CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, constata-se que a igualdade, ainda que formal em sua estrutura, exerce papel central na limitação da atividade legislativa, exigindo que as diferenciações sejam fundadas em critérios objetivos, conectados a finalidades legítimas e constitucionalmente previstas, e compatíveis com os princípios da justiça e da proporcionalidade. Isso se impõe de forma ainda mais rigorosa quando se trata de políticas públicas voltadas a grupos vulneráveis, como as pessoas com deficiência.
No âmbito tributário, a igualdade adquire contornos específicos e se expressa por meio da justiça fiscal, estruturada a partir de critérios como capacidade contributiva, equivalência e benefício, a depender da natureza do tributo. Entretanto, essas balizas não são absolutas. Podem ceder, quando necessário, à realização de outros valores constitucionais, como a promoção da igualdade material e a inclusão social. Nessas hipóteses, exige-se um exame rigoroso de proporcionalidade, que assegure a legitimidade e a razoabilidade da intervenção.
O uso da tributação como instrumento de inclusão das pessoas com deficiência é legítimo, necessário e constitucionalmente imposto. A proteção das PCDs não decorre de benevolência legislativa, mas de mandamento normativo expresso na Constituição Federal e em tratados internacionais de direitos humanos com status constitucional, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD). Tais dispositivos impõem uma proteção eficiente e vedam retrocessos nas conquistas já consolidadas, especialmente quando formalizadas por políticas públicas concretas, como a desoneração tributária na aquisição de veículos.
O conceito de pessoa com deficiência, conforme o modelo biopsicossocial adotado pela CDPD e pela Lei Brasileira de Inclusão, é amplo, relacional e contextual. Reduzir esse conceito a listas fechadas de impedimentos físicos ou a graus de comprometimento arbitrários, como fez a LC nº 214/2025, significa desconsiderar a essência normativa da proteção constitucional. A tentativa de transformar um conceito constitucionalmente fluido em categorias estanques, vinculadas a diagnósticos biomédicos ou à capacidade de dirigir, representa vício material grave e incompatível com a ordem jurídica vigente.
Além disso, o argumento de “correção de distorções” utilizado para justificar a limitação do regime favorecido para PCDs não se sustenta, sobretudo diante da manutenção ou ampliação de benefícios fiscais a setores que não ostentam a mesma condição de vulnerabilidade. O artigo demonstrou, com exemplos concretos, que o tratamento conferido às pessoas com deficiência é mais restritivo do que aquele dispensado a categorias como taxistas - o que revela uma inversão da lógica constitucional e um descompasso valorativo grave.
A análise demonstrou que a LC nº 214/2025, ao regulamentar o regime favorecido de IBS/CBS para aquisição de veículos por PCDs, incorre em múltiplas inconstitucionalidades: viola o princípio da igualdade, promove retrocessos vedados, compromete a finalidade da política pública e impõe barreiras normativas que excluem pessoas que deveriam estar contempladas. Não se trata de aperfeiçoamento técnico da política, mas de sua descaracterização - o que exige resposta firme do sistema de controle de constitucionalidade.
É necessário afirmar, com todas as letras, que a desoneração tributária voltada às PCDs constitui espécie de ação afirmativa de natureza extrafiscal. Seu fundamento não está na capacidade contributiva nem em critérios clássicos da justiça tributária, mas sim na busca pela justiça social, pela superação das barreiras impostas às pessoas com deficiência e pela efetivação da igualdade material. Trata-se de um instrumento legítimo, proporcional e exigido constitucionalmente — e não de uma benesse revogável por juízo discricionário do legislador.
Assim, impõe-se o reconhecimento das inconstitucionalidades aqui identificadas, bem como o afastamento das restrições introduzidas pela LC n. 214/2025. A função contramajoritária do Poder Judiciário servirá para preservar a supremacia da Constituição, proteger os grupos vulneráveis e assegurar que o novo sistema tributário sobre o consumo não perpetue exclusões, mas se converta em ferramenta efetiva de inclusão, equidade e justiça.
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Abstract: This article analyzes the regulation of the preferential IBS/CBS regime for the acquisition of vehicles by persons with disabilities (PWDs) within the context of the Tax Reform introduced by Constitutional Amendment No. 132/2023 and Complementary Law No. 214/2025. The methodology adopted includes literature review, as well as analysis, interpretation, and critique of the relevant legislation and case law. The study is grounded in the theory of tax equality, the prohibition of social retrogression, and the extrafiscal function of taxation as a tool for social inclusion. It begins with the understanding of the biopsychosocial model of disability, incorporated into Brazilian law by the Convention on the Rights of Persons with Disabilities, and demonstrates how the current regulation diverges from this paradigm by unduly restricting the definition of disability, imposing arbitrary criteria, and promoting discriminatory treatment. Furthermore, the limitation of tax relief to partial transaction values, the comparison with more generous preferential regimes, and the exclusion of “non-visible” disabilities are identified as violations of equality, efficient protection, and the prohibition of retrogression. The article concludes that Complementary Law n. 214/2025 is partially unconstitutional in this respect and highlights the need for judicial intervention to uphold the normative force of the Constitution and ensure the effectiveness of the rights of persons with disabilities.
Key words : Tax reform; Persons with disabilities; Tax equality; Social retrogression; Affirmative action.