4. Análise Dogmática e Constitucional da Lei nº 15.150/2025, Criminologia Crítica e Direito Penal Simbólico
A promulgação da Lei nº 15.150/2025, ao inserir nova qualificadora no artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, representa, do ponto de vista formal da técnica legislativa, um pequeno avanço na tentativa de enfrentamento da crônica vagueza típica que, desde sua origem, compromete a estrutura dogmática do crime de maus-tratos a animais. Pela primeira vez, o legislador deixa de se valer exclusivamente de conceitos abertos — como “abusar” e “maltratar” — e passa a indicar de maneira expressa, ainda que de modo restrito, uma conduta que entende — acertadamente ou não — como configuradora de maus-tratos: a realização ou permissão da realização de tatuagens e a colocação de piercings em cães e gatos, quando destinadas exclusivamente a fins estéticos.
Por outro lado, impõe-se o enfrentamento de outra questão: há, de fato, lesividade suficiente nessa conduta a ponto de justificar a intervenção do Direito Penal?
O princípio da lesividade ou ofensividade, verdadeira cláusula de contenção do poder punitivo no Estado Democrático de Direito, estabelece que nenhuma conduta pode ser legitimamente criminalizada sem que implique efetiva lesão ou, no mínimo, perigo concreto a um bem jurídico relevante. Não há espaço, em um modelo penal racional, para a criminalização de comportamentos que não ultrapassem a esfera do moralismo, da reprovação social subjetiva ou da estética pública.
Sob a ótica da política criminal e da criminologia, a intervenção penal só se justifica, conforme doutrina clássica, quando o comportamento a ser criminalizado preenche quatro requisitos: (i) incidência massiva na sociedade; (ii) incidência aflitiva do fato praticado; (iii) persistência espaço-temporal; e (iv) consenso inequívoco quanto à necessidade de sua repressão.
Nenhum desses critérios se verifica, de forma robusta, no contexto que motivou a edição da Lei nº 15.150/2025. Não se trata de uma prática que possua incidência massiva na sociedade brasileira, mas de condutas isoladas, e, na maior parte das vezes, episódicas, desprovidas de qualquer relevância estatística ou epidemiológica no panorama da proteção animal. Da mesma forma, a incidência aflitiva do fato praticado não se revela evidente: ainda que eticamente questionável sob determinadas perspectivas, a realização de tatuagens ou piercings — quando conduzida em ambiente asséptico, sem dor, com acompanhamento veterinário e sem comprometimento funcional — não gera, necessariamente, sofrimento físico, dor intensa ou dano permanente ao animal, muito menos lesão ao meio ambiente ou à coletividade.
O terceiro critério — persistência espaço-temporal — também não se verifica. Não há, na realidade brasileira, qualquer indicativo de que essa prática constitua fenômeno social persistente, estrutural, generalizado ou relevante a ponto de justificar o emprego do Direito Penal. Ao contrário, os registros de tais condutas são pontuais, explorados midiaticamente e destituídos de qualquer expressão criminológica concreta. Por fim, inexiste consenso inequívoco e legítimo quanto à intolerabilidade social da conduta, especialmente quando se observa que práticas como o adestramento coercitivo, o confinamento de aves ornamentais, a manutenção de animais em espaços restritos — muitas vezes aceitas social e culturalmente — sequer são objeto de criminalização específica, revelando a seletividade e o viés cultural da legislação.
Cumpre destacar, a título de reflexão crítica, que determinadas condutas socialmente toleradas quando direcionadas à espécie humana encontram tratamento penal rigoroso quando praticadas em relação a animais. É o que se observa, por exemplo, na prática culturalmente difundida de perfuração dos lóbulos auriculares de recém-nascidos para colocação de brincos, ato realizado sem qualquer consequência penal. Contraditoriamente, conduta funcionalmente análoga — a colocação de piercings em animais — enseja, nos termos da Lei nº 11.150/2025, pena de reclusão de dois a cinco anos. Tal assimetria normativa suscita inevitável debate acerca da coerência dogmática e da proporcionalidade das escolhas legislativas, notadamente quando se observa que, no mesmo ordenamento jurídico, atos menos gravosos praticados contra seres humanos são sancionados com penas significativamente mais brandas, como ocorre, exemplificativamente, no delito de lesão corporal simples tipificado no artigo 129 do Código Penal.
Diante desse quadro, a nova qualificadora revela-se, na essência, expressão típica do direito penal simbólico, no qual a atuação legislativa não se orienta por critérios técnico-jurídicos de proteção efetiva de bens jurídicos relevantes, mas sim pela necessidade de emissão de sinais normativos, de resposta a pressões midiáticas e de produção de efeitos psicológicos no imaginário social. Trata-se de um modelo de criminalização puramente performático, dissociado da efetiva tutela penal de bens jurídicos. Em síntese, a criação da nova qualificadora trazida pela Lei nº 15.150/2025, embora formalmente avance sutilmente na densificação típica, carece de justificativa material robusta sob o prisma do princípio da lesividade, além de desafiar diretamente os princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade penal, pilares inafastáveis de qualquer modelo de direito penal racional, democrático e constitucionalmente legítimo.
Conclusão
O presente artigo teve por objetivo analisar a (in)constitucionalidade do tipo penal de maus-tratos a animais, à luz dos princípios estruturantes do Direito Penal e do Direito Constitucional.
O desenvolvimento analítico empreendido ao longo deste artigo conduz, de forma inequívoca, à constatação de que o tipo penal de maus-tratos a animais, tal como atualmente estruturado no ordenamento jurídico brasileiro - inclusive após as alterações promovidas pela Lei nº 15.150/2025 -, padece de inconstitucionalidade material, por flagrante violação a princípios fundamentais que limitam legitimamente o exercício do poder punitivo em um Estado Democrático de Direito.
A análise detalhada da conformidade constitucional do tipo penal permitiu evidenciar que a legislação vigente afronta, de modo direto e incontornável, os princípios da legalidade penal estrita, da taxatividade, da segurança jurídica, da razoabilidade, da proporcionalidade, da fragmentariedade e da intervenção mínima. Soma-se a esses vícios a quebra do princípio da lesividade, na medida em que certas condutas criminalizadas - como a realização de tatuagens e piercings em cães e gatos, quando destituídas de dor, sofrimento ou comprometimento funcional - embora reprováveis, não possuem carga ofensiva real e concreta suficiente para justificar a grave reação penal.
No plano metodológico, o tipo penal de maus-tratos se revela estruturalmente defeituoso, seja pela vagueza dos verbos nucleares que compõem sua descrição típica (“abusar”, “maltratar”), seja pela adoção de um modelo de criminalização que privilegia espécies específicas, concedendo proteção penal mais severa a cães e gatos, em manifesta violação ao princípio da universalidade da proteção ambiental, consagrado no artigo 225 da Constituição.
Diante desse quadro, impõem-se, de forma inadiável, duas soluções normativamente legítimas, dogmaticamente consistentes e constitucionalmente adequadas:
A elaboração de um tipo penal que utilize, corretamente, a técnica da interpretação analógica, mediante a formulação de um rol exemplificativo de condutas, seguido de uma cláusula geral que capte, de forma objetiva, situações funcionalmente equivalentes de sofrimento, dor, privação, estresse ou comprometimento ao bem-estar animal. Tal técnica, amplamente aceita na dogmática penal contemporânea, permitiria que o tipo penal possuísse densidade normativa suficiente para garantir segurança jurídica, sem abrir mão da necessária flexibilidade interpretativa que a proteção da fauna exige diante das constantes mudanças sociais, científicas e culturais. No entanto, essa opção parece não ser a mais adequada se considerarmos o constante anseio de punibilidade em relação a condutas contra animais. Subsistiriam, por exemplo, dúvidas quanto à caracterização típica da conduta de manter um animal preso por meio de corrente, especialmente no que se refere à aferição do grau de sofrimento imposto e aos limites em relação a tempo máximo e comprimento da corrente.
Assim, mais adequada seria a edição de uma norma penal em branco formal e expressamente estruturada, na qual o legislador delimite o núcleo essencial do injusto penal - a proibição de práticas que atentem contra a integridade física, o bem-estar e a dignidade dos animais -, delegando, de forma expressa, objetiva e controlável, ao Ministério do Meio Ambiente ou órgão ambiental competente, a competência para detalhar, pormenorizar e atualizar, por meio de atos administrativos normativos as condutas que, à luz dos avanços científicos, técnicos e éticos, devam ser consideradas maus-tratos. Este modelo encontra respaldo sólido na jurisprudência e na doutrina, especialmente no que se refere à proteção de bens jurídicos difusos e de natureza técnica, como o meio ambiente.
A manutenção do modelo vigente - assentado na vagueza semântica, na seletividade e na ausência de parâmetros objetivos - não apenas compromete a efetividade da proteção penal dos animais, como também viola de forma estrutural as garantias constitucionais que regem o direito penal em sociedades democráticas. Persiste, portanto, um modelo de criminalização arbitrário, simbólico e dogmaticamente insustentável, que demanda correção legislativa urgente como imperativo jurídico, ético e constitucional.
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