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Direitos, gênero e sexualidades: a ampliação da proteção na Lei Maria da Penha

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Resumo:


  • A decisão da Sexta Turma do STJ em 2022 ampliou a proteção da Lei Maria da Penha para mulheres transgênero e travestis, representando um avanço significativo no reconhecimento dos direitos dessa população.

  • A ausência de documentos e dados inclusivos sobre a violência doméstica contra a comunidade LGBTQIAPN+ dificulta a formulação de políticas públicas eficazes para proteger essa população.

  • A atualização do Formulário Nacional de Avaliação de Risco com campos inclusivos e sensíveis às diversas identidades de gênero é crucial para garantir uma proteção mais equitativa e abrangente contra a violência doméstica.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Como decisões do STJ e STF ampliam a Lei Maria da Penha para mulheres trans e casais homoafetivos? Como colmatar lacunas para proteger binários e não binários?

Resumo: O artigo analisa a ampliação do conceito de “mulher” na Lei Maria da Penha, destacando a proteção de mulheres trans, travestis, casais homoafetivos e pessoas não binárias. Explora a distinção entre sexo biológico e identidade de gênero como construção social, criticando o modelo binário vigente. Examina decisões recentes do STJ e do STF e propõe a atualização de instrumentos como o Formulário Nacional de Avaliação de Risco. Conclui pela necessidade de políticas públicas inclusivas e de preparo institucional para garantir proteção efetiva à população LGBTQIAPN+.

Palavras-chave: Gênero. Identidade. Lei Maria da Penha. População LGBTQIAPN+. Violência doméstica.


INTRODUÇÃO

A tradicional compreensão de "mulher" no ordenamento jurídico brasileiro, muitas vezes implícita na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), tem sido historicamente atrelada a uma visão binária de sexo, baseada em características biológicas. No entanto, o debate contemporâneo, impulsionado pelas ciências sociais, evidencia a distinção crucial entre sexo biológico e gênero como uma construção social, performativa e culturalmente moldada.

Nesse contexto de evolução conceitual, a decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça em 2022 representou um marco fundamental ao estender a proteção da Lei Maria da Penha para incluir mulheres transgênero e travestis. O artigo explora essa ampliação do conceito de "mulher", reconhecendo as identidades de gênero como intrínsecas à vivência e vulnerabilidade de indivíduos que desafiam as normas cissexistas e heteronormativas dominantes. Ao distinguir mulheres transexuais (nascidas com sexo biológico masculino, mas que se identificam com o gênero feminino) e travestis (que se identificam com o feminino sem necessariamente se conformar ao binarismo tradicional, sendo uma identidade latino-americana), o artigo sublinha a natureza psicológica e social da identidade de gênero, desvinculada do sexo biológico.

Apesar do inegável avanço representado pela decisão do Superior Tribunal de Justiça, o artigo também aponta limitações importantes, como a exclusão explícita de homens trans e pessoas não-binárias da proteção legal específica da Lei Maria da Penha, apesar de também enfrentarem violência e discriminação. Indivíduos não binários não se identificam exclusivamente como homens ou mulheres, abrangendo diversas expressões de gênero. Essa lacuna legislativa e jurisprudencial levanta questionamentos sobre a plena capacidade do sistema judicial e dos profissionais de lidar adequadamente com a diversidade de identidades de gênero, especialmente em contextos de violência doméstica.

Nesse sentido, o artigo enfatiza a necessidade de treinamento especializado para profissionais de segurança pública e saúde, incluindo aqueles responsáveis pelo exame de corpo de delito, para garantir um atendimento sensível, eficaz e respeitoso às vítimas com identidades de gênero diversas. A notificação compulsória da violência doméstica por profissionais de saúde, um instrumento essencial para a formulação de políticas públicas, também deve ser implementada considerando esse conceito ampliado de "mulher".

Em suma, a discussão sobre a extensão do conceito de "ser mulher" no ordenamento jurídico brasileiro reflete uma evolução necessária para garantir a proteção e a dignidade de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, embora ainda existam desafios e lacunas a serem superados.


A CONSTRUÇÃO DE NOVOS CONCEITOS

A sociedade contemporânea reflete a evolução humana, abrigando indivíduos de diversas culturas, etnias, cores, sexos e gêneros. Com o avanço dos estudos antropológicos, surgiram conceitos antes desconhecidos para a maioria, que representam a realidade de muitos indivíduos cuja identidade social foi ofuscada pelo Estado durante décadas, sendo vítimas de preconceito, discriminação e violência, alimentados por um sistema arcaico adotado em grande parte das sociedades ocidentais. Essas sociedades estabeleceram um sistema binário de reconhecimento de gênero, limitando as diversas identidades humanas aos conceitos de "homem/macho" e "mulher/fêmea", baseados em características físicas e psicológicas.

No entanto, a complexidade humana vai além desse binarismo, exigindo o reconhecimento dos direitos e necessidades das pessoas que não se encaixam nessa realidade. Pesquisadores começaram a distinguir sexo e gênero ao perceber que muitos indivíduos agiam de forma incongruente com seu sexo biológico. Na pesquisa de Rafael Kalaf Cossi: Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano, é discorrido sobre a obra do psicanalista Robert Stoller de 1968, "Sex and Gender", onde relatou o caso de um paciente do sexo feminino que se desviava de sua identidade biológica:

Durante minha relação sexual com uma mulher, eu na verdade sinto como se eu tivesse um pênis. Sinto-me totalmente masculino e superior à mulher com quem estou. Quando eu vivencio um orgasmo eu sinto que eu ejaculei. É difícil de explicar. Meu orgasmo não é uma sensação única, mas mais uma sensação espasmódica. Eu posso ter relações sexuais com uma mulher, ter um orgasmo e estar completamente satisfeito. Que eu tenho relação com um homem, eu tenho de ter (eu preciso ter) vários orgasmos antes que eu possa relaxar e sentir satisfeito.

(COSSI, Rafael Kalaf. Stoller e a psicanálise: da identidade de gênero ao semblante lacaniano. Estud. psicanal. [online]. 2018, n.49, pp.31-43. ISSN 0100-3437.) (grifo do autor)

Dessa forma, nota-se que o paciente de Stoller se sentia um homem independente de sua biologia, ao ponto de sentir que seu órgão genital é masculino. Por isso, a análise das identidades de gênero e a distinção entre sexo, gênero e orientação sexual é um assunto que vem sendo pesquisado e difundido por décadas ao decorrer do surgimento de novos conceitos.

O gênero se distingue por fazer parte da cultura, psicologia e socialização do indivíduo, não estando necessariamente vinculado a características sexuais. Assim sendo, o gênero, enquanto identidade, representa uma forma de caracterização de um grupo, baseada na maneira como este se apresenta na sociedade. Em 1949, a pesquisadora feminista Simone de Beauvoir (1908–1986) escreveu em seu livro "O Segundo Sexo" que "não se nasce mulher, torna-se mulher." Com essa perspectiva, a autora argumenta que, ao longo da vida, além do sexo biológico, a cultura desempenha um papel crucial na construção da personalidade. Portanto, o fato de nascer mulher (sexo) não implica automaticamente ser mulher (gênero). Isso ocorre porque, ao crescer, recebemos papéis sociais baseados em nossa aparência biológica: se somos identificados como fêmeas, espera-se que cuidemos do lar, enquanto se somos identificados como machos, espera-se que trabalhemos e provemos o sustento. Esses papéis referem-se à identidade de gênero, pela qual somos reconhecidos como homens ou mulheres. Nesse sentido, os autores Claudenilson Dias e Leonardo Coelho argumentam que:

Quando reagimos a alguém como masculino ou feminino não precisamos ver se ele ou ela tem pênis ou vagina, seios ou peito cabeludo. É principalmente a situação social que define o gênero (esposa=mulher, dentista=homem, e por aí vai) ou o gênero é visível como uma soma de qualidades, incluindo maneirismos, formas de falar, vestir, escolha de assuntos numa conversa e por aí vai. Gênero é um fato visível a maior parte do tempo: sexo não.

(DIAS; COELHO, p. 65) (grifo do autor)

No entanto, ao considerar o gênero exclusivamente em função do sexo biológico, excluímos do contexto indivíduos que possuem características biológicas tanto femininas quanto masculinas, como os intersexuais. Além disso, como nossa identidade de gênero está relacionada à forma como somos socializados, é perfeitamente possível que uma pessoa nasça com características biológicas masculinas, mas seja criada como mulher e, consequentemente, se identifique com o gênero feminino. Isso ocorre porque a identidade de gênero faz parte do “ser” do indivíduo, envolvendo como ele reage ao ambiente ao seu redor e sua percepção de si mesmo.

Mesmo quando alguém tem sua identidade de gênero identificada ao nascimento de acordo com suas características biológicas e é socializado como tal, isso não garante que a pessoa se identifique com essa identidade ao longo da vida. Durante o crescimento, novos valores são atribuídos e surgem novas características, como a formação da personalidade, a orientação sexual e o desenvolvimento sexual.

Além desses fatores, a compreensão do que significa ser “homem” ou “mulher” pode variar ao longo do tempo e entre diferentes culturas. Por exemplo, a ideia de ser homem ou mulher na Europa medieval é distinta daquela da América pré-colombiana e também difere da visão atual no Brasil globalizado. Essas concepções são construções sociais desenvolvidas ao longo de séculos, que moldaram nossas relações e instituíram papéis masculinos e femininos. Nesse contexto, o patriarcado, que predominou em muitas civilizações, contribuiu para as desigualdades de gênero, perpetuando a ideia de que ser masculino é “superior” a ser feminino.

Enquanto o gênero é construído, o sexo é inerente à pessoa.


SEXO, O QUE É?

Hodiernamente, o termo "sexo", como frequentemente entendido, é visto de forma binária, correspondendo à divisão entre machos e fêmeas com base em características biológicas visíveis, como genitália e cromossomos. No entanto, essa definição simples não captura toda a complexidade do conceito. Como Judith Butler sugere em Sexualidade e Gênero: Uma Introdução Crítica, "o sexo não é uma realidade dada, mas uma categoria que, por meio da repetição de atos e performances, vem a ser construída e naturalizada" (BUTLER, 2004, p. 29).

Biologicamente, o sexo é muitas vezes classificado com base em características como os cromossomos (XX ou XY), órgãos reprodutores (pênis ou vagina), hormônios sexuais e outras características secundárias que se desenvolvem na puberdade. No entanto, essa classificação ignora uma vasta gama de variações biológicas que não se encaixam confortavelmente nas categorias de "fêmea" e "macho". Indivíduos intersexuais, por exemplo, podem ter características sexuais que não se alinham com as expectativas sociais sobre o que é ser homem ou mulher, revelando a limitação dessa visão binária e a necessidade de uma compreensão mais fluida e inclusiva do sexo.

Assim sendo, a intersexualidade, portanto, questiona as normas fixas e desafiadoras do sistema de classificação do sexo, revelando que o conceito de sexo é mais complexo do que uma simples distinção entre cromossomos ou genitalidades. Portanto, a biologia humana, longe de ser simplista, apresenta uma gama de características físicas que podem não corresponder às convenções sociais de sexo, o que nos leva a repensar as maneiras como determinamos e classificamos o sexo.

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A INCLUSÃO DE PESSOAS TRANS E TRAVESTIS NOS MECANISMOS INSTITUCIONAIS DE PROTEÇÃO

Historicamente, antes que debates mais amplos sobre as pessoas trans emergissem, o termo "travesti" foi amplamente utilizado, muitas vezes de forma pejorativa, para se referir a pessoas designadas do sexo masculino ao nascer, mas que se identificavam com o gênero feminino. Essa identidade esteve por muito tempo associada à marginalização, exclusão social e violência, sobretudo pela presença marcante das travestis em espaços públicos como a prostituição, em razão da falta de oportunidades e do preconceito estrutural.

Com o tempo, a distinção entre os termos “travesti” e “transsexual” se consolidou. A primeira expressão passou a ser reivindicada politicamente por muitas travestis, que reconhecem sua identidade como legítima, mesmo sem recorrer a cirurgias de redesignação sexual. Já o termo “transsexual” é, em geral, utilizado por pessoas que se identificam com o gênero oposto ao seu sexo designado ao nascer e que desejam ou realizam modificações corporais por meio de terapias hormonais e/ou procedimentos cirúrgicos.

Segundo Bento (2014), a travesti não quer ser homem, mas também não reivindica ser mulher, no sentido tradicional e binário do termo. Ela constrói sua identidade em um campo de fronteira, recusando-se a ser colocada em uma das pontas da oposição homem/mulher (BENTO, 2014, p. 91).

Essa diferenciação aponta para a complexidade das identidades de gênero e a necessidade de respeitar os modos diversos de existência, superando o olhar patologizante que, por muito tempo, marcou os discursos sobre corpos dissidentes.

A trajetória das travestis e transexuais no Brasil é marcada por resistência e luta por direitos e dignidade. Desde a década de 1950, essas pessoas ganharam visibilidade, especialmente em grandes cidades, mas enfrentaram exclusão social e escassez de oportunidades de trabalho, o que as levou a atividades informais, como a prostituição.

Com a redemocratização, os movimentos sociais LGBTQIA+ passaram a ocupar espaços de reivindicação e disputa política, enfrentando séculos de exclusão e criminalização de seus corpos e identidades. Mais do que reivindicar políticas públicas, esses movimentos forçaram o Estado a reconhecer a pluralidade de existências possíveis. Desse modo, a conquista do uso do nome social, por exemplo, não é apenas um avanço administrativo ela representa um rompimento com a lógica cis normativa que deslegitima identidades dissidentes. O mesmo se aplica à instituição do Processo Transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que, embora limitado e desigual em sua implementação, simboliza o reconhecimento do direito à saúde de forma integral, conforme estabelecido na Portaria nº 1.707/2008 (BRASIL, 2008).

No entanto, essas conquistas coexistem com uma realidade de profunda violência. O Brasil figura há anos como o país que mais assassina pessoas trans no mundo, especialmente travestis e mulheres transexuais negras e periféricas (ANTRA, 2024). Essa contradição revela que os avanços formais em direitos não são suficientes para garantir dignidade material, sobretudo quando o preconceito está naturalizado nas estruturas sociais e estatais.

É justamente nesse contexto que a noção de direito como "inalienável" ganha força. Como sustenta Bobbio (2004), os direitos humanos são elementos fundamentais da dignidade, não podendo ser negados nem mesmo pela vontade do próprio titular. Portanto, garantir os direitos da população trans não é uma concessão do Estado, mas uma obrigação jurídica e ética.

A presença crescente de figuras trans na mídia tem sido crucial para desafiar estigmas e promover mudanças. A implementação da Lei Maria da Penha para mulheres trans e travestis ainda enfrenta resistências, especialmente em relação à identidade de gênero e à confusão com orientação sexual.

Além disso, a exigência de alterações documentais ou cirúrgicas para o reconhecimento pleno das identidades trans desconsidera a autodeterminação de gênero, perpetuando exclusão e constrangimento.

Os estereótipos patriarcais aumentam a vulnerabilidade das mulheres trans e travestis, cuja luta contra a violência começa na infância, ao desafiar padrões normativos. O silenciamento dessas vivências contribui para o ciclo de exclusão e violência. Para combater a violência e a transfobia estrutural, é necessário ampliar o debate, combater a desinformação e garantir a efetiva implementação de políticas públicas que assegurem direitos e dignidade às identidades trans.

Por fim, para que a violência contra pessoas trans e travestis deixe de ser naturalizada, é fundamental ampliar o debate sobre suas diversas formas de exclusão. O alto índice de homicídios dessa população, muitas vezes marcados por extrema brutalidade, evidencia um fenômeno que vai além da violência individual: trata-se de um reflexo da transfobia estrutural presente na sociedade. Dessa forma, garantir direitos, combater a desinformação e promover a efetiva implementação de políticas públicas são passos essenciais para assegurar a dignidade e o respeito às identidades trans e travestis. Por isso, a análise de atuação médica para as pacientes trans e travestis.


A INVISIBILIDADE DAS IDENTIDADES NÃO-BINÁRIAS E A AMPLIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA AOS CASAIS HOMOAFETIVOS

Os indivíduos não binários não se identificam exclusivamente como homens ou mulheres, e suas identidades podem incluir uma variedade de expressões de gênero fora do binário tradicional. Trata-se de um termo guarda-chuva que abrange diversas vivências, como o gênero fluido que transita entre o feminino e o masculino e o agênero, que não se identifica com nenhum dos dois. Apesar de sua existência concreta e da crescente visibilidade social, pessoas não binárias ainda enfrentam desafios severos no reconhecimento jurídico de sua identidade, especialmente no que diz respeito ao acesso igualitário à proteção legal contra a violência doméstica.

A decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferida em 22 de fevereiro de 2022, no Recurso Especial n. 1.977.124/SP (2021/0391811-0), de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, representou um importante avanço ao estender a proteção da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero e travestis. O julgado reconhece a distinção entre sexo e gênero como elemento central para a aplicação da norma protetiva:

“4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º, da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher. ”

(BRASIL, STJ, RE 1.977.124/SP, 2022, p. 2)

A decisão, embora inovadora, não contempla expressamente pessoas não binárias, deixando à margem do sistema de proteção jurídica um grupo igualmente vulnerável à violência de gênero. Essa exclusão revela um déficit de proteção que reforça a invisibilidade legal e institucional dessas identidades, que seguem sem respaldo específico em casos de violência doméstica e familiar, mesmo quando os padrões de opressão se assemelham aos vivenciados por mulheres cis e trans.

No mesmo contexto de ampliação jurisprudencial, destaca-se a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em fevereiro de 2025, no julgamento do Mandado de Injunção n. 7.452, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes. O STF reconheceu a omissão legislativa quanto à ausência de normas que estendam a Lei Maria da Penha a casais homoafetivos masculinos, decidindo que as medidas protetivas de urgência previstas na lei devem ser aplicadas, também, a esses casos, quando comprovada situação de vulnerabilidade da vítima:

“5. Considerando que a Lei Maria da Penha foi editada para proteger a mulher contra violência doméstica, a partir da compreensão de subordinação cultural da mulher na sociedade, é possível estender a incidência da norma aos casais homoafetivos do sexo masculino, se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação. 6. A não incidência da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares pode gerar uma lacuna na proteção e punição contra a violência doméstica, já que esses acontecimentos permeiam a sociedade de forma atroz. Há, portanto, uma responsabilidade do Estado em garantir a proteção, no campo doméstico, a todos os tipos de entidades familiares. 7. Configurada a omissão legislativa, ante a ausência de norma que estenda a proteção da Lei Maria da Penha aos homens GBTI+, vítimas de violência doméstica, circunstância que tem inviabilizado a fruição do direito fundamental à segurança por este grupo social, considerada especialmente a proibição de proteção deficiente oriunda do princípio da proporcionalidade. [...]"

(BRASIL, STF, MI 7.452, 2023, p. 2).

Além disso, nem a decisão do STJ nem a do STF mencionam explicitamente pessoas não binárias. O silêncio das cortes superiores sobre essas identidades reflete a fragilidade do sistema jurídico em responder de forma efetiva à complexidade do espectro de gênero contemporâneo. Pessoas não binárias continuam desprotegidas frente à violência doméstica e familiar, pois não são juridicamente reconhecidas como mulheres foco da proteção da Lei Maria da Penha nem são contempladas por outras leis com enfoque protetivo específico.

Portanto, ainda que os julgados mencionados representem passos importantes rumo à inclusão e à ampliação de direitos, é urgente que o Poder Judiciário, o Legislativo e as políticas públicas avancem para garantir uma proteção mais equitativa e abrangente, que inclua expressamente pessoas não binárias. A ausência dessa proteção implica não só em invisibilidade jurídica, mas também em omissão estatal diante da violência que atravessa essas existências. Para cumprir verdadeiramente sua missão de erradicar a violência doméstica, a Lei Maria da Penha precisa acompanhar a pluralidade de gênero existente na sociedade brasileira.

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Sobre as autoras
Aline Seabra Toschi

Doutora em Direito pelo Uniceub-DF, Mestre em Ciências Penais pela UFG. Professora de Processo Penal e coordenadora do estágio do Curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis-GO.

Nádia Vieira Fraga

Graduanda em Direito pela UniEvangélica – Universidade Evangélica de Goiás. Estagiária jurídica no Escritório Ferreira Rezende Advocacia em Anápolis/GO, com vivência prática nas áreas cível, criminal e consumerista. Discente pesquisadora do NPDU (Núcleo de Pesquisa em Direito UniEvangélica), no Programa de Valorização da Iniciação Científica (PVIC), com produção de artigos acadêmicos voltados à defesa dos direitos humanos, com ênfase em temas relacionados à equidade de gênero, diversidade e justiça social.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOSCHI, Aline Seabra ; FRAGA, Nádia Vieira. Direitos, gênero e sexualidades: a ampliação da proteção na Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8075, 10 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114349. Acesso em: 5 dez. 2025.

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