Resumo: O presente artigo analisa a natureza jurídica do tráfico privilegiado, previsto no art. 33, §4º, da Lei n. 11.343/2006, e sua (in)compatibilidade com a classificação de crime hediondo. Discute-se a evolução legislativa, a posição doutrinária e, sobretudo, a consolidação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que culminou na edição da Súmula Vinculante 63, segundo a qual o tráfico privilegiado não configura crime hediondo, afastando a aplicação de parâmetros mais rigorosos de progressão de regime e de livramento condicional. O trabalho sustenta que o reconhecimento dessa incompatibilidade está alinhado aos princípios constitucionais da individualização da pena e da proporcionalidade, além de representar avanço na política criminal brasileira.
Palavras-chave: tráfico privilegiado; hediondez; súmula vinculante; STF; política criminal.
1. INTRODUÇÃO
O tráfico ilícito de drogas, em sua forma típica, é considerado crime hediondo desde a Lei n. 8.072/1990. A gravidade do delito justificou o enquadramento em um regime jurídico mais severo.
Entretanto, com a Lei n. 11.343/2006, o legislador criou a figura do tráfico privilegiado, uma causa especial de diminuição de pena destinada a distinguir o pequeno traficante primário, de bons antecedentes e sem vínculos com organizações criminosas, do traficante profissional.
A problemática central reside em saber se o tráfico privilegiado deve ou não ser considerado crime hediondo. Durante anos, a jurisprudência oscilou entre aplicar automaticamente a hediondez a todas as formas de tráfico ou reconhecer a incompatibilidade dessa classificação com a modalidade privilegiada.
Essa discussão foi pacificada com a aprovação da Súmula Vinculante 63 do STF, que afastou, de forma definitiva e obrigatória, a natureza hedionda do tráfico privilegiado.
2. O REGIME JURÍDICO DO TRÁFICO PRIVILEGIADO
O art. 33, §4º, da Lei de Drogas estabelece causa de diminuição de pena de um sexto a dois terços quando o agente é primário, possui bons antecedentes e não integra organização criminosa nem se dedica a atividades criminosas.
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
[...]
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos , desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Lei de Drogas, online, grifos nossos)
Essa previsão objetiva diferenciar os pequenos traficantes ocasionais dos integrantes de redes organizadas, permitindo resposta penal mais proporcional, e a aplicação da pena de forma individualizada, nos termos do ordenamento jurídico. A criação do tráfico privilegiado materializa a intenção do legislador de mitigar a severidade penal para agentes que não se dedicam profissionalmente ao crime.
A doutrina penalista é uníssona ao classificar o como uma causa de diminuição de pena de natureza subjetiva, ou seja, está ligada às condições pessoais do agente, e não à natureza do crime em si.
Alguns autores (NUCCI, 2021; BITENCOURT, 2022) ressaltam que os requisitos cumulativos (primariedade, bons antecedentes, não dedicação a atividades criminosas e não integração a organização criminosa) demonstram a menor reprovabilidade da conduta, afastando o caráter transnacional ou de alta periculosidade que justifica o rigor da hediondez.
3. O HISTÓRICO DA EQUIPARAÇÃO COM A HEDIONDEZ
A Lei de Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/1990) equiparou o tráfico de drogas a crime hediondo em sua modalidade geral. A interpretação literal levou, por anos, à aplicação dessa equiparação também ao tráfico privilegiado, in verbis:
Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I - anistia, graça e indulto;
II - fiança.
(Lei de Crimes Hediondos, online)
Vale destacar ainda, o comando constitucional, no art. 5º, XLIII, sobre o tema, in verbis:
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. (CRFB/88, online)
Essa leitura, contudo, gerava desproporcionalidade: indivíduos sem vínculo com organizações criminosas eram submetidos a regimes mais rigorosos que réus condenados por crimes como o homicídio simples. Se por um lado a edição da norma cumpria uma ordem constitucional, por outro lado descumpria outras normas e princípios fundamentais, dentre eles a individualização da pena.
No campo da Criminologia, o rigor excessivo imposto indiscriminadamente ao tráfico é criticado como um reflexo da seletividade do sistema penal. Alguns autores (SHECAIRA, 2021; ANDRADE, 2012) apontam que a equiparação automática contribui para a criminalização massiva da pobreza, atingindo desproporcionalmente jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade, que são justamente o público do tráfico privilegiado, e não os líderes do crime organizado.
Se por um lado a edição da norma cumpria uma ondem constitucional, por outro lado descumpria outras normas e princípios fundamentais, dentre eles a individualização da pena.
Do ponto de vista da Ciência Política, a edição da Súmula Vinculante 63 representa um exercício de contramajoritário do STF, que intervém para corrigir a distorção gerada por um legislador influenciado pelo populismo penal. Ao restabelecer o padrão de razoabilidade e aplicar o princípio da proibição do excesso, o Supremo sinaliza um freio à política de encarceramento em massa, conferindo à norma penal um sentido mais alinhado aos Direitos Fundamentais e à dignidade da pessoa humana.
4. A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL ATÉ 2025: O PAPEL DO STF NA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL
Diante desse cenário legislativo, doutrinário e decisões judiciais, a jurisprudência sobre o tema passou por três fases em sua evolução, refletindo o embate entre a literalidade da lei e a concretização dos princípios constitucionais.
4.1. Equiparação automática
Inicialmente, tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça entendiam que a hediondez abrangia todas as formas de tráfico. Essa fase foi marcada por uma jurisprudência de submissão, na qual o Judiciário aplicava a equiparação literal do tráfico à hediondez, conforme a Lei n. 8.072/1990, sem realizar o controle de proporcionalidade necessário para distinguir as condutas. O resultado prático foi o encarceramento massivo de agentes de menor periculosidade sob os rigores de um regime penal excessivo.
Neste sentido, podemos observar um jugado do STJ, in verbis:
DIREITO PENAL. PROGRESSÃO DE REGIME NO TRÁFICO DE DROGAS. RECURSO REPETIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).
A partir da vigência da Lei 11.464/2007, que modificou o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/1990, exige-se o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, para a progressão de regime no caso de condenação por tráfico de drogas, ainda que aplicada a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. O art. 2º da Lei 8.072/1990 equiparou o delito de tráfico de entorpecentes aos crimes hediondos, dispondo, no § 2º do mesmo artigo, que a progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos no caput, somente poderá ocorrer após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. Por sua vez, o tipo penal do tráfico de drogas está capitulado no art. 33. da Lei 11.343/2006, que, em seu § 4º, estabelece que as penas poderão ser reduzidas de 1/6 a 2/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Constata-se, de plano, da leitura desses dispositivos, que o art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/1990 não excluiu de seu rol o tráfico de drogas quando houver a aplicação da minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. Se assim o quisesse, poderia o legislador tê-lo feito, uma vez que a redação atual do dispositivo, conferida pela Lei 11.464/2007, é posterior à vigência da Lei 11.343/2006. Outrossim, observa-se que a causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 elenca, como requisitos necessários para a sua aplicação, circunstâncias inerentes não à conduta praticada pelo agente, mas à sua pessoa - primariedade, bons antecedentes, não dedicação a atividades criminosas e não integração de organização criminosa. Dessa forma, a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 NÃO AFASTA A HEDIONDEZ do crime de tráfico de drogas, pois a sua incidência não decorre do reconhecimento de uma menor gravidade da conduta praticada e tampouco da existência de uma figura privilegiada do crime. A criação da minorante tem suas raízes em questões de política criminal, surgindo como um favor legislativo ao pequeno traficante, ainda não envolvido em maior profundidade com o mundo criminoso, de forma a lhe propiciar uma oportunidade mais rápida de ressocialização. Precedentes citados do STF: AgRg no HC 114.452-RS, Primeira Turma, DJe 8/11/2012; do STJ: HC 224.038-MG, Sexta Turma, DJe 27/11/2012, e HC 254.139-MG, Quinta Turma, DJe 23/11/2012.
REsp 1.329.088-RS , Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/3/2013. (STJ, online, grifos nossos)
A interpretação restritiva do tráfico ilícito de entorpecentes como categoria única, sem ressalvas para a forma privilegiada, levou à consolidação da tese da hediondez em todas as instâncias, fato que se materializou na Súmula 512 do STJ (2014) já cancelada, in verbis:
Súmula 512 do STJ: A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas.
(STJ, online, grifos nossos)
Tal entendimento expressava a literalidade da lei, ao passo que ignorava os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena. Foi essa rigidez, plasmada em súmula, que motivou a posterior intervenção do Supremo Tribunal Federal para restaurar a razoabilidade do sistema.
4.2. Virada jurisprudencial (2016): A moderação do poder punitivo
O ano de 2016 marcou o ponto de inflexão. No julgamento do HC 118.533/MS, o Plenário do STF reconheceu que o tráfico privilegiado não é hediondo.
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.072/90 AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO: INVIABILIDADE. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33. da Lei de Tóxicos. 2. O tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa. 3. Há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores da Lei n. 8.072/90. 4. Ordem concedida.
(HC 118.533/MS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 16-09-2016 PUBLIC 19-09-2016) (STF, online, grifos nossos)
Esta decisão representou um ato de jurisdição constitucional, corrigindo a distorção gerada pela rigidez legislativa. O Supremo agiu como moderador, reconhecendo que aplicar o regime mais severo a um agente primário e sem vínculos com o crime organizado violava frontalmente os princípios da individualização da pena e da proporcionalidade.
4.3. Consolidação (2025): A força vinculante na política criminal
Em 30 de setembro de 2025, o STF aprovou a Súmula Vinculante 63, com o seguinte enunciado:
“O tráfico privilegiado (art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006) não configura crime hediondo, afastando-se a aplicação dos parâmetros mais rigorosos de progressão de regime e de livramento condicional.”
Insta salientar ainda que, em 31/05/2025, no julgamento do RE 1542482, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada. No mérito, por unanimidade, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, e sob o Tema 1400, o Supremo fixou a seguinte tese:
É constitucional a concessão de indulto a condenado por tráfico privilegiado, uma vez que o crime não tem natureza hedionda.
(STF, online, grifos nossos)
A edição da súmula encerrou de forma definitiva a controvérsia, conferindo segurança jurídica e previsibilidade ao sistema. Mais do que uma decisão jurídica, a SV 63 é um instrumento de política criminal judiciária, que vincula todo o Poder Judiciário e a administração pública , assegurando a aplicação uniforme da lei e pavimentando o caminho para um sistema penal mais justo e razoável.
5. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ENVOLVIDOS
A decisão do STF e a súmula vinculante se fundamentam em princípios constitucionais que norteiam a aplicação da pena de forma individualizada, de modo a conferir a garantia dos direitos fundamentais ao autor do delito de tráfico privilegiado.
A aplicação desses princípios é o alicerce para afastar a hediondez. A individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI) exige, conforme ensina a doutrina de (GRECO, 2023) e (PRADO, 2022), que o juiz considere as particularidades do caso, e não apenas o tipo penal abstrato.
O Princípio da Proporcionalidade , por sua vez, atua como um limitador do poder punitivo do Estado, impedindo que sanções desmedidas sejam aplicadas a condutas cuja ofensividade é notoriamente menor, como ocorre com o traficante ocasional.
Por sua vez, o Princípio da Individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI), assegura tratamento diferenciado aos casos concretos. A individualização da pena, prevista constitucionalmente, exige que a resposta penal seja calibrada e individualizada em três fases (legislativa, judicial e executória), não permitindo a aplicação cega da lei (TOLEDO, 2020).
Para autores como (JESUS, 2020) e (TOLEDO, 2020), a criação de causas de diminuição de pena, como o tráfico privilegiado, é um exemplo da individualização da pena em seu momento legislativo. Desse modo, o legislador já reconhece a menor reprovabilidade da conduta do agente primário, exigindo que o Judiciário (momento judicial da individualização) aplique sanção menos severa e, consequentemente, afaste a hediondez. A aplicação indiscriminada da Lei n. 8.072/1990 violava frontalmente esse mandamento constitucional, que busca a justiça no caso concreto.
Vale ainda destacar o Princípio da Razoabilidade, que harmoniza a política criminal com a realidade social, afastando distorções na aplicação da lei. Embora seja um princípio não taxativo na Constituição, a razoabilidade, ou a sua manifestação mais técnica, a proibição do excesso, é essencial na jurisdição constitucional.
Conforme sustenta (STRECK, 2022), no âmbito da Hermenêutica, decisões judiciais que resultam em manifesta desproporção e incoerência lógico-jurídica tendem a ferir a racionalidade do sistema. A equiparação do pequeno traficante, sem ligação com o crime organizado, a um criminoso hediondo não passava pelo crivo da razoabilidade, pois gerava um desequilíbrio notório na balança penal. A Súmula Vinculante 63, ao corrigir essa distorção, restabeleceu o padrão de razoabilidade na política criminal de drogas.
6. IMPACTOS DA SÚMULA VINCULANTE 63
A edição da Súmula Vinculante 63 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não apenas pacificou o entendimento jurídico, mas produziu reflexos institucionais e político-criminais imediatos, impactando diretamente o sistema de execução penal.
6.1. O Alívio no Sistema de Execução Penal
O principal impacto do afastamento da hediondez reside na Execução da Pena. A decisão do STF e a Súmula Vinculante 63 proíbem a aplicação automática dos rigores da Lei n. 8.072/1990 ao tráfico privilegiado. As consequências práticas são significativas, dentre elas:
A Progressão de Regime, na qual, os condenados por tráfico privilegiado deixam de ser submetidos aos requisitos mais gravosos exigidos para crimes hediondos. Enquanto o crime hediondo impõe frações mais rigorosas (como 2/5 para primários ou 3/5 para reincidentes, dependendo do regime legal aplicável à época), o tráfico privilegiado passa a ser regido por parâmetros menos severos, permitindo que o apenado acesse a progressão de regime em prazos consideravelmente menores, o que é um fator crucial para a ressocialização.
E a Concessão de Benefícios Impeditivos. A classificação do tráfico privilegiado como crime não hediondo viabiliza a concessão de benefícios legalmente vedados para crimes equiparados. O Art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, proíbe expressamente a concessão de graça, anistia ou indulto para o tráfico ilícito de entorpecentes3.
Nesse sentido, o STF, no julgamento do RE 1542482 (Tema 1400), reafirmou a jurisprudência dominante ao fixar a tese de que “É constitucional a concessão de indulto a condenado por tráfico privilegiado, uma vez que o crime não tem natureza hedionda”. Este entendimento reforça o caráter menos gravoso da conduta e permite que o Poder Executivo aplique o instituto da graça e do indulto, mitigando o rigor da sanção penal para casos de menor reprovabilidade.
6.2. Segurança Jurídica e Coerência Institucional
A Súmula Vinculante 63 desempenha uma função crucial no campo da Segurança Jurídica. Como um instrumento de jurisdição constitucional, ela uniformiza a jurisprudência em todo o Poder Judiciário e na Administração Pública.
A uniformização põe fim à divergência jurisprudencial que, por anos, submeteu réus com a mesma condição (primários, sem vínculo com o crime organizado) a regimes de cumprimento de pena distintos, dependendo da Vara ou Tribunal que os julgava.
Ao vincular todos os juízes e tribunais, a súmula garante a previsibilidade e a isonomia no tratamento penal, fortalecendo a confiança no sistema de justiça e na coerência das políticas criminais.
6.3. Contribuição para uma Política Criminal Razoável
Em uma perspectiva de Política Criminal, a Súmula Vinculante 63 atua como um mecanismo de racionalização do sistema penal.
A decisão do STF é um freio ao populismo penal que influenciou a equiparação automática de todas as formas de tráfico à hediondez. Ela reintroduz o critério da razoabilidade, exigindo que o Estado reserve o tratamento mais severo apenas aos verdadeiros crimes de alta periculosidade.
O impacto mais amplo reside na capacidade de reduzir a população carcerária. Uma vez que o tráfico privilegiado atinge desproporcionalmente indivíduos em situação de vulnerabilidade (jovens e mulheres) — um reflexo da seletividade do sistema penal —, o afastamento da hediondez permite a aceleração da progressão de regime desses apenados.
Em última análise, a Súmula Vinculante 63 fortalece a eficácia do § 4º do Art. 33. da Lei de Drogas: ela assegura que a intenção original do legislador, que era diferenciar o pequeno traficante, seja efetivamente aplicada no momento crucial da execução da pena.