Em vigor há cerca de três anos, a Lei n.º 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, promulgada com o objetivo de prevenir, reprimir e punir a violência perpetrada pelo homem contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, vem sendo, desde o seu nascedouro, tema de frequentes debates e discussões, tanto na doutrina, como na jurisprudência.
Dentre as muitas polêmicas e divergências a respeito da lei e de seus institutos inovadores, merece destaque a questão da natureza jurídica da ação penal nos crimes de lesão corporal de natureza leve (artigo 129, § 9º, do Código Penal), delito que provavelmente representa o maior número de casos relacionados à violência doméstica. Trata-se de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação da vítima?
O artigo 41 da Lei n.º 11.340/06 cuidou de vedar expressamente a aplicação da Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, o autor de uma ameaça ou de uma lesão corporal leve, perpetradas no âmbito doméstico contra a mulher, independentemente da pena cominada in abstrato, não tem direito aos benefícios da Lei dos Juizados Especiais Criminais (composição civil dos danos, transação penal e suspensão condicional do processo). Em que pese a existência de respeitáveis vozes em contrário, o entendimento predominante é no sentido da constitucionalidade do referido artigo 41, que está em pleno vigor e vem sendo rotineiramente aplicado pelos tribunais brasileiros.
O debate se acirra quando se discute a natureza jurídica da ação penal nos crimes de lesão corporal leve contra a mulher no âmbito doméstico (artigo 129, § 9º do Código Penal), cuja pena é de 03 (três) meses a 03 (três) anos de detenção.
O Superior Tribunal de Justiça ainda não consolidou entendimento sobre o tema, já tendo decidido em ambos os sentidos. Para se ter uma idéia da divergência, no julgamento do Habeas Corpus n.º 106.805, em fevereiro de 2009, a sexta turma reafirmou entendimento no sentido de que a ação penal é pública incondicionada:
"... as famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, de forma que os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.
Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve ou culposa para a propositura da ação penal.
Não se aplicam aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, os ditames da Lei n.º 9.099/1995. Inteligência do artigo 41 da Lei n.º 11.340/2006.
A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse diploma legal, sendo a ação penal pública incondicionada" [01].
Todavia, um mês depois (dia 05 de março de 2009), ao decidir o Habeas Corpus n.º 113.608, a mesma sexta turma do Superior Tribunal de Justiça mudou o entendimento anterior, considerando a ação penal pública condicionada à representação:
... "o art. 16 da Lei n.º 11.340/06 é claro ao autorizar a retratação, mas somente perante o juiz. Isto significa que a ação penal, na espécie, é dependente de representação.
Outro entendimento contraria a nova filosofia que inspira o Direito Penal, baseado em princípios de conciliação e transação, com o objetivo de humanizar a pena e buscar harmonizar os sujeitos ativo e passivo do crime" [02].
Diante de tamanha divergência e dos inúmeros recursos especiais em trâmite, o Tribunal da Cidadania, em boa hora, fixará entendimento definitivo sobre o tema, nos termos do disposto no artigo 543-C do Código de Processo Civil (acrescentado pela Lei n.º 11.672/08), valendo ressaltar que foi concedido o prazo de quinze dias para que pessoas, órgãos ou entidades interessadas se manifestem sobre a controvérsia.
Na doutrina, a questão não é menos polêmica. Tão logo promulgada a lei, o Professor Damásio Evangelista de Jesus publicou artigo defendendo que o delito de lesão corporal leve no âmbito doméstico depende de representação da vítima:
"Segundo entendemos, a Lei n. 11.340/2006 não pretendeu transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contrariaria a tendência brasileira da admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria meios de restaurar a paz no lar. Público e incondicionado o procedimento policial e o processo criminal, seu prosseguimento, no caso de a ofendida desejar extinguir os males de certas situações familiares, só viria piorar o ambiente doméstico, impedindo reconciliações" [03].
Em sentido contrário, embora admitindo dificuldades de sustentação da tese na prática, prelecionam os Promotores de Justiça no Estado de São Paulo Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto:
"... sem embargo da sustentação teórica que embasa nosso posicionamento, fica, na prática, um tanto complicada a defesa do argumento no sentido de que a representação é desnecessária. A deflagração de um processo-crime, contra a manifesta vontade da ofendida, resultará, decerto, em uma medida ineficaz. Isso porque a vítima, que não tem simpatia pelo processo e que, antes, não o deseja, tratará de dificultar a obtenção da prova, invocando situações fáticas que conduzam à absolvição do agente. Em suma: a ação penal nos crimes de lesão corporal leve passa a ser, com o advento da lei, pública incondicionada, feita a ressalva acima" [04].
Conforme anotado, o Superior Tribunal de Justiça fixará entendimento definitivo sobre a questão, a ser seguido pelos tribunais estaduais, e andará bem se decidir pela possibilidade de retratação da vítima ("renúncia à representação").
Vejamos os motivos.
O artigo 16 da Lei n.º 11.340/06 dispõe expressamente que nas ações penais públicas condicionadas à representação, a renúncia à representação só será admitida perante o juiz, em audiência especialmente designada para esse fim e depois de ouvido o promotor de justiça. Em que pese a impropriedade terminológica (o correto seria o uso da expressão retratação da representação e não renúncia à representação), o espírito da lei é no sentido de conferir ao ato de "renúncia" o máximo de formalidade. A vítima somente pode retratar-se em ato solene, na presença do juiz e do promotor de justiça, de forma a garantir total segurança, liberdade e espontaneidade em sua manifestação de vontade. A audiência é designada para que a vítima tenha a oportunidade de se manifestar de forma livre, serena e desimpedida. Se assim está descrito na lei, parece claro que o dispositivo também alcança o delito de lesão corporal leve.
Além disso, a norma insculpida no artigo 88 da Lei n.º 9.099/95 (que prevê a necessidade de representação nos crimes de lesão corporal leve) foi nela inserida de forma incidental, não sendo essencialmente voltada à Lei dos Juizados Especiais Criminais.
Por outro lado e sob outro enfoque, cabe à mulher, dotada de capacidade e discernimento, avaliar a conveniência ou não do prosseguimento do processo contra seu agressor. Se a vítima se retrata (em ato solene e formal, perante o juiz e o promotor), afirmando que não deseja o prosseguimento do processo, pois a paz voltou a reinar no lar conjugal, melhor não seria o Estado respeitar essa vontade e por fim ao processo? Será que o processo contra o agressor, nestes casos, somente não iria reacender um conflito aparentemente solucionado e pacificado entre as partes, impedindo a reconciliação de muitos casais? Sendo possível a continuidade da família, seria razoável a interferência estatal no lar conjugal? E a produção da prova em juízo, não seria dificultada, ante a manifesta vontade da vítima em não processar o agressor?
São indagações que pairam no ar, sem respostas, levando o intérprete a crer que a intenção do legislador, ao estabelecer a restrição contida no artigo 41 da Lei Maria da Penha, foi exclusivamente a de afastar a incidência dos institutos despenalizadores da Lei n.º 9.099/95 aos crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. A ação penal, no entanto, nos crimes de lesão corporal leve, continua a depender da vontade da vítima.
A tese contrária (ação penal pública incondicionada) aproxima-se do ultrapassado modelo clássico de resolução de litígios (justiça conflitiva), onde não há possibilidade de acordos, chocando-se, ademais, com os modernos postulados do direito penal, que rezam pelo consenso, pela conciliação, pela transação e pela mínima intervenção estatal. A decisão está nas mãos do Superior Tribunal de Justiça, cuja orientação com certeza será seguida pelos Tribunais de Justiça Estaduais, juízes de direito, promotores de justiça, delegados de polícia e demais operadores do direito.
Notas
- STJ, HC n.º 106.805 – MS (2008/0109328-3), Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), extraído do site www.stj.gov.br, transcrição de trechos da ementa
- STJ, HC n.º 113.608 – MG (2008/0181162-2), Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador Convocado do TJSP), extraído do site www.stj.gov.br, transcrição de trechos da ementa
- JESUS, Damásio de. Da Exigência de representação da ação penal publica por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, set. 2006, disponível em www.damasio.com.br
- Violência Doméstica, Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), comentada artigo por artigo, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 2008, pág. 206