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O superendividamento, o consumidor e a análise econômica do Direito

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Resumo: O presente trabalho analisa a realidade do consumidor superendividado brasileiro diante do microssistema consumerista instaurado através da Lei n. 8078/90, Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC e da análise econômica do direito - AED. Para tanto, apresentaram-se as características essenciais do consumidor superendividado e as principais causas que têm contribuído para o aumento do superendividamento no Brasil sob o prisma dos direitos fundamentais e da transdisciplinaridade. Examina-se a existência no ordenamento jurídico brasileiro de norma específica para tratamento da situação do superendividamento, como ocorre em outros países, a exemplo da França. Analisa-se a atuação da Defensoria Pública na proteção do cidadão-consumidor superendividado. Questiona-se sobre a urgência de uma regulamentação específica para esse consumidor que se encontra superendividado, do controle da oferta abusiva de crédito e qual a importância da análise econômica do direito neste processo. Verifica-se que no Estado do Ceará aproximadamente 66% da demanda consumerista defensorial versa sobre superendividamento. Conclui-se pela necessidade de reconhecimento do problema cuja solução interessa não apenas ao consumidor, mas igualmente ao fornecedor de crédito diante da possibilidade de exclusão do cidadão superendividado do mercado de consumo e do aumento da insegurança pública em face do seu afastamento das mínimas condições de vida digna. Sugere-se o reconhecimento do serviço de concessão de crédito como nocivo e perigoso e, por consequência, que se veiculem advertências em sua publicidade, tal qual já ocorre com as de cigarro e bebida alcoólicas, para que se possa ter um desenvolvimento econômico e social justo, equilibrado e sustentável.

Palavras-chave: Consumidor. Superendividamento. Desamparo legal. Defensoria Pública.

Sumário: 1. Introdução. 2. O consumidor e o superendividamento. 2.1. O superendividamento. 2.2. O consumidor superendividado. 2.3. Características do consumidor superendividado. 2.3.1. Consumidor pessoa física. 2.3.2. A boa-fé do consumidor. 2.3.3. A inadimplência do consumidor. 3. Análise Econômica do Direito e o superendividamento. 3.1. Algumas causas do superendividamento: a mora do fornecedor e a facilidade de concessão do crédito. 3.1.1. Empréstimos consignados. 3.1.2. Prática do anatocismo. 3.1.3. Publicidade enganosa e abusiva. 4. Perspectivas e Soluções para o superendividamento. 4.1. Legislação. 4.1. 2. O Código de Proteção e Defesa do Consumidor. 4.1. 3. O sistema francês de proteção ao superendividado. 4.2. Jurisprudência. 5. Conclusão. 6. Referências Bibliográficas.


"“Dinhêro trensforma tudo / dinhêro é quem leva e traz / eu nem quero nem dizê/ tudo o que o dinheiro faz / apenas aqui eu conto que ele pra tudo tá pronto / ele é cabrero treidô é carras e é vingativo / só presta prá ser cativo / não presta pra ser senhô. (...) Dinhêro é um fogo ardente que faz munto coração / se derretê como cera na quintura do tição / dinhêro trensforma tudo faz de um alegre um sisudo dá nó e desmancha nó e finarmente o dinheiro é o maior feticêro é o Rei do Catimbó.”"

Patativa do Assaré1


1. Introdução

A cultura do consumo atinge os consumidores de todas as classes sociais e de todas as idades. O fornecimento do crédito para a aquisição dos produtos ou serviços quando realizado em desacordo com o Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC propicia o endividamento.

Não é por acaso que a crise imobiliária que atingiu os Estados Unidos em 2007 e ameaçou a economia mundial teve por um dos principais pontos o endividamento das famílias americanas e nem é coincidência que nos últimos anos tem se ouvido cada vez mais a expressão "análise econômica do direito" que já passa a ser conhecida por AED.

A questão do superendividamento no Brasil, apesar do notável crescimento entre os consumidores, ainda é – não obstante algumas exceções - tratado como questão de (des)controle financeiro individual (e até mesmo como prodigalidade). Olvida-se que se trata, de fato, de um problema econômico e social, análise que já ocorre em outros países, como a França. Tal omissão afeta diretamente a dignidade do cidadão-consumidor que se vê não raras vezes sem condições de suprir suas necessidades mais básicas, como saúde e alimentação e, pelo sutil nexo de causalidade da responsabilidade pela concessão do crédito, culpa-se e sofre pela situação.

Como para que um fato seja regulado pelo direito é preciso primeiro reconhecê-lo, o superendividado brasileiro ainda não possui amparo jurídico consolidado (a própria expressão "superendividamento" ainda é vista com preconceitos e forma de se eximir do pagamento de dívidas, de "estelionato por via judicial", de "proteção exacerbada"). Todavia, o CDC é uma lei principiológica que pode e deve ser usada para enfrentar tais questões, mormente em face do seu artigo 7o que reconhece o microssistema consumerista como um sistema aberto e estimula o diálogo das fontes.

O trabalho aqui desenvolvido, assim, tem como objetivo geral compreender o superendividamento como consequência de fatores econômico, social e jurídico, advertindo-se que apenas os "superendividados passivos de boa-fé" merecem a proteção do Estado.

Quanto aos aspectos metodológicos, esta pesquisa foi do tipo bibliográfico, procurando explicar e entender o assunto em tratamento através da consulta de obras que abordem direta ou indiretamente o tema a ser exposto; jurisprudencial, através do estudo de decisões de Tribunais brasileiros sobre o tema; bem como documental, através da análise do Código de Defesa do Consumidor e dos relatórios mensais de atividades do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará.

O primeiro tópico trata sobre o consumidor e o superendividamento. Busca-se inicialmente fazer uma abordagem apresentando o tema principal e esclarecendo as características do consumidor superendividado.

Em seguida, trata-se da Análise Econômica do Direito e do Superendividamento, discorre-se sobre a facilidade da concessão do crédito; a prática dos empréstimos consignados; o anatocismo e a publicidade enganosa e abusiva bem como da ausência de poder de negociação do consumidor.

O terceiro e último item, perspectivas e soluções para o superendividamento, aborda a legislação brasileira e francesa, o pensamento doutrinário e jurisprudencial sobre o assunto bem como analisa a importância da atuação Defensoria Pública nesta questão.


2. O consumidor e o superendividamento

Para tratar um problema é preciso, antes, diagnosticá-lo. No Brasil o inicio do reconhecimento do superendividamento se deve, entre outros atos e ações, à bem sucedida experiência de pesquisa realizada em parceria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com o Núcleo Cível da Defensoria gaúcha, sob a coordenação conjunta da Professora Cláudia Lima Marques e da Defensora Pública Adriana Fagundes Burger.

A pesquisa realizada em 2004 e ainda atual revelou, entre outros dados que:

  • a) o número de devedores "passivos" é quatro vezes maior que o de devedores "ativos" (é considerado devedor ativo aquele que "gasta mais do que ganha" e passivo, o que, pela facilidade exacerbada de concessão do crédito e/ou diante de uma situação imprevisível – doença, desemprego, nascimento de filho – vê-se em condições de endividamento),

  • b) que a maioria dos entrevistados deve para mais de dois credores,

  • c) que a grande maioria não recebeu o contrato, nem antes – como determina os arts. 46. e 52 do Código de Defesa do Consumidor – CDC – nem depois da realização do negócio,

  • d) que apenas para 21% dos entrevistados foi exigida alguma garantia.

Daí surgiram conclusões, consolidadas na "Carta de Porto Alegre", entre as quais a da necessidade de criação de "concordata para o consumidor", da aplicação do direito de arrependimento nas ofertas de credito (CDC, artigo 49) bem como da provocação à aplicação do artigo 4802 do Código Civil às questões de endividamento do consumidor (tendo em vista a porta aberta deixada pelo artigo 7º do CDC).

Não obstante os argumentos da responsabilidade pelo endividamento ainda não tenham sido analisados de maneira explícita pelo Superior Tribunal de Justiça, alguns tribunais estaduais (a exemplo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) já atendem à pesquisa nominal de decisões com o verbete superendividamento. Por consequência, em breve, a questão será certamente levada a julgamento no nosso Tribunal responsável pela uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional, o STJ.

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, bem como a do Rio Grande do Sul, há mais de cinco anos tem tratado sistematicamente a questão do superendividamento. A primeira, inclusive, criou o Núcleo do Consumidor Endividado. Desta forma, considerando-se a atuação do sistema de justiça e a consequente interligação de suas funções, certamente tal provocação jurisprudencial institucionalmente qualificada através da atuação institucional da Defensoria tem contribuído para a realização destas novas correntes jurisprudenciais mais hábeis a lidar com a realidade objetiva e subjetiva de um cidadão endividado.3 Ou seja, não é coincidência o fato de que as decisões especificas sobre superendividamento sejam de Tribunais onde há a atuação especializada da Defensoria Pública.

Observa-se que esse endividamento excessivo é fenômeno mundial e tem preocupado as associações de consumidores na América Latina, como o Chile, a Argentina, o Brasil e o Uruguai, bem como de países europeus e norte-americanos (o tema foi tratado em julho de 2009 no Curso de Verão da Universidade de Quebec em Montreal – UQAM por um professor da Universidade de Cantabria, Santander, Espanha). O que fomenta esse fenômeno nestes países, na grande maioria das vezes, são as mesmas causas, tais como: o crédito fácil, a propaganda enganosa e agressiva, a falta de informação que é dever do fornecedor, e a realização de empréstimos a juros altos para saldar outras dívidas (empréstimos para saldar empréstimos) e, sobretudo, ausência de informações prévias, adequadas e verdadeiras.

É importante repetir que a questão do superendividamento tem uma grande repercussão em variados aspectos da vida em sociedade de modo que o estudo desta situação transcende a proteção do consumidor e se estende à proteção do equilíbrio econômico de um país.

2.1. O superendividamento

Sobre o tema, é imperioso que se inicie compartilhando os precisos ensinamentos de Cláudia Lima Marques (2004, p. 1053) que adverte que o "direito brasileiro está sendo chamado a dar uma resposta justa e eficaz a esta realidade complexa" e prossegue como se vê adiante:

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O tema da cobrança de dívidas e da inexecução está intimamente ligado ao tema do superendividamento. O superendividamento define-se, justamente, pela impossibilidade do devedor - pessoa física, leigo e de boa – fé, pagar suas dívidas de consumo e a necessidade do Direito prever algum tipo de saída, parcelamento ou prazos de graça, fruto do dever de cooperação e lealdade para evitar a "morte civil" deste falido – leigo ou falido – civil.

(...)

o direito brasileiro está sendo chamado a dar uma resposta justa e eficaz a esta realidade complexa, principalmente se devemos distinguir superendividamento de pobreza em nosso País. A massificação do acesso ao crédito, que se observa nos últimos 5 anos – basta citar os novos 50 milhões de clientes bancários! -, a forte privatização dos serviços essenciais e públicos, agora acessíveis a todos, com qualquer orçamento, mas dentro das duras regras do mercado, a nova publicidade agressiva sobre o crédito popular, a nova força dos meios de comunicação de massa e a tendência de abuso impensado do crédito facilitado e ilimitado no tempo e nos valores, inclusive com descontos em folha de aposentados, pode levar o consumidor e sua família a um estado de superendividamento.

Na opinião da doutrinadora, deve ser dada uma oportunidade para aquele que de boa-fé, mesmo tendo contraído muitas dívidas, tenha o direito de renegociá-las com todos os seus credores, sendo elaborado um plano de pagamento como ocorre na lei francesa, para que depois esse consumidor possa voltar ao mercado de consumo consciente e educado financeiramente para gerenciar; agora de forma correta, as suas finanças.

No Brasil, ainda não temos legislação própria para evitar a falência individual, como ocorre com pessoas jurídicas amparadas pela Lei de Falência (Lei n° 11.101/2005), assim, neste caso faz-se urgente e necessária a aplicação concreta do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) para evitar as situações de superendividamento seja no aspecto pré (CDC, arts. 29. a 44) como no pós-contratual (CDC, arts. 81. a 105) além do contratual propriamente dito (CDC, arts. 46. a 54).

Os cidadãos-consumidores tornaram-se "presas fáceis" diante da extrema facilidade do crédito em desrespeito as regras do direito do consumidor calcadas na proteção à informação (premissa para a liberdade de escolha que é premissa da dignidade do consumidor), como lembra a Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha do Supremo Tribunal Federal:

(...) e é nessa perspectiva que a conclusão que se me impõe é a de que não é a mera instituição legal de capitalização mensal, semestral, anual ou qualquer outra que importa juridicamente para o respeito aos direitos constitucionais e legais do consumidor, mas a clareza (diria mesmo a transparência) do contrato firmado, ou seja, o respeito ao direito à informação de que é titular o consumidor que lhe permite saber o que efetivamente pagará de juros e determinará, assim, o respeito a seu direito.4

Todavia, a questão não se resume, por nenhuma hipótese, a questão de acontecimentos imprevisíveis e se centra, muito mais no exercício da obrigação de informação prévia e adequada a verdadeira compreensão do consumidor. O artigo 52 do CDC, entre outros (CDC, art. 39, 46), por exemplo, raramente é cumprido pelas instituições financeiras (o valor dos juros anuais é inserido sem destaque, não são demonstradas as consequências do pagamento mínimo, os limites de crédito são aumentados sem pedido do consumidor, são utilizados termos técnicos de economia incompreensíveis aos leigos). Trata-se de uma questão muito maior do que simplesmente um descontrole individual, como bem lembra o Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Distrito Federal em trecho abaixo transcrito:

(...) a problemática ora enfrentada não se resume a um caso isolado ou esporádico, fruto da incúria da parte autora, mas sim a fenômeno mundial que vem despertando a preocupação de legisladores e juristas de diversos países, cujas conseqüências não se adstringem à mera esfera patrimonial, mas atingem à saúde física e emocional dos devedores, violando sua dignidade como pessoa humana e, por vezes, desagregando seu núcleo familiar, com seqüelas, portanto, para toda a sociedade.5

Algumas providências – embora ainda tímidas e sem objetivo específico de combate ao superendividamento - têm sido tomadas em caráter legislativo, a exemplo da Lei nº 11.800, de 20086, da Lei nº 12.039, de 20097 e da Lei nº 11.785, de 2008 que alterou a redação do parágrafo terceiro do artigo 54 do CDC que passou a ser "Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor."

No Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Ceará, são muitos os casos que os contratos são redigidos em caracteres incompreensíveis, não são entregues (o consumidor recebe o boleto e não recebe o contrato) e para receber sua cópia, após a realização do negócio e redigida em termos técnicos para eles incompreensíveis, precisam pagar cerca de R$ 40,00 (quarenta reais) ao serviço cartorário.

2.2. O consumidor superendividado

A preocupação contemporânea com o consumidor superendividado tem origem mais conhecida no direito francês, com a Lei 89-1010, de 31.12.1989, chamada A Lei Neiertz. Em 1997, houve a codificação das leis no Code de La Consommation e a inseriu no Livro III denominado "tratamento das situações de superendividamento" contendo regras especiais para se buscar a recuperação do consumidor inadimplente.

No Brasil, em 2004, a pesquisa supramencionada realizada entre Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Núcleo Cível da Defensoria Pública gaúcha analisou cem casos de pessoas superendividadas.8 Um dos resultados da pesquisa é a constatação da necessidade de uma legislação específica para tratar o superendividado brasileiro, levando em conta às legislações de outros países, sobretudo a da França, mas sobretudo um tratamento mais adequado à publicidade de concessão do crédito.

Percebe-se que a situação do consumidor devido ao superendividamento é incompatível com o princípio basilar de toda a legislação brasileira, que é o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/ 88 e o artigo 4º do CDC/ 90), que não tem condições de manter o mínimo essencial para a sua sobrevivência, vendo-se totalmente comprometido com as despesas rotineiras (alimentos, luz, água, aluguel, impostos).

É preciso que se observe, entretanto, que "o oferecimento de crédito pelas instituições financeiras deve ser feito de forma responsável, desestimulando o superendividamento dos consumidores"9

2.3. Características do consumidor superendividado

O consumidor brasileiro que esta superendividado fica impossibilitado de, mesmo com boa-fé, quitar as suas dívidas, retirar o seu nome do cadastro de inadimplentes, ficando sem acesso ao crédito e ao consumo. Assim, acaba comprometendo sua relação familiar, de trabalho e, em alguns casos, sua própria saúde (e em uma perspectiva mais alargada contribui para o aumento das possibilidades de exclusão social suscetível de aumentar a criminalidade).

Para ser amparado pela "proteção ao superendividamento", entretanto, é necessário que se trate de consumidor pessoa física de boa fé – o superendividado passivo - com comprovada inadimplência (aqui considerada como assunção de dívidas em prejuízo de necessidades vitais, como saúde, alimentação, moradia e educação). O consumidor de má fé – o superendividado ativo – não terá esta proteção por não preencher as premissas necessárias à tutela.

2.3.1. Consumidor pessoa física

O consumidor considerado superendividado é somente aquele pessoa física que adquire o produto ou serviço como destinatário final para atender as suas necessidades pessoais. Assim, ficam excluídos os consumidores equiparados, que estão previstos nos artigos 17 e 29 do CDC (Lei nº 8.078/1990), bem como o consumidor pessoa jurídica (contemplada pela existe a Lei de Falência, Lei n° 11.101/05)

2.3.2. A boa-fé do consumidor

No direito brasileiro, o princípio da boa-fé encontra-se expressamente no Código de Defesa do Consumidor, no seu artigo 4º, inciso III, considerado como um princípio básico e bilateral, devendo ser respeitado tanto pelo consumidor e fornecedor para manter o equilíbrio e transparência nesta relação. Já o seu artigo 51, inciso IV, que trata das cláusulas abusivas, coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo incompatível com o princípio da boa-fé. É a tese sustentada por Geraldo de Farias Martins da Costa (2002, p. 118):

Considerados de boa-fé os consumidores superendividados que, aprisionados por uma espiral de endividamentos, agravaram sua situação para pagar as dívidas antigas. Todavia, foram declarados de má-fé aqueles que, deliberadamente, tomaram vários empréstimos que representavam uma carga nitidamente superior à totalidade de seus recursos ou aquele que já em estado de insolvência notória, tomaram empréstimos para efetuar novas despesas.

Não é, assim, juridicamente considerado superendividado o consumidor que age de má-fé (o superendividado ativo).

2.3.3. A inadimplência do consumidor

A inadimplência ocorre quando o consumidor atrasa o pagamento de seus compromissos. O aumento da inadimplência nas contas fixas do consumidor (contas de água, luz, aluguel, condomínio, telefone, supermercado, plano de saúde) é um aviso de que este consumidor esta começando a se endividar ou já é um superendividado.

Por certo, a inadimplência há de ser sempre duramente combatida, mas jamais por meio de ameaças ou constrangendo o consumidor, como determina o artigo 42 do CDC, sinteticamente comentado por Antônio Herman Benjamin (1999, p. 329) no sentido de que: "Por não consagrar o dispositivo à cobrança judicial, isto é, àquela exercida em função de processo judicial, destina-se, portanto, a controlar as cobranças extrajudiciais, em especial aquelas efetuadas por empresas de cobrança". A cobrança vexatória torna-se ainda mais grave e com necessidade de maior tutela quando diz respeito a superendividado passivo.

A responsabilidade criminal é tratada no art. 71. do CDC visando preservar os direitos à privacidade e à imagem do consumidor prevê a pena de detenção e multa para quem cometer a infração penal de utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer.

Os cadastros e dados de consumidor devedor no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e na Centralizadora dos Serviços dos Bancos S. A. (SERASA) "devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos", de acordo com o art. 43, § 1° do CDC, deixando claro que após os cinco anos do registro, o mesmo deve ser cancelado.

Sobre este assunto é importante mencionar, ainda que superficialmente, a questão da mora do fornecedor, já tratada no ordenamento jurídico brasileiro, que se trata justamente daquelas situações em que se começa a reconhecer que a inadimplência do consumidor decorre do comportamento abusivo do fornecedor. Se este fornecedor tivesse obedecido ao Código de Defesa do Consumidor certamente aquela situação não aconteceria. Transcreve-se, abaixo, um exemplo concreto desta perspectiva:

(...) Se a mora for do credor (e será dele quando cobrar mais do que o devido), após o trânsito em julgado, o devedor responde exclusivamente pela comissão de permanência (assim entendidos os juros remuneratórios, à taxa média de mercado, nunca superiores àquela contratada para o empréstimo + juros de mora + multa contratual). Embargos de declaração acolhidos em parte. 10

É certo que os precedentes jurisprudenciais que já temos em relação à mora do credor /fornecedor ainda não abordam especificamente a responsabilidade deste sobre a informação prévia e adequada e o consequente exercício inadequado da liberdade de escolha bem como pela responsabilidade deste na concessão abusiva do crédito (concessão do crédito em valor maior do que a capacidade de endividamento do consumidor que é, por definição legal, vulnerável), mas já se aponta um caminho positivo de melhoramento.

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Sobre as autoras
Amélia Soares da Rocha

Professora do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade de Fortaleza-UNIFOR

Fernanda Paula Costa de Freitas

Advogada,Ex-aluna da Universidade de Fortaleza - UNIFOR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Amélia Soares ; FREITAS, Fernanda Paula Costa. O superendividamento, o consumidor e a análise econômica do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2564, 9 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16949. Acesso em: 22 nov. 2024.

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