Capa da publicação Caso Guadalupe – retrospectiva de um crime militar
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Caso Guadalupe – 82 tiros deflagrados em via pública por oito militares contra o carro de um músico:

da prisão em flagrante ao julgamento

24/09/2022 às 13:45
Leia nesta página:

Examinamos os fatos ocorridos em 7 de abril de 2019, em frente ao Minhocão, no bairro de Guadalupe, na cidade do Rio Janeiro, em que dois civis morreram e um ficou ferido, em razão de disparos efetuados por militares do Exército.

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de mostrar os fatos ocorridos em 7 de abril de 2019, em frente ao Minhocão, no bairro de Guadalupe, na cidade do Rio Janeiro, em que dois civis morreram e um ficou ferido, em razão de disparos efetuados por militares do Exército. Visa apresentar e discutir questões jurídicas a partir de um caso concreto histórico, ressaltando as teses empregadas pelos operadores de direito que atuaram em um processo julgado em primeira instância na 1ª Auditoria da Justiça Militar da União da 1ª Circunscrição Judiciária Militar. A conclusão é que a defesa pautou sua tese, exclusivamente, em depoimentos de testemunhas que não presenciaram os fatos; em versões dos acusados; e em estudos científicos não comprovados.

PALAVRAS-CHAVE: militares do Exército; Rio de Janeiro; Guadalupe.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Protagonistas dos episódios sequenciais ocorridos em 7 de abril de 2019 3 Os fatos 4 Da instrução criminal 5 Da alegação da legítima defesa putativa pelos causídicos 6 Do fato típico, ilícito e culpável praticado pelos oito réus 7 Do julgamento 8 Conclusão.


1 INTRODUÇÃO

Na tarde do dia 7 de abril de 2019, um grupo de combate de militares do Exército deslocava-se com destino a uma Vila militar para substituir a equipe de militares que fazia segurança naquele setor militar. No caminho, o referido grupo de combate se deparou com um assalto em via pública e atiraram contra os malfeitores que fugiram do local. Posteriormente, o grupo de combate confundiu o carro de uma família com o carro dos bandidos e atiram contra o veículo. Duas pessoas morreram e uma ficou ferida.

No julgamento dos militares, a defesa alegou a existência de conexão entre o confronto sucedido, na manhã do dia dos fatos, entre agentes do tráfico da comunidade do Muquiço e a tropa do Exército e os disparos feitos pelos oito acusados contra o carro da vítima, na parte da tarde. Também levantou a tese de que os acusados, quando atiraram no veículo, estavam submetidos aos efeitos de uma visão de túnel e exclusão auditiva, que ocorre, segundo a tese da defesa, em situações de combates intensos e afeta a psique dos combatentes.

Apesar disso e com base em evidências que serão demonstradas ao longo deste artigo, no dia do julgamento, com duração de mais de 15 horas, o Conselho Especial de Justiça para o Exército, por maioria de votos, levando em consideração as provas orais, documentais e periciais contidas nos autos, condenou oito réus por duplo homicídio doloso pelas mortes de Evaldo e Luciano e tentativa de homicídio contra Sérgio.

2 PROTAGONISTAS DOS EPISÓDIOS SEQUENCIAIS OCORRIDOS EM 7 DE ABRIL DE 2019

No dia 7 de abril de 2019, por volta das 14 horas, oito militares do Exército (EB) atiraram 82 vezes contra o carro do músico Evaldo, provocando a morte dele, do morador de rua Luciano, atingido quando prestava socorro a Evaldo, bem como ferimentos em Sérgio. Para efeitos didáticos, consideram-se, neste artigo, as referidas pessoas como protagonistas do episódio principal.

Outro fato relevante, que será considerado neste artigo como 1º episódio secundário, é que militares do Exército trocam tiros com agentes do tráfico de drogas na mesma manhã de 7 de abril de 2019, na praça da Jaqueira, próximo à favela do Muquiço.

Por fim, 12 militares do Exército, considerados aqui como protagonistas do 2º episódio secundário, no dia 07 de abril de 2019, atiraram em três assaltantes que roubavam um carro Honda, que estava parado em um sinal da estrada Camboatá, no bairro de Guadalupe.

3 OS FATOS

Numa tarde de domingo do dia 07 de abril de 2019, na cidade do Rio de Janeiro, um músico de nome Evaldo saiu de sua residência, no bairro de Marechal Hermes, conduzindo seu veículo, um Ford KA Sedan branco, com intuito de participar de um chá de bebê, no bairro de São João de Meriti. Em sua companhia estavam sua mulher, seu filho menor e uma amiga da família, sentados no banco de trás do veículo. Ao seu lado, no banco do carona, estava Sérgio, seu sogro.

Em determinado ponto do trajeto, no bairro de Guadalupe, por volta das 14 horas, doze militares do Exército, embarcados em uma viatura militar que trafegava pelo mesmo sentido do carro do músico, dispararam diversos tiros contra três ou quatro pessoas, não identificadas, que ocupavam outro Ford KA branco. Essas quatro pessoas, naquele instante, tinham acabado de roubar um Honda City branco, que estava parado em um sinal em frente ao piscinão de Deodoro. Depois do tiroteio, os bandidos fugiram pela Estrada Camboatá sentido Avenida Brasil.

Em virtude do citado confronto, um dos tiros deflagrados pelos militares do Exército (EB) transfixou o carro de Evaldo, atingindo-o nas costas, na altura da cintura, o que o fez perder paulatinamente os sentidos. Evaldo conseguiu conduzir seu veículo, que perdia rapidamente a velocidade, por alguns metros, vindo a desmaiar. O carro do músico parou na estrada Camboatá, após seu sogro, que ocupava o banco do carona, acionar o freio de mão. Naquela oportunidade, os ocupantes do carro de Evaldo que estavam sentados no banco traseiro retiraram-se do veículo apressadamente para buscar abrigo, permanecendo no interior do auto somente seu sogro. Luciano, um morador de rua que estava por aquelas cercanias, se aproximou para prestar socorro a Evaldo. Relativamente a esse episódio, o Ministério Público Militar entendeu que os militares tinham agido em legítima defesa de terceiro ao se depararem com o roubo de um automóvel.

Logo depois, o motorista da viatura militar que percorria o mesmo trajeto e transportava a equipe de militares, obedecendo à ordem de seu superior hierárquico, parou a uma distância de 43 m do carro de Evaldo; e, naquela oportunidade, oito dos doze militares do Exército que haviam participado do tiroteio, anteriormente, durante o assalto, de forma imediata, sem observarem os devidos procedimentos previstos em normas regulamentadas pelo Exército, dispararam 82 (oitenta e dois tiros) na direção do veículo do músico, utilizando Fuzil 5,56, com alcance máximo de 1800 m, e o Fuzil 7,62, com alcance máximo de 3800 m, acreditando que estavam diante dos assaltantes que roubaram o veículo Honda.

Vale assinalar que, no Estado do Rio de Janeiro, é comum haver, em um mesmo logrador público, mais de um carro popular com as mesmas características do carro de Evaldo, vale dizer, na cor branca e com insulfilme. É por essa razão que os cuidados devem ser redobrados por parte dos agentes de segurança e por militares das Forças Armadas que atuam em funções relacionadas à segurança pública. As estatísticas estão aí para mostrar o número de pessoas que foram alvejadas por tiros em seus carros, após terem sido confundidas com autores de roubos que se encontravam em fuga.

Dos disparos efetuados por oito militares, 62 (sessenta e dois) atingiram o automóvel da vítima, provocando a morte imediata de Evaldo, atingido na cabeça e nas costas por mais de oito tiros; e ferimentos em Luciano, que veio a falecer, posteriormente, no Hospital Carlos Chagas, no dia 18 de abril de 2019, em razão dos tiros recebidos. Sérgio, por ter se agachado no banco do carona no momento dos disparos, recebeu tiros de raspão e só não faleceu por circunstâncias alheias à vontade dos agentes que atiraram.

No mesmo dia, na parte da manhã, os mesmos militares do Exército participaram de um confronto com agentes do tráfico da favela do Muquiço, próximo àquela comunidade, na Praça da Jaqueira. Houve, portanto, três episódios, distintos e independentes entre si envolvendo os acusados, não obstante tenham ocorrido cronologicamente um após o outro. Com efeito, no primeiro evento, ocorrido na parte da manhã, houve um confronto de militares com agentes do tráfico na Praça da Jaqueira, próximo à comunidade do Muquiço. O segundo episódio aconteceu à tarde em razão de os réus terem atirado em três pessoas que realizavam um assalto de um carro em via pública. O fato principal decorreu de tiros deflagrados por oito dos acusados, em via pública, contra um carro que supunham ser dos agentes que roubaram, minutos antes, um veículo da marca Honda Civic.

Decorrente da desastrada abordagem ao carro do músico, 12 militares do Exército foram presos em flagrante por violações de várias normas de engajamento preconizadas pela citada força armada terrestre. Com efeito, foram violados os seguintes procedimentos normatizados pelo EB: usar moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente; atirar somente na direção do agressor claramente identificado; utilizar força mínima, visando ferir e não matar; atirar somente o necessário; o emprego de munição real só deve ser feita como último recurso; e, se o oponente estiver num veículo, direcionar tiro para o motor e pneus.

Ressalte-se que, embora os acusados, como consta nos autos, tenham participado de mais de 100(cem) operações da Garantia da Lei e da Ordem, descumpriram os ensinamentos que lhes foram ministrados, contidos em normas de engajamento. Assim sendo, resulta inafastável a constatação de que o não cumprimento das regras de engajamento pelos acusados foi o fato gerador responsável para a eclosão da catástrofe que culminou em dois homicídios consumados e um homicídio tentado, decorrentes de 82 tiros de fuzil deflagrados, de forma irresponsável, contra o carro em que estavam as vítimas, dos quais 62 foram contabilizados pela perícia na lataria do carro que era conduzido pelo músico.

Durante a audiência de custódia, após requerimento do Ministério Público Militar (MPM), foi decretada a prisão preventiva dos militares.

Todos os doze militares foram denunciados por duplo homicídio qualificado, homicídio na sua forma tentada e omissão de socorro. Todavia, as investigações procedidas antes do processo, bem como as provas colhidas durante a instrução criminal, demonstraram que somente oito dos doze militares denunciados praticaram duplo homicídio qualificado e um homicídio tentado, uma vez que o Exame residuográfico realizado nos acusados concluiu que quatro dos doze denunciados não haviam atirado no carro de Evaldo. Assim, em alegações escritas, o MPM requereu a absolvição desses militares que, em seus interrogatórios, já haviam negado ter atirado no carro do músico.

Perícia de local de crime realizado pela polícia civil registrou o recolhimento de 82 estojos, sendo 59 de fuzil 5,56 e 23 de fuzil 7,62, todos encontrados nas imediações da viatura militar, local onde foram disparados os tiros por 8 militares do Exército. Não foram encontradas armas e/ou estojos de armas nas proximidades do carro da vítima.

Exame pericial feito no veículo da vítima assinalou 62 perfurações resultantes de disparos de armas utilizadas pelos réus, em sua maioria, de fuzil 5,56.

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Necropsia no cadáver de Evaldo revelou que o músico morreu em razão de hemorragia subaracnóidea e laceração encefálica, enquanto que Luciano morreu em virtude de tiros no braço direito e nas costas. Exame de corpo de delito realizado em Sérgio registrou ferimentos em suas costas.

4 DA INSTRUÇÃO CRIMINAL

A defesa, durante a instrução criminal, notadamente em suas alegações escritas, usou e abusou do emprego de falácias, vale dizer, ideias erradas transmitidas como se fossem verdadeiras. Ficou nítido que o objetivo da defesa durante o processo foi de jogar fumaça na montanha de provas e evidências contidas nos autos, que demonstraram, de forma inequívoca, o cometimento de fato típico, ilícito e culpável por parte de oito dos réus.

Uma das falácias mais enfatizadas pela defesa foi a falácia da falsa causalidade, na qual os causídicos insistiram em demonstrar a existência de conexão entre o confronto sucedido, na manhã do dia dos fatos, entre agentes do tráfico da comunidade do Muquiço e a tropa do Exército e os disparos feitos por oito acusados contra o carro da vítima Evaldo, na parte da tarde. Aliás, o confronto ocorrido pela manhã, próximo à comunidade do Muquiço, ganhou relevo e dimensão na ótica da defesa. Assim, foi desenvolvida a infundada tese de que o dito combate teria abalado a psique dos acusados, os quais teriam sido ameaçados de morte pelo chefe do tráfico da favela do Muquiço de alcunha coronel, fato não comprovado nos autos. De fato, o IPM 70000957-92.2019.7,01, que apurou o confronto entre militares do Exército e agentes do tráfico ocorrido pela manhã, registrou apenas dois tiros em cada uma das três viaturas do Exército envolvidas no confronto. Constatou-se ademais que apenas dois acusados militares teriam atirado, durante a manhã, do dia 07 de abril. Esses dados demonstram que o aludido confronto não foi tão intenso entre a tropa militar e supostos agentes do tráfico de drogas. Efetivamente, não há lógica no fato de a maioria dos acusados ter participado de um grave confronto, sem dar um único tiro.

Não obstante, a partir do sobredito cenário de confronto, sem grandes proporções, a defesa levantou a tese de que os acusados, quando atiraram no carro do músico e sua família, estavam submetidos aos efeitos de uma visão de túnel e exclusão auditiva, que ocorre, segundo a autora do livro Deadly Force Encounters, em situações de combates intensos e afeta a psique dos combatentes. Ficou claro que a referida hipótese não se aplica ao caso em testilha, pois, além de não possuir comprovada evidência científica, não derivou de uma situação estressante de combate constante e contínuo, como ocorre em situação de guerra.

A própria defesa registrou que a Dra. Artwohl, autora do citado livro, após entrevistar dez policiais, descobriu que oito deles apresentaram visão de túnel. Ocorre que a situação de combate não é o cotidiano dos militares das Forças Armadas em tempo de paz. Confrontos com trocas de tiros são esporádicos nas Forças Armadas e, por essa razão, não têm o condão de desencadear visão de túnel em militares federais.

Assim, sob nossa ótica, a metodologia empregada pela defesa de trazer à baila tese científica não comprovada, bem como a de abusar do uso de falácias, teve como pretensão tirar o foco de luz do fato principal e levar o julgador a uma possível conclusão equivocada, qual seja: a de que, se um evento acontece após o outro, o segundo é uma consequência do primeiro. Restou ainda nítida a intenção da defesa de impressionar os juízes militares integrantes do Conselho Especial de Justiça para o Exército quando trouxe à colação, de forma reiterada, a falácia do apelo, ao mencionar que o MPM fazia esforço para envolver a instituição militar como ré na ação ocorrida. Aditou ainda que qualquer cidadão comum que se deparasse com as imagens dos fatos na mídia perceberia forte pressão para criminalizar, não os acusados, mas toda a instituição Exército. Prosseguindo em sua retórica, a defesa empregou a falácia do espantalho, que consiste em criar a figura de um espantalho e desqualificá-la para afastar as atenções do fato principal. Dessa forma, a defesa assinalou que o músico morto Evaldo era conhecido na comunidade do Muquiço, inclusive pelo tráfico, sob a alcunha de manduca (espantalho criado pela defesa).

O fato é que a própria defesa, em suas razões de apelação, registrou que os acusados abriram fogo logo que avistaram o carro da vítima, acreditando se tratar do carro dos assaltantes. Assim sendo, reconheceu, ainda que de forma involuntária, a incidência do instituto do erro sobre a pessoa, que ocorre quando o agente, por erro de percepção, atinge uma pessoa em vez de outra, respondendo penalmente como se tivesse praticado o crime contra aquela que queria atingir.

Cabe a seguinte Indagação: se os acusados tivessem cumprido o estabelecido nas normas de engajamento, notadamente a de que a tropa realizará disparos em legítima defesa, indubitavelmente, caracterizada e somente na direção de agressor claramente identificado, os fatos teriam ocorrido da maneira que ocorreu? À evidência, a resposta negativa se impõe.

5 DA ALEGAÇÃO DA LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA PELOS CAUSÍDICOS

Quando o Ministério Público prova, cabalmente, a prática de fato típico, ilícito e culpável, ficam afastadas, consequentemente, todas as excludentes de crime e excludentes de culpa.

Não se pode perder de vista que para o reconhecimento da excludente da legítima defesa real ou putativa, tese alegada pela defesa, é indispensável a existência dos requisitos constantes no art.44 do Código Penal Militar: Art. 44. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

O primeiro requisito legal exigido é a prova da ocorrência de injusta agressão, fato inexistente nos autos. Com efeito, restou comprovado que nenhuma arma foi encontrada em poder das vítimas. Ademais, perícia realizada no local do crime não encontrou nenhum estojo deflagrado próximo ao carro das vítimas, o que sinaliza que não houve disparos pelos ocupantes do Ford branco de Evaldo e nem por Luciano, morador de rua, que estava sem camisa, ao lado do carro, prestando socorro ao músico.

Por outro lado, vários estojos deflagrados foram recolhidos pela perícia, próximos à viatura militar. Todos os estojos eram compatíveis com os armamentos que os acusados portavam no dia dos fatos. Demais disso, como explicar o porquê de quatro réus absolvidos integrantes da tropa não terem revidado a tiros, caso houvesse realmente uma situação real ou imaginária de injusta agressão, como alegado pela defesa. A razão é simples. Não houve injusta agressão real nem imaginária, caso contrário todos os militares teriam reagido ao real ou suposto ataque.

De fato, o Tenente que comandava a patrulha, logo após determinar a parada da viatura militar a uma distância de 43 metros do carro da vítima, sem identificar o alvo, abriu fogo contra os ocupantes do Ford branco e contra Luciano, que estava do lado de fora do automóvel, prestando socorro a Evaldo. Dessa forma, efetuou disparos, de forma precipitada, sem identificar claramente o alvo, acreditando estar diante dos assaltantes do Honda Civic. Nesse contexto, foi acompanhado em sua conduta por sete acusados. Não houve ordem expressa do tenente para os seus comandados atirarem.

Não procede, dessa forma, a versão da defesa de que os militares revidaram os tiros disparados pelos traficantes a mando do chefe do tráfico. Repita-se, perícia de local de crime não encontrou nos arredores dos fatos outros tipos de cartuchos, senão aqueles recolhidos próximo à viatura militar, compatíveis com armamentos usados pelos réus.

Outro requisito legal exigido para o reconhecimento da legítima defesa diz respeito ao uso moderado dos meios necessários. Esse requisito foi flagrantemente descumprido por oito dos acusados, que dispararam, com fuzis altamente lesivos, 82 tiros em direção ao carro Ford branco, dos quais 62 atingiram o referido veículo.

Mesmo diante desse cenário a defesa fez elucubrações de que os réus teriam escutado, via rádio, ordem dada pelo chefe do tráfico para matar toda a tropa. Não existe comprovação nos autos sobre essa versão, tampouco nenhum rádio foi apreendido. Trata-se de versão combinada pelos réus para legitimar suas equivocadas condutas.

A defesa tentou de todas as formas fazer prevalecer as suas infundadas teses, até mesmo desqualificando as vítimas, quando empregou a falácia ad hominem , ou seja, atacou o homem e não a causa, ao ressaltar que Luciano, morador de rua, já havia sido condenado pelo cometimento do delito de roubo e preso algumas vezes por tráfico de drogas.

O fato de uma das vítimas ter respondido ou não a processo é irrelevante para a causa, até porque, no dia dos fatos, esse dado não era sequer conhecido pelos réus. Somente depois de todo o ocorrido é que a defesa fez um levantamento da ficha criminal das vítimas.

Os causídicos, em abono a tese da legítima defesa putativa, transcreveram a seguinte lição dos autores Alberto da Sila Franco e Rui Stoco (2007):

Nas descriminantes putativas, o agente considera que sua conduta guarda licitude porque imagina, por erro, que se mostre presente uma realidade fática que, se fosse verdadeira, legitimaria tal conduta. É o sempre citado exemplo do agente que vê um renitente desafeto realizar um gesto que lhe pareceu representar o saque de uma arma e, então, atira, em sua direção, matando-o [...]. (grifei)

Sublinhe-se que no exemplo dado não houve dúvidas em relação ao alvo a ser atingido, uma vez que o atirador identificou claramente o alvo (um renitente desafeto). Houve ainda a realização de gesto que pareceu representar o saque de uma arma. Assim, o exemplo dado difere em muito do caso em questão ocorrido. Com efeito, os tiros disparados pelos acusados aconteceram logo que os militares se deparam com o carro da vítima, sem a clara e devida certificação da identificação do alvo. Não houve, de igual modo, gesticulação das vítimas de molde a simular possível ataque aos militares.

6 DO FATO TÍPICO, ILÍCITO E CULPÁVEL PRATICADO PELOS OITO RÉUS

Desse modo, o fato típico foi demonstrado pela deflagração de 82 tiros por oito condenados no carro da vítima, fato comprovado pelo Laudo de Perícia em veículo. A relação de causalidade foi caracterizada pelos laudos de necropsias (evento 91), que demonstraram que Evaldo e Luciano morreram em decorrência dos tiros disparados por oito acusados. O exame de corpo delito realizado em Sérgio comprova que este só não veio a óbito por circunstâncias alheias à vontade dos réus condenados.

A ilicitude do fato ficou caracterizada em razão da relação de contrariedade existente entre os fatos praticados pelos réus e as normas jurídicas, bem como as normas administrativas. Com efeito, os réus descumpriram diversas normas de engajamento estabelecidas pelo Exército ao executarem tiros diante de um cenário em que inexistiu injusta agressão real e imaginária, vindo a atingirem, por erro, pessoas inocentes. Não houve a devida certificação da identificação dos alvos. Pontue-se ainda a excessiva quantidade de tiros disparados pelos condenados sem que houvesse, repita-se, agressão injusta.

A culpabilidade restou evidenciada pelo fato de os condenados, com experiência em participações de mais 100 (cem) operações de Garantia da Lei e da Ordem, terem descumprido normas de engajamento diante de uma situação em que lhes eram exigidas condutas diversas das praticadas. Ou seja, os condenados deveriam, antes de atirarem, de imediato, contra o carro das vítimas, identificar claramente os ocupantes do veículo (o que era possível pela distância e pela claridade do dia). Medidas preventivas constantes em normas de engajamento poderiam e deveriam ser tomadas.

7 DO JULGAMENTO

No dia do julgamento, com duração de mais de 15 horas, o Conselho Especial de Justiça para o Exército, por maioria de votos, levando em consideração as provas orais, documentais e periciais contidas nos autos, condenou oito réus por duplo homicídio doloso pelas mortes de Evaldo e Luciano e tentativa de homicídio contra Sérgio. A defesa pautou sua tese, exclusivamente, em depoimentos de testemunhas que não presenciaram os fatos; em versões infundadas dos acusados, os quais tentaram legitimar suas injustificáveis condutas; em estudos científicos não comprovados; e em falácias.

8 CONCLUSÃO

O trabalho teve como objetivo apresentar e discutir questões jurídicas a partir de um caso concreto histórico, ressaltando as teses empregadas pelos operadores de direito que atuaram em um processo julgado em primeira instância na 1ª Auditoria da Justiça Militar da União da 1ª Circunscrição Judiciária Militar. Diante dos fatos apontados e principalmente levando em consideração as provas dos autos, a conclusão é que a defesa pautou sua tese, exclusivamente, em depoimentos de testemunhas que não presenciaram os fatos; em versões dos acusados; e em estudos científicos não comprovados. O resultado foi a condenação por duplo homicídio doloso pelas mortes de Evaldo e Luciano e tentativa de homicídio contra Sérgio, por maioria dos votos do Conselho Especial de Justiça para o Exército, levando em consideração as provas orais, documentais e periciais contidas nos autos.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto Lei nº 1001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar.

FRANCO, Alberto da Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. V. 1- parte geral, 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

ARTWOHL, Alexis; CHRISTENSEN, Loren. Deadly Force Encounters, Second Edition: Cop and Citizens Defending Themselves and others. 2019.

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Sobre o autor
Luciano Gorrilhas

Subprocurador-geral de Justiça Militar

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GORRILHAS, Luciano. Caso Guadalupe – 82 tiros deflagrados em via pública por oito militares contra o carro de um músico:: da prisão em flagrante ao julgamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7024, 24 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100274. Acesso em: 22 dez. 2024.

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