Resumo: O presente artigo aborda as complexas implicações jurídico-penais relacionadas ao fenômeno das apostas online no Brasil, com enfoque específico no denominado “jogo do tigrinho” e similares. A análise contempla a configuração da contravenção penal de exploração de jogos de azar prevista no Decreto-Lei nº 3.688/1941, bem como sua correlação com os crimes de estelionato (artigo 171 do Código Penal), lavagem de capitais (Lei nº 9.613/1998) e organização criminosa (Lei nº 12.850/2013). O estudo examina a legislação penal aplicável, os elementos constitutivos dos tipos penais em questão e os desafios enfrentados pelo sistema de justiça criminal brasileiro diante da transnacionalidade e do ambiente virtual em que tais condutas se desenvolvem, sem a pretensão de esgotar o tema, que passa por constante evolução. Analisa-se também a aplicação da lei brasileira no caso de cometimento de infrações penais, considerando a territorialidade e o lugar do crime, especialmente no contexto das plataformas hospedadas em servidores estrangeiros, porém com condutas e resultados lesivos ocorridos no território nacional. Por fim, apresenta-se uma reflexão crítica acerca das lacunas normativas existentes e da necessidade de aprimoramento do arcabouço legal para o enfrentamento eficaz desse fenômeno criminoso contemporâneo.
INTRODUÇÃO
A proliferação das plataformas digitais e a popularização do acesso à internet, aliadas à crescente cultura de jogos eletrônicos, criaram um terreno fértil para a expansão das apostas online no Brasil. Nesse cenário, modalidades como o denominado “jogo do tigrinho” ganharam notoriedade nos últimos anos, atraindo milhares de usuários com promessas de ganhos rápidos e vultosos. Trata-se de jogos de aposta em plataformas digitais, geralmente hospedadas em servidores estrangeiros, que simulam caça-níqueis virtuais com animações gráficas atraentes e mecanismos de recompensa psicologicamente estudados para maximizar o engajamento do usuário.
A questão que se coloca, sob a perspectiva jurídico-penal, é complexa e multifacetada. De um lado, tem-se a tradicional proibição dos jogos de azar no ordenamento jurídico brasileiro, consubstanciada na contravenção penal prevista no artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941. De outro, verifica-se uma realidade social em transformação, com iniciativas normativas recentes que buscam regular determinadas modalidades de apostas, como as apostas esportivas de quota fixa (Lei nº 13.756/2018, alterada pelas Leis nº 14.183/2021 e nº 14.790/2023, e Portaria SPA/MF n.º 1.207/2024).
Nesse contexto de transição normativa e incertezas jurídicas, emergem diversas condutas potencialmente criminosas associadas à exploração não regulamentada de jogos de azar online, que podem configurar não apenas a contravenção penal tradicionalmente aplicável, mas também delitos mais graves, como o estelionato, a lavagem de capitais e a organização criminosa. Essa combinação de infrações penais, quando presente, eleva substancialmente o desvalor da conduta exigindo resposta punitiva estatal correspondente.
Um aspecto crucial desse fenômeno reside na aplicação da lei brasileira às infrações cometidas por meio de plataformas digitais hospedadas em servidores estrangeiros. A determinação do lugar do crime e a aplicação do princípio da territorialidade representam desafios hermenêuticos significativos para os operadores do direito, demandando uma interpretação atualizada dos dispositivos do Código Penal e da Lei das Contravenções Penais à luz da realidade virtual contemporânea.
O presente estudo propõe-se a analisar as implicações penais decorrentes da exploração e participação em jogos eletrônicos, como o “jogo do tigrinho” e similares, examinando os elementos constitutivos dos tipos penais potencialmente aplicáveis, a incidência da lei penal brasileira nesse contexto transnacional e os desafios hermenêuticos enfrentados pelos operadores do direito diante de um fenômeno relativamente novo e em constante evolução.
1. O “Jogo do Tigrinho” e as Apostas Online no Contexto Jurídico Brasileiro
O denominado “jogo do tigrinho” consiste em uma modalidade de jogo de azar online que simula, em ambiente virtual, as tradicionais máquinas caça-níqueis, apresentando um sistema de apostas baseado predominantemente no fator sorte. Sua denominação deriva da presença recorrente da figura de um tigre como símbolo principal do jogo, embora existam variações com diferentes temáticas. O funcionamento básico envolve o depósito de valores pelo usuário, a realização de apostas em rodadas sucessivas e a possibilidade de ganhos multiplicados conforme combinações predeterminadas pelo algoritmo do jogo.
A exploração desses jogos ocorre principalmente por meio de plataformas digitais hospedadas em servidores estrangeiros, com operação transnacional, dificultando sobremaneira a fiscalização e aplicação da legislação brasileira. A divulgação e promoção dessas plataformas frequentemente ocorrem por meio de influenciadores digitais e figuras públicas, que atraem potenciais apostadores com demonstrações de ganhos aparentemente fáceis e substanciais, omitindo os riscos inerentes e a probabilidade matemática desfavorável ao jogador.
No ordenamento jurídico brasileiro, a exploração de jogos de azar é tradicionalmente vedada, constituindo contravenção penal nos termos do artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais). Entretanto, ao longo dos últimos anos, verificou-se um movimento pendular do legislador, ora flexibilizando, ora recrudescendo o tratamento jurídico dispensado a determinadas modalidades de jogos e apostas.
Merece destaque a Lei nº 13.756/2018, alterada pela Lei nº 14.183/2021, que autorizou a exploração de apostas esportivas de quota fixa, as chamadas “bets”, estabelecendo um marco regulatório específico para essa modalidade. Em dezembro de 2023, foi sancionada a Lei nº 14.790/2023, que estabeleceu novos parâmetros para a regulamentação das apostas de quota fixa, instituindo requisitos mais rigorosos para a obtenção de licença de operação no país e prevendo mecanismos de combate à lavagem de dinheiro e prevenção à ludopatia.
E, mais recentemente, a Portaria da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda nº 1.207, de 29 de julho de 2024, representa um marco significativo na regulamentação dos jogos online no Brasil, estabelecendo requisitos técnicos detalhados para jogos online e estúdios de jogos ao vivo a serem observados pelos agentes operadores de loteria de apostas de quota fixa.
2. A regulamentação de Jogos Online e Apostas Esportivas
A Portaria SPA/MF nº 1.207, de 29 de julho de 2024, traz definições cruciais para a compreensão do universo dos jogos online. Define “sistema de apostas” como o sistema informatizado gerido pelos operadores que possibilita o cadastro dos apostadores e o gerenciamento de suas carteiras virtuais. O “jogo online” é caracterizado como canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo cujo resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, símbolos, figuras ou objetos. Já o “estúdio de jogo ao vivo” é conceituado como ambiente físico que utiliza tecnologia de transmissão de vídeo ao vivo para fornecer jogos online.
Um aspecto fundamental da portaria é a delimitação clara do que não se enquadra na modalidade de evento virtual de jogo online de aposta de quota fixa. Conforme o parágrafo único do artigo 3º, estão excluídos desta categoria: jogos de habilidade, fantasy sports, jogos multiapostador e jogos entre apostadores peer-to-peer (P2P). Esta exclusão é relevante para a análise de diversos jogos atualmente populares no mercado.
A norma estabelece que os jogos online devem apresentar, no momento da aposta, um fator de multiplicação para cada unidade de moeda nacional apostada, definindo claramente quanto o apostador poderá receber em caso de premiação. O resultado deve ser determinado por evento futuro aleatório, com base em gerador randômico, e as tabelas de pagamento, com todas as possibilidades de ganho, devem ser disponibilizadas antes da realização das apostas.
Outro ponto crucial é a exigência de certificação dos jogos online e estúdios por entidades certificadoras reconhecidas pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda. Os certificados devem atestar a conformidade com os requisitos técnicos definidos na portaria e em seus anexos, sendo necessária revalidação sempre que houver alteração de componentes críticos.
No que tange especificamente a jogos eletrônicos, como o “tigrinho” (Fortune Tiger), popular nas plataformas de apostas online, a análise é complexa. Este jogo, essencialmente um caça-níqueis virtual, apresenta características que parecem enquadrá-lo na definição de “jogo online” da portaria, pois utiliza um gerador randômico para determinar seus resultados. Nesse pormenor, a Lei 14.790/2023 ampliou a definição de apostas de quota fixa para incluir eventos “reais ou virtuais”, o que potencialmente abrangeria jogos desta natureza.
Contudo, o jogo do tigrinho apresenta similaridades com os “jogos de colisão” (crash) mencionados especificamente na portaria (item 14 do Anexo I). Estes são definidos como jogos em que o apostador faz uma aposta em um valor de multiplicador que aumenta gradualmente até ocorrer um resgate ou colisão. A portaria estabelece requisitos específicos para estes jogos, como a necessidade de aleatoriedade (e não baseados na habilidade do apostador), indicação clara da frequência de aumento do multiplicador, valor máximo permitido, e valor mínimo para resgate.
Um aspecto crítico é a proibição expressa de “prêmios misteriosos”, definidos como aqueles pagos por um jogo que não estão associados a uma combinação específica da tabela de pagamentos (item 38 do Anexo I). Este ponto é relevante para jogos como o tigrinho, onde a transparência sobre as combinações premiadas é essencial para a conformidade regulatória.
A portaria também estabelece um retorno teórico ao apostador (RTP) mínimo de 85% durante a vida útil do jogo (item 28 do Anexo I), obrigando a divulgação clara deste percentual e de como foi determinado. Esta exigência visa garantir transparência e evitar práticas predatórias contra os apostadores.
Adicionalmente, o art. 9º da portaria veda expressamente a oferta de apostas em jogos online em estabelecimentos físicos, por meio de equipamentos ou outros dispositivos, o que impacta diretamente operações que utilizam terminais físicos para acesso a jogos como o tigrinho.
À luz da Lei 13.756/2018 e suas alterações pela Lei 14.790/2023, a regulamentação do setor de apostas de quota fixa ganhou contornos mais definidos. O art. 29. da Lei 14.790/2023 define esta modalidade como “sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico”. A alteração incluiu expressamente os eventos virtuais no escopo da regulamentação, diferentemente da redação original que mencionava apenas eventos reais de temática esportiva.
Analisando juridicamente, jogos como o tigrinho, embora possam teoricamente se enquadrar na definição ampliada de apostas de quota fixa que inclui eventos virtuais, precisam cumprir todos os requisitos técnicos estabelecidos na portaria para serem considerados legais. Isso inclui certificação, transparência nas regras e tabelas de pagamento, RTP mínimo, e ausência de prêmios misteriosos, entre outros.
A estrutura regulatória estabelecida pela portaria e pela legislação busca garantir transparência, integridade e proteção aos apostadores. Os operadores de jogos como o tigrinho precisarão adequar seus produtos a estes requisitos técnicos rigorosos ou enfrentarão consequências legais. Esta regulamentação representa um esforço significativo para transformar um mercado anteriormente operando na informalidade em um setor regulado, com padrões técnicos claros e proteção ao apostador.
Nestas circunstâncias, embora a regulamentação tenha aberto espaço para jogos virtuais além das apostas esportivas tradicionais, o enquadramento legal de jogos eletrônicos, como o tigrinho, dependerá de sua adequação aos parâmetros técnicos estabelecidos, sendo que, caso não seja regularizado, sujeitará os agentes responsáveis à lei penal aplicável.
3. A Aplicação da Lei Penal Brasileira aos Jogos de Azar Online: Territorialidade e Lugar do Crime
A questão da aplicação da lei penal brasileira aos jogos de azar online, hospedados em servidores estrangeiros mas disponíveis para apostadores em território nacional, constitui ponto fundamental para a compreensão das implicações jurídico-penais desse fenômeno. A análise deve partir dos princípios basilares do direito penal brasileiro relativos à territorialidade e à determinação do lugar do crime.
O Código Penal brasileiro, em seu artigo 5º, consagra o princípio da territorialidade como regra geral para aplicação da lei penal, estabelecendo que “aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional”. O conceito de território nacional, para fins penais, abrange não apenas o espaço físico delimitado pelas fronteiras geográficas, mas também o mar territorial, o espaço aéreo, os navios e aeronaves brasileiros, públicos ou a serviço do governo, onde quer que se encontrem, bem como os navios e aeronaves brasileiros, mercantes ou de propriedade privada, em alto-mar ou no espaço aéreo correspondente.
Complementando esse dispositivo, o artigo 6º do Código Penal adota a teoria da ubiquidade para determinação do lugar do crime, preceituando que “considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”. Essa teoria mista permite considerar como local do crime tanto o lugar da conduta quanto o lugar do resultado, ampliando significativamente o alcance da lei penal brasileira.
No âmbito das contravenções penais, o artigo 2º do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais) estabelece que “a lei brasileira só é aplicável à contravenção praticada no território nacional”. Embora aparentemente mais restritivo, esse dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o conceito de território nacional e a teoria da ubiquidade adotada pelo Código Penal.
Aplicando esses preceitos ao contexto dos jogos de azar online, como o “jogo do tigrinho”, verifica-se que, mesmo quando as plataformas estão hospedadas em servidores estrangeiros, diversos elementos da conduta criminosa ocorrem efetivamente em território nacional. Entre esses elementos, destacam-se: a divulgação e promoção das plataformas por influenciadores digitais que atuam no Brasil; o acesso dos apostadores às plataformas a partir de dispositivos localizados no território nacional; o depósito de valores por meio de instituições financeiras brasileiras; a conversão de moeda nacional em créditos para apostas; e, principalmente, o resultado lesivo, consubstanciado no prejuízo patrimonial sofrido pelos apostadores brasileiros e na violação da ordem pública e econômica nacional.
No caso específico dos jogos de azar online, a aplicação desses princípios conduz à conclusão de que, quando a plataforma é acessível a apostadores localizados no Brasil, permitindo a realização de apostas em território nacional e produzindo resultados lesivos à ordem pública e econômica brasileira, a lei penal pátria é plenamente aplicável, ainda que os servidores estejam localizados no exterior.
Essa interpretação considera a internet não como um território à parte, imune às legislações nacionais, mas como um meio pelo qual condutas criminosas podem ser praticadas, atravessando fronteiras físicas, mas produzindo efeitos concretos em jurisdições específicas. Quando esses efeitos se manifestam no Brasil, atingindo bens jurídicos tutelados pela legislação penal brasileira, justifica-se a aplicação da lei nacional. Além de juridicamente consistente, essa interpretação é essencial para evitar a impunidade e assegurar a efetiva proteção dos bens jurídicos tutelados pela legislação penal pátria no contexto da criminalidade cibernética transnacional.
4. A Contravenção Penal de Exploração de Jogos de Azar
A contravenção penal de exploração de jogos de azar encontra-se tipificada no artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941, nos seguintes termos:
Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do local. § 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de dezoito anos.
O tipo penal descreve a conduta de “estabelecer” ou “explorar” jogo de azar, sendo que “estabelecer” significa instalar, fundar, criar, enquanto “explorar” denota aproveitar-se economicamente, tirar proveito. O objeto material da contravenção é o jogo de azar, definido no § 3º do mesmo artigo como sendo: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local autorizado; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.
O bem jurídico tutelado pela norma contravencional é a ordem pública, mais especificamente o interesse estatal no controle de atividades potencialmente lesivas à economia popular e aos bons costumes. Existe no parágrafo primeiro uma causa de aumento de pena quando há, entre os empregados ou participantes do jogo, envolvendo de criança ou adolescente. Cuida-se de infração de menor potencial ofensivo, sujeita ao procedimento e aos benefícios despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/1995 (que instituiu o Juizado Especial Criminal).
Trata-se de infração penal formal, que se consuma independentemente da obtenção de resultado econômico pelo agente, bastando a efetiva exploração ou estabelecimento do jogo. Cuida-se, ademais, de contravenção penal de ação múltipla, podendo ser praticada tanto por quem estabelece quanto por quem explora o jogo de azar.
No contexto específico do “jogo do tigrinho” e similares, cumpre analisar se e como se configura a contravenção penal em ambiente virtual. Embora o tipo penal faça referência a “lugar público ou acessível ao público”, a melhor interpretação, consentânea com a evolução tecnológica e a realidade social contemporânea, é a de que o ambiente virtual, quando acessível indistintamente pelos usuários da rede mundial de computadores, equipara-se ao conceito de “lugar acessível ao público” para fins penais.
Nesse sentido, é possível a configuração de tipos penais tradicionalmente associados ao ambiente físico em contextos virtuais, desde que presentes os elementos essenciais do tipo. A interpretação teleológica da norma contravencional, considerando sua finalidade de proteção da ordem pública e da economia popular, conduz à conclusão de que a exploração de jogos de azar em plataformas digitais enquadra-se perfeitamente no âmbito de incidência do artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941.
Quanto à autoria, respondem pela contravenção penal os responsáveis pela criação, manutenção e administração das plataformas de jogos, bem como aqueles que, de qualquer modo, contribuem para sua exploração econômica.