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Da constitucionalidade e da conveniência da Lei Maria da Penha

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Notas

01 O que foi institucionalizado pelo regime dotal. Apesar de tal regime não ter tido eficácia social (efetividade) no Brasil, isso não impediu que os pais determinassem de forma decisiva o pretendente de suas filhas, servindo de prova disso a enormidade de ações judiciais pleiteando a anulação do casamento em virtude de coação sofrida do pai. Além das decisões que reconheceram tal modalidade de coação, mesmo aquelas de improcedência sob o fundamento de que se trataria de "mero temor reverencial" servem como prova da influência paterna, pois este "temor reverencial" sempre era tido como medo de expulsão de casa e mesmo agressões e/ou castigos severos, constituindo-se portanto como verdadeiro pavor reverencial – tamanho era tal pavor que mesmo nas hipóteses em que não teria supostamente se constituído a coação, no sentido técnico-jurídico entendido pela Jurisprudência, a mulher se sentiu constrangida a se casar para não desafiar a vontade do pai...

02 O que mais assusta nessa questão é que o princípio da igualdade sempre foi consagrado na legislação brasileira, donde não pode ser outra a conclusão a não ser aquela segundo a qual absurdamente se entendia como "lógica" e "racional" a concessão de menos direitos à mulher em relação ao homem, fosse na sociedade conjugal ou na vida em geral (já que a discriminação juridicamente válida é somente aquela pautada por motivos lógico-racionais que lhe justifiquem, dentre outros critérios brilhantemente esposados por Celso Antônio Bandeira de Mello em seu livro Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade).

03 WELTER, Belmiro Pedro (A norma da Lei Maria da Penha) apud DIAS, Maria Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica contra a mulher, 1ª Edição, 2007, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 15.

04 Termo aqui utilizado com o significado de deturpação da moral.

05Ibidem, pp. 15-19. Ressalto que parafraseei a lição da douta mestra, interpretando-a por vezes, sendo que a autora consegue um maior êxito que o deste artigo no sentido de obter uma narração muito mais precisa e didática dessas questões, característica esta de suas obras em geral.

06 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a mulher e seus direitos, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pp. 41-42.

07 BASTOS, Marcelo Lessa (Violência doméstica e familiar contra a mulher, p. 2), apud DIAS, Maria Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica contra a mulher, 1ª Edição, 2007, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 56.

08 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)

IV – promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

09 Para melhor compreensão do tema, cumpre tecer algumas considerações acerca do princípio da igualdade no ordenamento jurídico dos Estados Unidos. Inicialmente, em razão da controvérsia e da polêmica acerca de decisões políticas dos governantes estadunidenses, passou a Suprema Corte daquele país a exigir que haja um motivo racional que justifique a medida tomada e o objetivo pretendido. Neste caso há forte presunção de constitucionalidade em favor do ato praticado, bastando que aquele que o realizou prove a racionalidade do mesmo em relação ao objetivo pretendido. É o conhecido rational relationship test ("teste de relação racional"), que equivale ao aspecto material da isonomia constitucional brasileira. Todavia, outros dois critérios existem na aplicação da igualdade estadunidense. Nesse sentido, criou a Suprema Corte daquele país uma forte presunção de inconstitucionalidade para discriminações efetuadas contra determinados grupos, historicamente estigmatizados pela sociedade estadunidense em razão de características de sua identidade, não sendo estes grupos devidamente representados no Parlamento daquele país (como os negros). Assim, a simples racionalidade do rational relationship test passou a não ser suficiente neste caso: além dessa correlação racional, deve o Estado demonstrar que ela (discriminação) é imprescindível ao alcance de um compelling state interest ("objetivo primordial do Estado"), tarefa esta extremamente árdua. É o controle de constitucionalidade conhecido por stricty scrutny (em tradução livre, "critério de exame estritamente rigoroso"), originando as suspect classifications ("classificações suspeitas"). Por fim, a Suprema Corte Estadunidense entendeu que outras espécies de discriminações (como as sexuais, oriundas do gênero, sexo biológico da pessoa) precisavam de um controle de constitucionalidade mais rigoroso que o rational relationship test, todavia não tão rigoroso quanto o strict scrutiny, no qual o Estado deve provar a racionalidade da discriminação e que a mesma visa a consecução de um importante objetivo estatal, dando assim origem às semi suspect classifications ("classificações semi-suspeitas"). Este último critério de aplicação da isonomia estadunidense é o denominado intermediate scrutiny ("critério de exame intermediário"). Para um melhor entendimento do tema, remete-se o leitor a RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pp. 64-91.

10 Como dito, tal é o que ocorre no ordenamento jurídico dos EUA em relação à isonomia local, denominada "equal protection doctrine" (doutrina da igual proteção), por força de criação jurisprudencial que considero válida também para o Brasil, com a ressalva de que a inexistência de disposição expressa na Constituição no sentido de se considerarem algumas classificações mais suspeitas do que outras (sendo que ocorre tal distinção entre classificações é reconhecido pela jurisprudência estadunidense) torna necessário reconhecer que todas as cláusulas suspeitas sujeitam-se à necessidade de igual fundamentação para serem tidas como válidas.

11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, pp. 380-390.

12 É esse o entendimento de RIOS, Roger Raupp, O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: a Homossexualidade no Direito brasileiro e Norte-Americano, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 54, que afirma que "Em princípio, portanto, está exigido um tratamento igual, sendo permitido um tratamento desigual se e somente se for possível justificá-lo. / (...) / A garantia do direito de igualdade dá-se, pois, mediante a imposição de um ônus de argumentação e de prova por conta de quem afirmar a desigualdade e reivindicar um tratamento desigual". (grifos nossos).

13 Uma boa síntese da doutrina do Direito Penal Mínimo, que foi usada como base para a elaboração deste parágrafo, pode ser encontrada em TORRES, Douglas Dias. O Direito Penal na Atualidade. DireitoNet. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/33/33/333/> Acesso em: 02 mar. 2008. Outra síntese sobre as características das escolas penais em geral encontra-se em GOMES, Luiz Flávio. Lei Maria da Penha e Justiça Restaurativa. CluJus, Brasília-DF: 28 fev. 2008. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver2.16124>. Acesso em: 02 mar. 2008.

14 BARROSO, Luís Roberto. O DIREITO CONSTITUCIONAL E A EFETIIDADE DE SUAS NORMAS: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira, 8ª Edição, Rio de Janeiro-São Paulo-Recife: Editora Renovar, 2006, p. 60.

15TJ/MG, AC 1.0672.07.234359-9/001(1), Relator Desembargador Herculano Rodrigues, julgada em 01/11/2007, publicada em 21/11/2007.

16 FREITAS, Jayme Walmer de. IMPRESSÕES OBJETIVAS SOBRE A LEI DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, in Revista dos Tribunais n.º 864, ano 96, out. 2007, p. 434.

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17 DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha: afirmação de igualdade. ClubJus. Brasília-DF, 27 fev. 2008. Disponível em: <http://www.clubjus.com.br?artigos&ver=2.16100>. Acesso em; 02 mar. 2008.

18 No sentido do descabimento da expurgação de uma lei do mundo jurídico por não abarcar todos os seus merecedores, afirma o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, após afirmar que, em casos tais, a inconstitucionalidade não se encontra na norma ‘A’ ou ‘B’, mas na disciplina diferenciada das situações: "Essa peculiaridade do princípio da isonomia causa embaraços, uma vez que a técnica convencional de superação da ofensa (cassação, declaração de nulidade) não parece adequada na hipótese, podendo inclusive suprimir o fundamento em que assenta a pretensão de eventual lesado". (in MENDES, Gilmar Ferreira. DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: Estudos de Direitos Constitucional, 3ª Edição, 3ª Tiragem, São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 11).

19 Muito embora o tema possa ter outra alternativa, na medida em que inconstitucionalidades devem ser extirpadas pelo Poder Judiciário, o que, no caso da inconstitucionalidade por omissão oriunda de afronta à isonomia, deve implicar necessariamente na supressão da lacuna pelo Judiciário, como se interpretação analógica se tratasse, no campo do Direito Penal. Em suma, há de ser feita uma ponderação entre a obrigatoriedade de supressão de lacunas inconstitucionais pelo Poder Judiciário, oriunda da concepção de freios e contrapesos do princípio da Separação de Poderes (a única forma do Judiciário controlar a omissão inconstitucional é suprindo-a, de forma transitória, até que o Legislativo se digne a cumprir seu papel e extirpe dita lacuna) com a vedação constitucional à criminalização por analogia.

20 A íntegra da decisão pode ser encontrada no seguinte link: http://conjur.estadao.com.br/static/text/60661,1 (acesso em 23/10/07, 15h30).

21 A íntegra da nota de esclarecimento pode ser encontrada no seguinte link: http://conjur.estadao.com.br/static/text/60747,1 (acesso em 25/10/07, às 16h03)

22 Segue o inteiro teor da manifestação do Ministro Sepúlveda Pertence (in ADIN 2.076): "Sr. Presidente, independentemente da douta análise que o Eminente Ministro-Relator procedeu sobre a natureza do preâmbulo das Constituições, tomado em seu conjunto, esta locução "sob a proteção de Deus" não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada. Ela é uma afirmação de fato – como afirmou Clemente Mariane, em 1946, na observação recordada pelo eminente Ministro Celso de Mello – jactansiosa e pretensiosa, talvez – de que a divindade estivesse preocupada com a Constituição do Brasil. De tal modo, não sendo norma jurídica, nem princípio constitucional, independentemente de onde esteja, não é ela de reprodução compulsória aos Estados-membros. / Julgo improcedente a ação direta".

23 DIAS, Maria Berenice. A LEI MARIA DA PENHA NA JUSTIÇA: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica contra a mulher, 1ª Edição, 2007, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 59-60.

24Ibidem, p. 58.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da constitucionalidade e da conveniência da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1711, 8 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11030. Acesso em: 26 abr. 2024.

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