precedente de Ribeirão Preto mencionado pela Consulente se trata de situação diametralmente oposta à pretendida, de forma que exsurge a sua não aplicação pela técnica do distinguishing;
Eis a síntese do necessário. Passamos a opinar.
FUNDAMENTAÇÃO
I - INTRÓITO: OS ÔNUS DE SE VIVER EM UMA SOCIEDADE PLURAL E COMPLEXA
É fato que vivemos em uma sociedade constitucional, complexa e plural, com a tolerância ao pluralismo político prestigiado como fundamento da república (Art. 1º, Inc. V da CF/88).
Isso implica em dizer que, na prática, os valores que compartilhamos (traduzidos na ordem constitucional como direitos fundamentais) não possuem prevalência de um sobre o outro, devendo ser harmonizados/compatibilizados. Contudo, não sendo possível a harmonização/compatibilização destes direitos, de forma racional, passa-se à aplicação da técnica de restrição de um dos direitos, na mesma medida em que se promove o outro, tudo sempre de modo justificado e revisado, conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas de cada conflito.
Na lição de Nelson Rosenvald, após profunda percussão histórico-filosófica3:
O pensador Isaiah Berlin expõe a sua teoria das verdades contraditórias, explicando que nem todos os valores são compatíveis, sendo impossível estabelecer uma filosofia única em uma suposta sociedade perfeita. Talvez, nada expresse melhor essa contradição do que o lema rítmico da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Esses ideais se distanciam a partir do momento em que passam da teoria à prática, pois ao invés de se apoiarem uns aos outros, repelem-se. Os próprios revolucionários franceses perceberam que a liberdade é uma fonte de desigualdades e, em um país em que cidadãos gozem de total ou muito ampla capacidade de iniciativa e governo de seus atos surgiriam abissais diferenças materiais. Por isso, para estabelecer a igualdade não haveria outro remédio senão sacrificar a liberdade, o que é igualmente inadmissível. Antes de Robert Alexy e Ronald Dworkin, Berlin já alertava para o fato de que a existência de verdades contraditórias não significa que devamos nos declarar impotentes, porém que devamos valorizar a liberdade de escolha, a responsabilidade individual e viver constantemente alerta, pondo à prova as ideias, as leis os valores que regem o nosso mundo, confrontando-os entre si, ponderando o impacto que eles causam nas nossas vidas, escolhendo uns e rejeitando outros, em transações difíceis, pois não existe uma solução para os nosso problemas, mas sim muitas, e todas elas precárias. Esta é a razão irrefutável para se compreender que a tolerância e o pluralismo são necessidades práticas e não imperativas. - grifo nosso
Em palavras mais simples, a prática demonstra que valores igualmente importantes - como o direito à saúde e à vida em razão da pandemia e a liberdade econômica - por vezes se mostram incompatíveis, seja por impossibilidade fática ou jurídica, não sendo cabível eleger um em detrimento do outro de forma individualista, sob pena de se incorrer nas preferências do intérprete e não dos da sociedade, em uma indisfarçável arbitrariedade, incompatível com a idéia de um Estado sob o pálio da lei.
Muito agradaria e facilitaria um mundo em que os valores relevantes não se choquem na prática, infelizmente não é esse mundo que vivemos. A ponderação não é um mandamento meramente teórico, é uma necessidade prática.
Como bem afirma Robert Alexy, ao revés das normas que são aplicadas na regra do tudo ou nada (normas-regra), princípios são cumpridos conforme as possibilidades jurídicas e fáticas, ou seja, conforme a possibilidade que, em face de outros princípios igualmente (sem hierarquia) devem ser protegidos. Nas palavras do jurista alemão4, “Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas.”
Exemplificando. Não há como negar que em uma prisão pelo cometimento de um crime há uma violação à liberdade de ir e vir. Não se cogita alegar tal assertiva, pois se sabe que, à luz de outros interesses relevantes (no caso, a segurança pública), tal medida é “necessária” e “adequada” para a finalidade a que se destina, mostrando-se “proporcional” à responsabilidade pelo uso de uma liberdade.
Outro exemplo é as limitações de ocupação de eventos para conter trágicos eventos como o notório caso “Boate Kiss”, pois a liberdade de ir e vir também está limitada, não necessariamente “violada”.
Ora, a rigor da verdade, nem mesmo a teoria liberal, muito prestigiada nos dias atuais, é apta a dar guarida a uma visão absoluta de liberdade, segundo a qual não existiria qualquer restrição aos direitos libertários.
Data venia, nem mesmo em John Stuart Mill é possível se encontrar base filosófica para uma liberdade desmedida, pois em sua clássica obra “On Liberty”5, o respeitável autor apresenta o princípio do dano, segundo o qual o “único propósito pelo qual o poder pode ser exercido com razão sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos a outros".
Nos termos do Art. 186 do Código Civil - cláusula geral de ilicitude - aferido o dano, a ilicitude surge como sua consequência. Transcreve-se o dispositivo: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Em outras palavras, o mero potencial de causar ou facilitar o dano a terceiros é medida legal autorizante para a restrição da liberdade.
Até porque, com base em outros ensinamentos liberais, no caso do francês Jean Paul Sartre6, “Não há nada que possa eximir o homem da sua condição de ser livre e” ... No entanto, “consequentemente, da sua condição de responsabilidade diante de seus atos.”
Ora, não existe discussão de liberdade sem o seu consectário inafastável, a responsabilidade, que certamente pode ocorrer, em caso de não cumprimento de legítimas restrições a liberdades.
Assim, por vezes há impossibilidade jurídica do exercício de ambos os direitos conjunta e simultaneamente, restringindo um em prol do outro. Sobre a impossibilidade fática, exemplificamos com a liberdade de expressão e a honra; se não admitíssemos certo grau de responsabilidade pelo que as pessoas se expressam, não existiria proteção à honra de ninguém.
Por essa razão é que até esta importante liberdade é limitada, não possuindo prevalência sobre qualquer outro direito7, ao menos não sem ser considerados os outros direitos em conflito.
Portanto, uma premissa indispensável deve ser estabelecida: A mera restrição a garantias fundamentais, por si só, nunca leva a uma ilegalidade ou inconstitucionalidade. Isto se dá porque direitos fundamentais não são e não poderiam ser absolutos. Como bem justifica Flávio Martins8:
Como vimos acima, quando tratamos da relatividade dos direitos fundamentais, os direitos não são absolutos, mas relativos. Considerar um direito como sendo absoluto é aceitar dois “efeitos colaterais” igualmente graves: a) sempre que houver um outro direito colidindo com esse direito tido como absoluto, será ele aprioristicamente descartado, desprezado, violado; b) se um direito é absoluto, provavelmente seus titulares abusaram de seu exercício (por exemplo, considerada absoluta a presunção de inocência, permitia que o réu condenado fizesse dezenas de recursos com o único objetivo de procrastinar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória). A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, depois de trazer um rol essencial de direitos (vida, liberdade, igualdade, presunção de inocência, nacionalidade etc.) afirma: “no exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática” (art. 29).
Pensar o contrário, é equiparar a norma-princípio com a norma-regra, por que induz a uma aplicação na regra do tudo ou nada, o que é impossível para questões principiológicas e fluidas, como os direitos fundamentais, a não ser que desprezemos inúmeros valores constitucionais no processo, em uma afronta a força normativa de boa parte carta magna.
Quando se sobressai um direito fundamental em detrimento a outro, não se nega a vigência do dispositivo, nem mesmo sua importância, apenas se reconhece que não é possível o cumprimento integral de dado direito fundamental, por razões alheias à vontade de qualquer um.
Nas palavras do STJ, em precedente paradigmático9:
(...) 4. O princípio da legalidade convive com os cânones da segurança jurídica e do interesse público, por isso que a eventual colidência de princípios não implica dizer que um deles restará anulado pelo outro, mas, ao revés, que um deles será privilegiado em detrimento do outro, à luz das especificidades do caso concreto, mantendo-se, ambos, íntegros em sua validade
Por sua vez, toda limitação igualmente possui limites (“limites dos limites”), devendo ser preservado o núcleo mínimo de todos os direitos, sempre conforme as possibilidades existentes em cada conflito10.
Na lição de Eduardo dos Santos11, deve-se respeitar o limite formal ( estrita legalidade) , bem como os limites materiais (os limites não podem retroceder, deve-se respeitar o núcleo mínimo do direito fundamental restringido, as limitações devem ser gerais e abstratas e deve-se cumprir os requisitos da proporcionalidade).
Isto se dá em razão de que somente na prática concreta é que se pode verificar como um direito pode se comportar melhor em face do outro, buscando-se sempre que possível a sua concordância prática (diretriz da hermenêutica constitucional) de ambos.
As limitações devem ser aferidas por técnicas jurídicas consolidadas, como a máxima da proporcionalidade, criada por Robert Alexy, que, nas suas palavras, asseverou12:
Essa conexão não poderia ser mais estreita: a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade, e essa implica aquela. Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcionalidade, com suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que proporcionalidade é deduzível dessa natureza.
Sobre a ponderação em sentido estrito, ela se subdivide em outras três premissas, bem delineadas por Marcelo Novelino13:
A ponderação propriamente dita também é subdividida em três momentos: (III.a) definição da intensidade da intervenção; (III.b) análise da importância dos fundamentos justificadores da intervenção; e (III.c) realização da ponderação em sentido estrito. Nos termos da lei de ponderação, formulada por Robert Alexy (1998), "quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção''.
Entretanto, por apego à maior tecnicidade jurídica possível, entendemos por bem realçar algumas questões sobre o processo de ponderação, o qual será levado a cabo pelas críticas ao procedimento de Alexy, bem enumeradas por Bernardo Gonçalves14:
I - Preferências individuais devem ser afastadas, sob pena de se incorrer em arbítrio: A prevalência de um direito sobre o outro deve partir das densidades em que o contexto histórico dá para cada um, conforme bem observado pelo jurista Fausto Morais15
Assim, a realidade atual da pandemia, no momento da ponderação, é de suma relevância para verificarmos qual direito deve prevalecer, do mesmo modo, se a situação da pandemia for outra, o resultado fatalmente deve ser diferente.
II - Não se deve desconsiderar a integridade do direito (à luz da Teoria de Dworkin), ou seja, deve-se dar igual valor a cada direito fundamental, ainda que se tenha predisposição para um privilegiar um deles em detrimento de outro;
Em outras palavras, a ponderação deve seguir os ditames do particularismo moral, impondo-se um estado de vigília na ponderação, para que seu resultado não seja a confirmação da preferência de uma valor que o intérprete esteja mais familiarizado. Conforme já tivemos a honra de salientar no âmbito doutrinário16:
Sobre a diferença entre princípios e valores, leciona Streck, que se admitíssemos a sinonímia, estaremos (estamos) abrindo as comportas para que o intérprete escolhesse qual aplicar, de acordo com sua preferência, ignorando o filtro democrático do direito, realizado pelo legislador, que delimita e unifica os valores que compartilhamos.
Em outras palavras, não é dado ao intérprete dar o sentido que quiser ao princípio, ou escolher o que prefere, é preciso, à luz dos preceitos da hermenêutica, achar uma solução para os conflitos.
Feito esse intróito indispensável ao tema, passa-se à análise da jurisprudência nacional tocante à consulta a nós submetida.
II - SOBRE A (IN) VIABILIDADE DAS TESES AVENTADAS NA COMUNIDADE JURÍDICA
a) (In)existência de restrições desproporcionais ao direito fundamental à livre iniciativa (Art. 170 da CF/88) em razão do dever de proteção à saúde (Art. 196 da CF/88)
As restrições de funcionamento de estabelecimentos perpetradas no âmbito municipal e estadual revelam uma indisfarçável colisão entre o direito à saúde (Art. 196 e Art. 6 da CF/88) e, em última ratio, à vida, em face ao direito fundamental à livre iniciativa (Art. 170 da CF/88), ambos considerados “fundamentais”.
A saúde, por ser, invariavelmente, elemento necessário para fruição de qualquer liberdade. A livre iniciativa, por ser elemento indispensável de uma sociedade capitalista e por permitir o livre desenvolvimento profissional da pessoa humana empresária17, e da coletividade direta ou indiretamente beneficiada, conforme reconhece o Art. 49, parágrafo único do Código Civil Brasileiro18.
Em razão da relevância de ambos os direitos e sua colidência no cenário da pandemia da Covid-19, pondera-se com base nos ditames fixados anteriormente:
I - Adequação: No juízo de adequação, se questiona se a restrição à liberdade econômica - fechamento de comércio não essencial e etc - é apta a reduzir ou, ao menos, controlar a disseminação do vírus da Covid-19 e, por consequência, proteger o direito à saúde.
Pois bem. Deixando à margem, neste momento, questões de qualquer outra grei, a resposta prevalente na ciência é sim, em razão da inexistência de outras medidas mais eficazes para contenção da disseminação do vírus enquanto não efetivada a vacinação em massa.
Notícias de experts de renome quanto a isso não faltam19. Ainda que a questão seja controversa, notadamente por esvaziar o mercado econômico em detrimento de muitos empresários e trabalhadores que podem ficar sem o seu sustento, o Poder Judiciário não tem considerado esse argumento como suficiente para afastar as restrições sanitárias, conforme se vê do seguinte precedente:
20 AGRAVO DE INSTRUMENTO Tutela de urgência em caráter antecedente parcialmente deferida em primeiro grau - Pretensão de reforma - Possibilidade - Situação de calamidade pública e instituição do regime de quarentena decorrentes da pandemia ocasionada pelo novo coronavirus (Covid-19) - Decreto Municipal nº. 20.782/2020, que, inclusive, está em consonância com o Decreto Federal nº. 13.979/2020 e o Decreto Estadual nº. 64.879/2020 - Presença do fumus boni iuris e do periculum in mora a favor da agravante - Inteligência do art. 300, do NCPC - Decisão agravada reformada - Recurso provido. [...]
Por sua vez, o periculum in mora é evidente, em razão do risco iminente de contaminação e proliferação do COVID-19 com a manutenção do comércio aberto.
Até se poderia objetar no sentido de que a saúde é um direito de todo cidadão e um dever do Estado, não dos empresários, nos termos do Art. 196 da CF/8821, não sendo, em tese, razoável impor a eles o ônus decorrente da promoção da saúde.
Entretanto, tal objeção poderia ser contornada com a noção de deveres fundamentais. Na lição de Flávio Martins22“quando a Constituição prevê determinado direito fundamental, exige de outras pessoas o respeito àquele direito.”. Vale dizer, se é garantido o direito à saúde para todos, é imposto a todos, por consequência lógica, o dever de respeito a esta garantia, como, p. ex, com a colaboração no combate a pandemias.
II - Necessidade: Nesse ponto é preciso questionar se o fechamento total do comércio é a única medida apta para a contenção da disseminação do vírus.
Bem, é possível pensar em outras, como a limitação de ocupação, o uso obrigatório de máscaras de proteção, o fornecimento de álcool gel, até algumas outras mais restritivas à liberdade econômica, como a proibição de venda de bebidas alcoólicas no estabelecimento (que propicia aglomerações) e “toques de recolher”, ou ainda funcionamento somente pelo sistema de entrega (delivery) ou em regime “drive thru".
Invariavelmente, tais medidas são menos restritivas à livre iniciativa e poderiam ajudar igualmente no combate ao vírus. Talvez menos que o lockdown, mas com uma melhor compatibilização entres os direitos colidentes.
Tal conclusão poderia colocar em xeque a legitimidade das restrições, mas, por dever de ofício, não se pode furtar de uma circunstância relevante que usualmente é considerada pelo Poder Judiciário: o agravamento da pandemia e a ineficácia geral dessas medidas anteriormente já efetivadas, seja pela falta de fiscalização, seja pela ausência de cooperação da sociedade (adequação é um pressuposto, como vimos), ou ainda por tais medidas serem mais paliativas do que preventivas.
Na cidade de São João da Boa Vista, onde as taxas de ocupação no final de 2020 não estavam tão altas, hoje temos uma dura realidade (Conforme Boletim Oficial mais Recente - 19/03/202123).
Invariavelmente, tais dados seriam trazidos pela municipalidade em eventual ação cível e que dificilmente seriam ignorados pelo juiz, além da demonstração da evolução da pandemia e, com elas, das medidas restritivas.
A técnica da proporcionalidade, como visto, não dispensa a análise das circunstâncias do momento da ponderação (historicidade), de forma que, em um juízo de previsibilidade, é possível ver que se dará preferência às medidas mais restritivas pelos insucessos das medidas anteriores, bem como pela ocupação hospitalar atual. Tal juízo de tentativa de previsão é baseado principalmente no seguinte precedente, que reverteu decisão de primeira instância que havia considerado suficientes as medidas menos restritivas:
24Agravo de Instrumento interposto contra decisão que, em Mandado de Segurança, deferiu a tutela liminar, para que as impetrantes, ora agravadas, sejam autorizadas a funcionar, devendo observar todas as normas sanitárias municipais decretadas para evitar contaminação pelo novo Coronavírus. Atividades que não podem ser consideradas essenciais, para os fins da legislação emergencial editada em função do combate à pandemia. Necessidade de observância aos critérios e restrições estabelecidas no “Plano São Paulo”. Agravo de Instrumento provido, por maioria de votos, prejudicado o Agravo Interno.
Além do mais, a impossibilidade prática de constante fiscalização dessas restrições, bem como a ausência de responsabilidade individual, notórios hoje em dia, certamente serão considerados em eventuais decisões, para se justificar a necessidade de intervenções mais restritivas e mais fiscalizáveis.
III - Proporcionalidade em sentido estrito: Elemento mais complexo da ponderação e que, conforme visto, se subdivide em outros três pontos de análise. A integridade do direito e a historicidade dos direitos em jogo foram levados em consideração, ainda que em outras oportunidades já se tenha privilegiado a liberdade econômica.
a) Definição da intensidade da intervenção: A necessidade ou não da intervenção na liberdade econômica e seus limites foram analisados no item anterior, estando a comunidade científica, no momento, assinalando pela necessidade de uma intervenção maior, no caso, o lockdown;
b) Análise da importância dos fundamentos justificadores da intervenção: Os fundamentos da intervenção são humanitários, de relações internacionais, fortemente reforçados pela história brasileira de ser um país cooperativo e exemplo em crises sanitárias25.
O Supremo Tribunal Federal possui precedentes no sentido de que intervenções são justificáveis em prol da saúde pública, ainda que em detrimento quase que total de algumas liberdades (mesmo que usualmente mais protegidas), a exemplo: I - A vacinação compulsória é constitucional 26; II - É vedada a veiculação de propaganda oficial que possa comprometer a crise sanitária27, ainda que a manutenção do comércio; III -: Devem prevalecer as autorizações sanitárias, em regra28, dentre outros.
Ao revés, a liberdade econômica, em regra, possui grande relativização na jurisprudência brasileira, o que particularmente se espera que seja mudado em algum nível (ainda que mínimo) com a entrada em vigor da Lei nº 12.894/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Vide: I - Restrições de horário de funcionamento fundadas em interesses coletivos - onde a saúde certamente se encaixa -, não violam a livre iniciativa29, ordinariamente; II - Em regra, a liberdade econômica deve ser restringida, desde de que seja em razão de interesses coletivos relevantes30 (sendo difícil sustentar que esse não é o caso da saúde), dentre outros;
Isto não implica em dizer que a liberdade econômica, sempre é relativizada em prol d e algum interesse coletivo, no caso da vedação de serviços como o UBER, por exemplo, houve a prevalência da liberdade econômica31.
A ponderação se revela no caso a caso, que irá sobressair ou se terá uma concordância prática. Não se trata de um idealismo de ocasião, mas de uma ponderação conforme a realidade de cada caso, não conforme uma preferência ocasional imotivada.
c) Realização da ponderação em sentido estrito: Em suma, nesta fase, na lucidez de Renato Brasileiro de Lima32 “Entre os valores em conflito – o que demanda a adoção da medida restritiva e o que protege o direito individual a ser violado – deve preponderar o de maior relevância”.
Em cotejo à jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo apta a influenciar em terras sanjoanenses, é possível notar que, nas situações atuais, o direito à saúde tem prevalecido em detrimento de algumas liberdades:
33AGRAVO DE INSTRUMENTO Ação proposta pela agravante, pela qual requer a suspensão da eficácia do Decretos Estaduais de nº 64.881/20 e 64.946/20, permitindose a retomada da atividade laboral e econômica no Município de Pederneiras Tutela de urgência indeferida Manutenção Exame dos requisitos ensejadores da medida afetos ao juízo monocrático Decisão que não se revela ilegal ou tirada com abuso de poder Argumentos recursais, ainda que respeitáveis, não são suficientes para o acolhimento da medida, ante o risco de propagação da Covid-19. R. decisão mantida.
Em razão de tais ponderações, não se verifica ser mais benéfico o acolhimento da pretensão recursal, e nem se ouse afirmar que as razões da decisão não passam de meras conjecturas do Julgador, no tocante ao aumento de casos de pessoas infectadas se acolhido for o pedido da agravante, porquanto encontra embasado em opiniões de profissionais da área da saúde, amplamente divulgadas pela imprensa.
Outros precedentes da Corte de Justiça Bandeirante, que ora se resumem, em regra optam pela prevalência do direito à saúde: I - Vedação a manifestações pró abertura do comércio34; II - Estabelecimentos Estéticos, por não serem essenciais, não possuem autorização legal para funcionar, sendo eventuais autuações legítimas35; III - Academias não são atividades essenciais36; dentre outros;
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cúpula do Judiciário Bandeirante, em ponderação mais apurada, ainda que para caso criminal (mas cuja ratio decidendi é praticamente idêntica), entendeu pela prevalência da proteção à saúde37:
“HABEAS CORPUS COLETIVO PREVENTIVO. LOCKDOWN. i. Ausência de ameaça ao direito de locomoção dos pacientes a população do Estado de São Paulo , considerando-se a implementação do Plano São Paulo, que busca relativizar o isolamento social a fim de possibilitar a retomada das atividades econômicas. ii. Na hipótese de decretação do lockdown, ausência de direito a ser tutelado por esta via. Colisão entre direitos fundamentais. Prevalência do direito à saúde sobre a liberdade de locomoção.
[...]
E, como se sabe, as colisões entre direitos fundamentais devem ser resolvidas por meio do emprego da técnica da ponderação. No caso, analisando-se os direitos em jogo liberdade de locomoção e saúde à luz dos fatos, prepondera a necessidade de tutela ao segundo.” - grifamos
Nessa toada, mesmo após minuciosa pesquisa jurisprudencial nos órgãos judiciários aptos a influenciar Juízes Paulistas, não se encontra precedente a dar guarida à pretensão aventada.
No que toca à análise do cumprimento ou não dos pressupostos dos “limites dos limites”, didaticamente elencados por Na lição de Eduardo dos Santos38, pois deve-se respeitar o limite formal (estrita legalidade) , bem os limites materiais (os limites não podem retroceder, deve-se respeitar o núcleo mínimo do direito fundamental restringido, as limitações devem ser gerais e abstratas e deve-se cumprir os requisitos da proporcionalidade), temos que não há restrição demasiada no caso.
Isto porque sendo a restrição proporcional, nos termos supra, bem como não havendo imposições normativas retroativas, além de haver autorização legal para tanto (Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020), bem como sendo as normas gerais e abstratas, somente discriminando-se as atividades racionalmente e positivamente ( em essenciais e não, a luz da teoria da driscriminação positiva) e sendo respeitado o núcleo fundamental do direito, no caso com a não vedação a atividade econômica em geral, mas apenas com algumas imposições adaptações indispensáveis, a medida passa no teste alemão dos limites dos limites(“schranken-schranken”), de forma que exsurge a sua validade.
b) (Des)legitimidade dos decretos restritivos de direito e (In)existência de Subordinação Federal
Vivemos em um Estado Federal, o que necessariamente implica em dizer que não existe hierarquia entre os entes federados, sendo vedada qualquer ilação sobre subordinação de um em face do outro ( Art. 18 da CF/88).
A relação entre os Entes Políticos (União, Estados e Municípios) não é por subordinação, mas por coordenação. Nesse sentido Ingo Sarlet, Daniel Mitidiero, Luiz Guilherme Marinoni39 “E Dito de outro modo, o “federalismo cooperativo” busca compensar – ou pelo menos mitigar –, em prol da eficiência na consecução dos objetivos estatais,[...]
Tratando-se de saúde pública, a questão é ainda mais clara, pois se trata obrigação comum dos entes públicos, sem prevalência de qualquer um, por ser um regime solidário ( Art. 23, Inc. I da CF/88).
Não por outra razão, o Supremo Tribunal Federal já entendeu que, em se tratando de fornecimento de medicamentos, a obrigação é igualmente de todos os entes públicos40.
No que toca ao enfrentamento ao coronavírus, o Supremo Tribunal Federal assentou em controle concentrado de constitucionalidade, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341/DF41, que:
É grave do ponto de vista constitucional, quer sob o manto de competência exclusiva ou privativa, que sejam premiadas as inações do Governo Federal, impedindo que estados e municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os estados-membros e os municípios.
E tratando-se a ação de controle concentrado de constitucionalidade, os juízos primários são obrigados a seguir o entendimento da corte (Art. 927, Inc. I do CPC/15).
Portanto, não se conseguirá olvidar de que os Municípios têm o poder/dever concorrente, com os demais entes federativos, para atuar na saúde, inclusive legislando.
No mais, mister destacar, neste ponto, que cabe ao Município legislar sobre direito local, o que, nas palavras do mestre Hely Lopes Meirelles42:
o que define e caracteriza o 'interesse local', inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União," de modo que "tudo quanto repercutir direta e imediatamente na vida municipal é de interesse peculiar do Município, embora possa interessar também indireta e mediatamente ao Estado-membro e à União.
Dentre as várias competências compreendidas na esfera Legislativa do Município, sem dúvida estão aquelas que dizem respeito diretamente ao comércio, como a liberação de alvarás de licença de instalação e a imposição de horário de funcionamento, conforme, já há tempos, dispõe a Súmula nº 419 do Supremo Tribunal Federal: “Os Municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas”.
Assim, o Decreto Municipal em comento insere-se na órbita de competência Constitucional dos Municípios, inerente ao seu poder de polícia para o ordenamento da vida urbana.
Sobre essa questão, ainda vale lembrar o ensinamento do saudoso administrativista de Celso Antônio Bandeira de Mello, verbis43:
Para esse policiamento deve o Município indicar o proceder do administrado, regulamentar a fiscalização e cobrar as taxas estabelecidas por lei. Nessa regulamentação se inclui a fixação de horário do comércio em geral e das diversificações para certas atividades ou estabelecimentos, bem como o modo de apresentação das mercadorias, utilidades e serviços oferecidos ao público. Tal poder é inerente ao Município para a ordenação da vida urbana, nas suas exigências de segurança, higiene, sossego e bem-estar da coletividade. Por isso, a jurisprudência tem consagrado reiteradamente a validade de tal regulamentação e das respectivas sanções como legítima expressão do interesse local.- grifamos
Cabe ressaltar que o Decreto Municipal em questão - que proíbe o funcionamento do comércio tido por não essencial - reveste-se de respaldo legal, em razão do que dispõe o art. 30, I e II, da Constituição Federal.
Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal, já de muito tempo, possui entendimento consolidado no enunciado da súmula n° 645: “É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial".
Não bastassem inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal neste exato sentido, tal entendimento restou convertido e consolidado na Súmula Vinculante nº 38 daquele sodalício, a qual possui a mesma redação da Súmula 645/STF, valendo lembrar que esta espécie de Súmula vincula os demais órgãos do Poder Judiciário (Juízes, Tribunais e até mesmo as Turmas do próprio STF), assim como a administração pública direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e municipal e, até mesmo, o Poder Legislativo em sua atividade atípica (de administração), nos termos do Art. 109-A da CF/88.
Portanto, não se olvida que os Municípios têm o poder/dever concorrente, com os demais entes federativos, para atuar na saúde, inclusive legislando.
Noutro giro, salvo raríssimas exceções, é vedado ao Poder Executivo lançar mão de Decretos Autônomos, uma vez que o decreto (em regra) tem efeito regulamentar ou de execução, expedido com base no artigo 84, IV da CF, para fiel execução da lei, ou seja, o decreto detalha a lei, não podendo ir contra a lei ou além dela.
De forma sintética, em regra, ao Poder Executivo é vedado legislar através de decreto.
Entretanto, no caso específico do Decreto Municipal nº 6.743/2021 em comento – e quaisquer outros que disponham no mesmo sentido –, este encontra guarida apta a assegurar sua validade e legalidade ao regular Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, sancionada pelo atual Presidente da República.
Deste modo, o Decreto e os demais atos do Poder Público Municipal se enquadram em seu regular exercício do seu poder de polícia com amparo de natureza legal na Lei Federal nº 13.979/2020, a qual prevê um rol exemplificativo de medidas que poderão ser adotadas pelos órgãos públicos visando ao enfrentamento da situação emergencial decorrente da atual pandemia, dentre as quais se encontram várias de natureza restritiva de direitos e de liberdades individuais em prol da saúde pública.
Em suma, o decreto em comento é decorrente do poder de polícia, como bem descreve o mestre Hely Lopes Meirelles, sobre o tema específico da regulamentação do comércio local44:
Para esse policiamento deve o Município indicar o proceder do administrado, regulamentar a fiscalização e cobrar as taxas estabelecidas por lei. Nessa regulamentação se inclui a fixação de horário do comércio em geral e das diversificações para certas atividades ou estabelecimentos, bem como o modo de apresentação das mercadorias, utilidades e serviços oferecidos ao público. Tal poder é inerente ao Município para a ordenação da vida urbana, nas suas exigências de segurança, higiene, sossego e bem-estar da coletividade. Por isso, a jurisprudência tem consagrado reiteradamente a validade de tal regulamentação e das respectivas sanções como legítima expressão do interesse local. Nem se objete que a fixação de horário do comércio constitui regulamentação da atividade econômica, e por isso refoge da competência municipal.
Destarte, o Decreto Municipal nº 6.743/2021 encontra-se material e formalmente hígido, por exercer o cumprimento do poder regulamentar atribuído aos Poderes Executivos em todas as esferas da federação.
Em pese até se possa cogitar uma alegação de um eventual excesso do poder regulamentar, tal alegação poderia ser obstada, posto que a figura do “decreto autônomo” possui guarida no sistema jurídico constitucional.
Primeiramente, a noção de que somente por “lei” poderia se impor obrigações aos cidadãos, tem-se que o princípio da legalidade, referido no Art. 5º, Inc. I, dogmaticamente sempre foi entendido no sentido lato, ou seja, abrangendo todas as espécies de atos normativos.
Na lição de Flávio Martins45 “a expressão ‘lei’ do art. 5º, II, da Constituição Federal se refere à lei no sentido lato ou amplo. Assim, é possível que sejamos obrigados a fazer algo, por conta de uma medida provisória, por exemplo.”
No mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, no âmbito doutrinário 46, destacam que “O conceito de legalidade não faz referência a um tipo de norma específica, do ponto de vista estrutural, mas ao ordenamento jurídico em sentido material.”
Isso significa que, se levado a cabo o entendimento de que somente devemos observância à lei em sentido estrito, medidas provisórias presidenciais (Ex. as que regulamentam o auxílio emergencial), decretos (Ex. os regulamentadores do Estatuto do Desarmamento), também não deveriam ser cumpridos.
Sobre a importância do por que do respeito aos atos normativos em geral, esclarecem Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, no âmbito doutrinário 47
Tem relevância, nesse âmbito, o viés democrático do conceito de lei, como ato originado de um órgão de representação popular (expressão da vontade coletiva ou de uma volonté general) legitimado democraticamente. A lei, segundo esse conceito democrático, é entendida como expressão da autodeterminação cidadã e de autogoverno da sociedade.
O entendimento esposado, ao que parece, faz confundir conceitos distintos, o de legalidade e o de reserva legal. Nesse contexto, pondera Flávio Martins48 :
Não se pode confundir o princípio da legalidade com o princípio da reserva legal. Enquanto o princípio da legalidade, base do Estado de Direito, é o parâmetro norteador de todos os atos do poder público e das pessoas, a reserva legal consiste numa determinação constitucional de elaboração de uma lei em sentido estrito para disciplinar determinadas relações.
No que toca à inexistência de previsão constitucional para expedição de “decretos autônomos”, ou seja, independentemente de lei regulamentadora, bem fazem o escorço histórico Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:49
Desde a promulgação da Constituição de 1988 até a promulgação da EC 32/2001 consideramos inteiramente banido o decreto autônomo de nosso ordenamento. O texto constitucional somente aludia à expedição de decretos e regulamentos no seu art. 84, IV, explicitando que tais atos se prestam a assegurar a fiel execução da lei. Portanto, o constituinte originário só parece ter albergado a figura do regulamento de execução. Todavia, a partir da EC 32/2001, passou a existir autorização expressa na Constituição (art. 84, VI) [...]
No mesmo sentido, Maria Sylvia Di Pietro50: “No direito brasileiro, a Constituição de 1988 limitou consideravelmente o poder regulamentar, não deixando espaço para os regulamentos autônomos, a não ser a partir da Emenda Constitucional nº 32/01.”
A possibilidade de decreto normatizar condutas sociais de forma autônoma é tão reconhecida que somente por essa razão ele é igualmente suscetível ao controle de constitucionalidade, na lição da jurisprudência de nossa Corte Constitucional, já em períodos anteriores ainda à emenda constitucional mencionada51:
Ação direta de inconstitucionalidade: objeto. Tem-se objeto idôneo à ação direta de inconstitucionalidade quando o decreto impugnado não é de caráter regulamentar de lei, mas constitui ato normativo que pretende derivar o seu conteúdo diretamente da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal, recentemente, já teve a oportunidade de se pronunciar sobre situação praticamente idêntica ao HC de Ribeirão Preto, onde se questionava justamente a legitimidade de decretos idênticos ao sanjoanense. Não obstante ser oriundo da Comarca de Ribeirão Preto- São Paulo, não corresponde ao caso do HC trazido à apreciação52:
Suspendo cautelarmente os efeitos da decisão proferida nos autos do Habeas Corpus preventivo nº 2056954-03.2021.8.26.0000, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de modo a restabelecer a plena eficácia do Decreto Municipal nº 50/2021, expedido pelo Prefeito de Ribeirão Preto/SP. Comuniquem-se com urgência. Após, notifique-se o autor do habeas corpus na origem para manifestação.
Mutatis mutandis, em notório julgamento, O STF em controle concentrado de constitucionalidade asseverou a validade de decretos estaduais53, a exemplo do paulista, que restringiram liberdades em razão da pandemia, pois em que pese tenha discutido a questão à luz da liberdade religiosa, sua ratio decidendi se aplica à hipótese.
No mais, ainda que implicitamente, os precedentes paulistas outrora citados analisaram os mesmos argumentos, sinalizando uma solução diversa àquela que foi dada pelo juiz em Ribeirão Preto, o que, em eventual ação judicial, seria difícil de contornar.
c) Estado de Defesa (ou de Sítio) e Dogmas Administrativos (Presunção de Legitimidade Dos Atos Públicos, Judicialidade do Mérito Administrativo e e Tendência de Deferência ao Administrador em Assuntos Técnicos)
A nossa ordem constitucional preocupou-se em normatizar instrumentos de controle de crises, em busca da manutenção de sua vigência, mesmo em tempos de exceção.
Conforme leciona Flávio Martins54o sistema constitucional das crises, composto pelo Estado de Defesa, ou de Sítio e pelas normas de Intervenção, representam medidas excepcionalíssimas, sendo essa a razão de terem um procedimento de alto rigor para ser decretados.
Na decisão do Habeas Corpus em análise, fora aventado que o estado de calamidade pública causado pela Covid-19 imporia a decretação do Estado de Defesa, pois somente durante ele é que seria legítima a restrição de direitos fundamentais, perpetradas durante a pandemia, como a liberdade de locomoção e a de iniciativa.
Pedindo todas as vênias, e deixando de lado questões extrajurídicas que não nos cabe analisar, a afirmação lançada no referido Habeas Corpus não encontra guarida no ordenamento jurídico brasileiro, observado a partir de uma leitura hermeneuticamente correta, por uma considerável ordem de fatores.
i.) A afirmação de que direitos fundamentais só podem ser restringidos durante do Estado de Defesa contraria toda a dogmática dos direitos fundamentais outrora exposta, construída há décadas no mundo todo, pois, conforme melhor delineado acima, direitos fundamentais admitem, sim, limitações práticas, seja após um procedimento de ponderação (proporcionalidade), seja para a busca de uma concordância prática entre dois direitos fundamentais colidentes.
Ora, soa equivocada a afirmação de que limitações de direitos fundamentais dependem de autorização expressa da lei maior, eis que direitos fundamentais também podem ser limitados por leis comuns. Na lição de Ingo Sarlet, Daniel Mitidiero e Luiz Marinoni55:
como é cediço, nem toda a disciplina normativa dos direitos fundamentais pode ser caracterizada como constituindo uma limitação. Muitas vezes as normas legais se limitam a detalhar tais direitos a fim de possibilitar o seu exercício, situações que correspondem aos termos configurar, conformar, completar, regular, densificar ou concretizar, habitualmente utilizados para caracterizar este fenômeno. [...]
No que diz respeito às espécies de limitações, registra-se substancial consenso quanto ao fato de que os direitos fundamentais podem ser restringidos tanto por expressa disposição constitucional como por norma legal promulgada com fundamento na Constituição.
Não seria exagero afirmar que, se a premissa adotada no mencionado Habeas Corpus fosse verdadeira, um caos estaria instaurado, pois meras leis - que de certa forma restringem os direitos fundamentais em prol de outros, editadas fora do Estado de Defesa - também seriam inconstitucionais, a exemplo das leis que protegem o sigilo bancário e o sigilo das telecomunicações, cuja “quebra” é legalmente admitida em casos de investigação criminal, em que pese o direito ao sigilo, muitas vezes, ser invocado por investigados para se protegerem da persecução estatal desmedida.
Em entrevistas com especialistas das mais variadas posições, restou assentado que o Estado de Defesa não é só prescindível como também não recomendado56.
A possibilidade de restrições de direitos fundamentais, até mesmo independentemente de lei, ou através de uma “de caso concreto”, como fez a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, independentemente de autorização constitucional expressa, como a que seria adquirida com o Estado de Exceção, é amplamente referendada no cenário internacional.
O professor Jorge Reis Novais, um dos maiores constitucionalistas de nossa geração e professor catedrático da Universidade de Coimbra, em obra monográfica sobre o tema, sempre asseverou que ser admissível a restrição de direitos fundamentais, quando feita para promover algum outro valor de hierarquia constitucional (como os direitos fundamentais à vida e à saúde pública), independentemente de prévia e expressa autorização do texto maior57.
Em terrae brasilis, até mesmo o professor catedrático da USP, José Afonso da Silva58, ao elaborar a aplicabilidade das normas constitucionais, reconhece a existência das normas de eficácia contida (ou contível) , normas pela qual a própria carta magna se autolimita, ao prever vários direitos, que na prática são limitáveis em prol de uma concordância prática, pois seria impossivel, por exemplo, garantir uma liberdade plena e proteger, direitos como a honra.
ii.) Conforme lições do Dr. Paulo Iotti59 o Estado de Defesa, a rigor, seria igualmente incabível, pois ele se destina somente a calamidades públicas em lugares restritos e determinados (Art. 136 da CF/8860), sendo difícil sustentar que esse seja o caso de uma calamidade de proporções mundiais, daí a aplicação do nome “pandemia”. e não “epidemia”.
Sobre o tema, bem dissertam Ticiano Figueiredo, João Galvão e João Paulo Ferraz61:
Como visto, o pressuposto para a decretação do estado de defesa é a necessidade de preservação ou restabelecimento, em determinados locais, da ordem pública ou da paz social. Para tanto, deve haver ameaça grave e iminente de instabilidade institucional ou calamidade de grande proporção.
Veja-se, portanto, que riscos à saúde pública, por si só, não se incluem dentre as hipóteses de estado de defesa. A rigor, se medidas sanitárias funcionarem a contento, sem que haja ameaça à ordem pública, não é cabível o estado de defesa.
A finalidade histórica do Estado de Defesa é impedir movimentos separatistas de locais determinados, como no caso de um Estado da Federação tentar sua independência do Brasil.
iii.) Se o recurso argumentativo para o Estado de Sítio visa, precipuamente, a decretação de ilegalidade das medidas restritivas, poderá o intérprete incorrer em contradição performativa (Habermans), pois a medida de exceção permitiria ainda mais medidas, consideravelmente mais danosas, não a sua inocorrência, a exemplo da quebra do sigilo das comunicações ( Art. 136 §1º, Inc. I, alínea “b” e “c” da CF/88), que em tempos de normalidade são muito bem resguardados.
Em outras palavras, em um regime de restrição de direitos fundamentais, decorrente do próprio texto constitucional (não de lei ou decretos, como atualmente), o principal mecanismo de controle de sua legalidade - que é o controle de constitucionalidade - não existiria, pois ele não é cabível para aferir a legalidade de texto do constituinte originário, bem como se trata de ato político, não suscetível de apreciação judicial (Art. 136§ 4º aó 7º da CF/88).
Os meios de combate cogitados e possíveis estariam impossibilitados,, não sendo, portanto, recomendável a medida, nem mesmo necessária. Sobre o tema conclui Lênio Luiz Streck:62
Ora, restrições a direitos são próprias e comuns das e nas democracias. Liberdades de ir e vir são a todo momento restringidas. Eventos cívicos, desportivos e coisas do gênero fazem com que as pessoas possam ser impedidas de circular por determinados lugares. Portanto, não parece difícil sustentar a tese da decretação de lockdown nos moldes em que vem sendo feito no Brasil. Ninguém pode ser compelido a fazer algo a não ser em virtude lei quer dizer também “por decreto”. De lockdown. Sim.
Assim, caso realmente fosse necessário para restrições de direitos fundamentais que estivéssemos em um Estado de Exceção, a via pública seria impraticável, pois sendo as restrições diárias, elas não acompanhariam o custoso e demorado processo de emenda à constituição ( Art. 60 e ss da Cf/88), que poderia prejudicar alguns interesse públicos neste interstício.
iv.) A título de arremate sobre esse ponto, nos parece indispensável para o esgotamento do tema, realçar que, em uma visão jurídico-objetiva, o descumprimento de algum preceito para a decretação do Estado de Defesa, como, por exemplo, o decreto para casos de calamidades nacionais, pode restar configurado como um Golpe de Estado no sentido jurídico do termo, pois a diferença entre ambos reside na estrita observância da letra constitucional63. Na lição de Bernardo Gonçalves Fernandes64:
É, por isso, que o Estado de Defesa e o Estado de Sítio constituem a última ratio da defesa do Estado Democrático de Direito. A análise e a configuração da necessidade, via de regra, devem se caracterizar (conforme corrente majoritária) pela lógica da desproporcionalidade, o que impediria excessos que configurariam verdadeiro Golpe de Estado ou outras arbitrariedades ( contrárias à ordem democrática) por parte dos governantes.
No mais, portanto, como bem ressalta Eduardo Dos Santos65, a única diferença entre a restrição de direitos fundamentais dentro ou fora das medidas de exceção, é que durante o regime excepcional não seria necessária uma lei (no caso, a Lei Federal nº 13.979/2020) para as restrições, pois decorreriam e se legitimaram diretamente das previsões expressas da CF/88 (Art. 136 e ss).
Cabe acrescentar, igualmente, que não há que se falar em decretação de “mobilização nacional” (Art. 84, Inc. XIX da CF/88) , pois referido instituto se reserva a agressões estrangeiras (guerras e etc..), nos termos do Art.2º, Inc. I da Lei nº 11.631 de 2007 que regulamenta o instituto.
Eventuais tentativas de alargar o uso do instituto (Ex. Projeto de lei nº 1074/2021) , para situações pandêmicas, tendem a ser inconstitucionais, pois conforme já se manifestou o Dr. Eduardo dos Santos66, nos termos do Art. 84, Inc. XIX da CF/88, a mobilização nacional sempre deve se dar “nas mesmas condições” tanto quanto a motivo, quanto para procedimento.
Por fim, é digno de nota que um novo recurso de combates a crises, recentemente foi criado na constituição federal, pela emenda constitucional nº 109, justamente para casos de pandemia, onde não fora mencionada qualquer autorização para restrições para direitos fundamentais, pela sua desnecessidade, se a Casa das Leis entende-se que isso seria necessário, o teria feito.
Passando ao fundamento restante do HC submetido a análise, quanto às pesquisas tomadas por científicas para firmarem a tese que deslegitimariam as restrições, é preciso ponderar.
Tais pesquisas mencionadas pelo juízo de Ribeirão Preto teriam sido elaboradas e concluídas pelas universidades de Federal de Pernambuco, de Stanford e pela revista científica Nature, bem como pela OMS, todas no sentido de que não seria recomendável o lockdown.
Quanto à recomendação da OMS67, há notícia de que a frase que em tese não recomendava o lockdown fora tirada de contexto. Quanto à pesquisa da UFPE, o estudo mais recente divulgado pela própria universidade (17/03/2021), sugere o contrário, que o lockdown é efetivo68.
Quanto ao estudo da Universidade de Stanford, há controvérsias sobre sua legitimidade69, bem como ele implicitamente reconheceu que o isolamento teria alguns benefícios, e tratou da questão sobre os olhos do início da pandemia70, que hoje se encontra no ápice.
Por fim, no que toca ao estudo da Revista Nature, é digno de nota que pesquisas em regra divergem71, o que é habitual no campo acadêmico. Trazemos referidos apontamentos à baila, pois possivelmente seriam discutidos em juízo, sendo que única certeza que há é que a questão é, ao menos, controversa.
Tal estado de incerteza tem o condão de guiar o Magistrado, em eventual ação visando a reabertura do comércio local, a negar a sua procedência, especialmente por força de dois dogmas do direito administrativo: a presunção de legitimidade dos atos administrativos e inviabilidade de análise do mérito administrativo (conveniência e oportunidade). A respeito, explica José dos Santos Carvalho Filho72:
Os atos administrativos, quando editados, trazem em si a presunção de legitimidade, ou seja, a presunção de que nasceram em conformidade com as devidas normas legais, como bem anota DIEZ.69 Essa característica não depende de lei expressa, mas deflui da própria natureza do ato administrativo, como ato emanado de agente integrante da estrutura do Estado.
Vários são os fundamentos dados a essa característica. O fundamento precípuo, no entanto, reside na circunstância de que se cuida de atos emanados de agentes detentores de parcela do Poder Público, imbuídos, como é natural, do objetivo de alcançar o interesse público que lhes compete proteger. [...]
Na verdade, o que foi conveniente e oportuno hoje para o agente praticar o ato pode não sê-lo amanhã. O tempo, como sabemos, provoca alteração das linhas que definem esses critérios. [...] O Judiciário, entretanto, não pode imiscuir-se nessa apreciação, sendo-lhe vedado exercer controle judicial sobre o mérito administrativo.
Assim, com o estado de incerteza anunciado, não seria surpresa se o juiz, no caso aventado, recorra a tais dogmas, dado que se é conveniente ou oportuna a medida de lockdown, é questão que um juiz, em regra, não ousaria responder. Seja por receio de violação à separação dos poderes, seja pela presunção de legitimidade dos atos administrativos, o que demandaria provas robustas em contrário ao lockdown, que até onde se sabe, ainda não existem.
Neste exato sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 642173, orientou o Judiciário de que, havendo dúvida sobre os efeitos de alguma medida judicial, deve ele se orientar pelo princípio da precaução, agindo em deferência ao administrador.
No mesmo sentido, em outro precedente da Corte Constitucional, asseverou-se pela74 “ não adoção, a priori, de medidas ou protocolos a respeito dos quais haja dúvida sobre impactos adversos a tais bens jurídicos.”
Nesta linha de raciocínio, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo em suspensão de liminar, que havia vedado o lockdown, pois nas suas palavras75:
O Poder Judiciário não pode invadir o espaço reservado, pela lei, ao administrador, pois, caso contrário, estaria substituindo, por seus próprios critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente com base em razões de oportunidade e conveniência que ela, melhor do que ninguém, pode decidir diante de cada caso concreto
A situação inversa também foi analisada pelo Poder Judiciário, um lockdown decretado pelo Judiciário fora suspenso, por que tal medida é seria afeta à competência exclusiva do Poder Executivo76:
O Distrito Federal tomou decisão político-administrativa conciliatória dos relevantes interesses em conflito, com suporte em estudos técnico-científicos, sem descurar dos cuidados com a saúde pública e a importante preocupação com proteção da população contra a doença, mas também sem deixar de ter responsabilidade com relação ao regular funcionamento da economia na medida do possível, que, ao final, também diz respeito ao bem-estar dos cidadãos, o que ratifica a legitimidade de sua postura administrativa
Desta feita, dada a grande controvérsia da questão, ainda que o lockdown seja uma medida contestável, a tendência judiciária é pela sua manutenção, conforme exposto.
III - SOBRE O “PRECEDENTE” DE RIBEIRÃO PRETO: HC nº 1500681-23.2021.8.26.0530 E EVENTUAIS OUTROS JULGADOS DE PRIMEIRO GRAU
Demonstradas as inconsistências na fundamentação da decisão proferida no HC nº 1500681-23.2021.8.26.0530 no item anterior, passamos a apontar alguns pontos sobre dever ou não de observância do dito “precedente”, à luz da doutrina processual civil:
I - Causa de Natureza Penal - Hipótese de Distinguishing (art. 489, § 1º,VI do CPC): O caso mencionado, em que pese possa ter suas razões, trata de situação bem diferente da em análise.
Primeiro, trata-se de uma ação penal, o que por si só já impede a sua aplicação, pois há diretrizes do direito penal inexistentes para uma ação cível. A título de exemplo, a) a prisão cautelar é medida excepcionalíssima (tratou-se de análise de prisão) o que certamente foi sopesado na decisão; b) a legalidade penal é mais restrita, somente sendo crime se houver uma correspondência muito maior com a lei, ao contrário do que ocorre com o ilícito civil em geral; c) o ônus probatório no cível é bem maior, como no caso, pela necessidade de comprovação mais empírica de que os motivos das restrições são ilegítimas o suficiente para elidir a presunção de legitimidade dos atos administrativos, dentre outros, trata-se de um caso individual, onde não foram informadas as situações particulares (existência ou não de flagrante, por exemplo), bem diferente da perspectiva coletiva, que em regra pede uma similitude de situações (as diferenças no ramo de atividade de cada associado pode impedir uma ação coletiva), nos termos da lei de regência (Art. 81 do CDC);
Além do mais, em situações realmente idênticas (pedidos de abertura de comércio - ações cíveis), como as trazidas outrora, a solução é diametralmente oposta, como vimos.
Assim, como bem se sabe, havendo substancial distinção no precedente invocado (distinguishing), a teoria dos precedentes recomenda a sua não observância (Art. 489, § 1º, Inc. VI do c/c Art. 927 c/c Art. 1.037, §12º do CPC/15).
Nesse sentido, como aduz Lucas Buril de Macedo77 “... a realização de uma distinção significa que o precedente não incide no caso concreto, seja por que existe um fato substancial diferente, a requerer tratamento diverso, ou por que os fatos da causa não constituem o suporte fático necessário.”
Patrícia Perrone Campos, citada por Juraci Mourão Lopes Filho78, com sua lucidez habitual, ainda levanta quatro hipóteses de distinção que se aplicam ao caso, a saber: a) Incidência de valores diversos (como visto, o sistema penal possui diretrizes bem diferentes do cível); b) Excessiva abrangência de um caso individual; c) O precedente de Ribeirão Preto conflita com outros julgados, como vimos, que já formam uma maioria e, d) Alguns argumentos não foram enfrentados pelo juízo criminal, a exemplo dos trazidos no tópico anterior.
Sobre o impacto na (in)existência de dever de observância, assevera Juraci Mourão Filho79 que “há prejuízo da força de um precedente quando há uma aplicação transdisciplinar, ou seja, quando se utiliza um precedente erigido em caso que envolve ramo do direito diverso daquele do novo caso em julgamento”.
A distinção é tão grande que, mesmo em pesquisa aprofundada no primeiro e no segundo grau de justiça, não se encontra o HC em comento como paradigma.
II - Inexistência de “Precedente” no sentido técnico do termo: O HC em questão corresponde a uma decisão judicial (não sentença) liminar, proferida por Juiz plantonista da Circunscrição Judiciária de Ribeirão Preto, que sequer é o juiz natural do processo, podendo ser a decisão modificada pelo juiz natural a qualquer momento, tão logo ocorra sua distribuição (diversa da que correria eventual ação cível), circunstâncias essas que, irremediavelmente, a desqualificam como “precedente”.
Na lição de Lucas Buril de Macedo80 "A decisão que deve ser tratada como precedente obrigatório é a do tribunal que se encontra em posição de reformar as decisões dos juízes[...]”.
No mesmo sentido, enfatiza Teresa Arruda Alvim81 que “A eficácia de um precedente obrigatório depende, inexoravelmente, da publicação da íntegra do acórdão que conferiu solução à questão jurídica”
A referida conclusão baseia-se precipuamente em razão de que decisões de primeira instância não se encontram no rol taxativo do Art. 927 do CPC, que elenca os precedentes de observância obrigatória no Brasil; nem mesmo há previsão complementar no Art. 489 §1º, Inc. VI do CPC/15, o qual não menciona qualquer nomenclatura pertencente a decisões de primeiro grau.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema:
82“APELAÇÃO Alegação de nulidade da sentença Inocorrência Pretenso pronunciamento sobre julgado que não se encaixa no conceito de precedente Inteligência dos artigos 489, §1º, II e VI e 927, §1º, do Novo Código de Processo Civil. [...]
A observância obrigatória a esses entendimentos só é aplicável quando se faz menção a casos enquadrados nas hipóteses descritas nos incisos I a V do caput do artigo 927 (súmula vinculante, recurso repetitivo, etc.), que não abrangem todo e qualquer acórdão, até mesmo porque evidentemente existem posições divergentes não pacificadas e que devem ser respeitadas”
III - Inaplicabilidade do Dever de Observância (Art. 926 ou Art. 927): Inexistência de Hierarquia Funcional Entre o Juízo de Ribeirão Preto e o de São João da Boa Vista (Competente para Eventual Ação Cível): Outra objeção à eventual aplicação da decisão de Ribeirão Preto é o fato de que inexiste subordinação entre aquele juízo e o de São João da Boa Vista, o qual seria competente para a ação aventada, sendo que este se vincula, exclusivamente, ao TJ/SP, ao STJ e ao STF.
A bem da verdade, a experiência forense demonstra que até mesmo decisões de Tribunais de estados diversos (Ex. TJ/RS) não são observadas pelos juízes paulistas, muito por aplicação analógica do Art. 985, Inc. I do CPC/15, que igualmente pode ser invocado para o caso, à luz do microssistema dos precedentes.
Na lição de Lucas Buril Macedo83 "[...] a obrigatoriedade do precedente está diretamente ligada à hierarquia das Cortes, e nesse passo, especialmente à estrutura recursal que segue a demanda”.
Ou seja, o sistema de precedentes obrigatórios depende de meios que garantam a observância do precedente. Não existindo instrumento jurídico para que eventual decisão em contrário a ser proferida pelo juízo sanjoanense seja revisto pelo de Ribeirão Preto, resta prejudicada qualquer ilação sobre dever de observância ao julgado. Em síntese: em eventual ação - seja cível ou criminal -, o magistrado de São João da Boa Vista pode simplesmente desconsiderar os fundamentos e a decisão proferida no Habeas Corpus de Ribeirão Preto, eis que não há absolutamente nenhuma hierarquia entre tais juízos.
Além do mais, ainda que o juízo sanjoanense acolhesse o julgado e de Ribeirão Preto, em um eventual - e bem provável - recurso, um ponto será difícil remediar. O caso deságua no TJ/SP (que possui precedentes no sentido oposto, como vimos), sendo que a Corte Paulista, muito provavelmente, não observará a decisão de Ribeirão Preto, pois, na lição de Lucas Buril Macedo,84 “Nunca obrigam tribunais que se encontram em posição acima”.
Admitir o contrário é impossibilitar o sistema recursal, que precipuamente existe para rever decisões de primeira instância.
IV - Inexistência de Ratio Decidendi Sujeita a Observância - Contraditório, Publicidade e Fundamentação Defeituosa: Os precedentes aptos a se tornarem persuasivos e quiçá obrigatórios possuem expediente para formação bem definido pela lei processual, que, uma vez não observados, podem abalar a legitimidade do precedente e, por consequência, a (in)existência do dever de observância.
Dois pressupostos podem ser invocados em oposição ao HC em comento são: a) O dever de fundamentação aprofundado (Art. 927 §4º do CPC/15), aí certamente inserido o dever de refutar teses em contrário (Art. 489 §1º, Inc. IV do CPC/15 - contraditório qualificado para casos de grande repercussão, nos termos do Art. 927 §2º do CPC) e b) o dever de publicidade da decisão (Art. 927, §2º do CPC);
Sobre o tema, bem explica Lucas Buril Macedo85:
O contraditório, assim como o princípio da cooperação, é intensificado justamente para possibilitar a formação de um precedente que considere o maior número possível de argumentos [...]
Deve-se ter em mente que , sem que exista uma adequada fundamentação das decisões, sequer é possível defender-se uma teoria dos precedentes. [...]
A cognoscibilidade do direito é requisito essencial do princípio da segurança jurídica e para a concretização do ideal do Estado de Direito , sendo indispensável que seja possível aos cidadãos conhecer os textos de onde serão coligidas as normas jurídicas.
Vale dizer, a legitimidade, bem como a persuasão de um precedente, está intimamente ligada com o cumprimento desses pressupostos: o da fundamentação qualificada (controversa no caso, como vimos no tópico anterior), do contraditório (o Ministério Público não fora devidamente ouvido no caso, nem mesmo seus argumentos que poderiam ter influenciado a conclusão do julgador) e da publicidade (a decisão não possuiu grande repercussão, apta a gerar expectativa de decisões iguais proferidas por outros Juízes).
Nesta toada, portanto, ainda que a decisão proferida em Ribeirão Preto/SP possa ser um indicativo de que os Tribunais passarão a tomar novos caminhos, há objeções difíceis de contornar em sua invocação, notadamente na seara cível.