RESUMO:
O presente trabalho visa destacar a necessidade da Ação Penal destinada ao crime de lesão corporal leve contra a mulher no âmbito familiar ter natureza pública incondicionada. Tal instrumento é de extrema necessidade, pois é impossível conceber que crimes que venham ferir a dignidade da pessoa humana possam ter sua processabilidade dependente de representação da vítima e sujeitos a sua retratação. Além disso, condicionar à representação da vítima estes crimes de natureza doméstica é afrontar ao Princípio da Celeridade Processual, movimentando uma enorme estrutura que na grande maioria das vezes acaba por não cumprir o objetivo que a lei inicialmente pretendia que era o de punir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, já que esta acaba normalmente cedendo aos apelos do agressor, se retratando e sendo novamente vítima de agressões.
PALAVRAS-CHAVE: Lei Maria da Penha. Ação Penal Pública Incondicionada. Princípio da Dignidade Humana. Princípio da Celeridade Processual.
THE PENAL ACTION IN THE CRIME OF BODILY INJURY LIGHT AGAINST WOMEN WITHIN THE FAMILY, FORWARD TO THE PRINCIPLES OF HUMAN DIGNITY AND SPEEDY PROCEDURES
ABSTRACT:
This work has the intentions of demonstrating the necessity of Penal Action destinated in the crime of bodily injury light against women within the family public quality. This instrument is extremely necessary because it is impossible to think that crimes that can harm Human Dignity victims representation and can be subjected to retraction. Besides, giving representation to the victims in these violent domestic crimes goes against the principles of Celerial Processes. Moving a huge structure that most of the time ends up not reaching the objectives that the law inicialy intended to have wich is to punish and prevent domestic crimes against woman, the reason is that the victim usually goes back to the aggressor, retracting and starting the cycle all over again.
KEYWORDS: Law Maria da Penha. Penal Action. Principles Human Dignity. Principles of Celerial. Processes.
INTRODUÇÃO:
Intensa discussão tem se travado em nosso país a respeito da natureza da Ação Penal nos crimes de lesão corporal leve presente na Lei 11.340/06, mais popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. Esta dúvida surge porque no diploma em questão não há manifestação expressa a respeito da natureza da ação, mas na verdade existem dispositivos que se contradizem com relação a esta. O Superior Tribunal de Justiça em seus últimos julgados tem se manifestado no sentido de que, no crime em questão, é a favor da tese que defende que a Ação Penal é pública condicionada à representação. Com pensamento diverso, busca-se no presente estudo, apoiando-se nos Princípios Constitucionais da Dignidade Humana e da Celeridade Processual, bem como de uma análise jurisprudencial e doutrinária, demonstrar que é de suma importância em nosso país que os crimes que colocam em risco a integridade física da vítima tenham Ação Penal Pública Incondicionada.
1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA:
Kant, em lição que continua atual, procurou distinguir aquilo que tem um preço, seja pecuniário, seja estimativo, do que é dotado de dignidade, diz ele:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade (KANT, 1986, p.77).
Tais palavras nos mostram que dignidade humana é tudo aquilo que não tem preço, que não se pode trocar e abdicar, e que necessita ter uma proteção especial por parte do Estado de forma a evitar que as pessoas tenham tão grandiosos bens feridos.
A Constituição Federal de 1988, no art. 1°, inciso III, por sua vez elenca o Princípio da Dignidade Humana como sendo um de seus fundamentos, calcando-a não somente como um dos pilares da Carta Magna, mas também como de todo o ordenamento jurídico de nosso país, já que Celso Antonio Bandeira de Mello ensina-nos que:
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra (BANDEIRA DE MELLO,1994, p. 451).
Os preceitos acima explanados vêm a corroborar a importância do princípio em questão, explicitando que todo nosso sistema jurídico necessita estar em consonância com tal princípio fundamental.
No processo penal, o Princípio da Dignidade Humana nos últimos anos ganhou enorme enfoque, devido à modificação da progressão de regime dos crimes hediondos. Dizia a lei 8072/90 que em relação aos crimes hediondos era vedada a progressão de regime. Recentemente foi alterado este dispositivo, já que para diversos estudiosos do direito, o impedir que uma pessoa progrida de regime é submetê-la a uma pena cruel, sendo esta, por sua vez, vedada por nossa Constituição em seu artigo 5°, XLVII, alínea "e", onde a aplicação desta pena evidência considerável desrespeito a Dignidade Humana.
Normalmente este princípio surge como defensor do acusado ou do réu,
procurando impedir que este sofra penas onde tenha a sua integridade física afrontada nas penitenciárias de nosso país, algo que tem se tornado uma triste realidade, tendo em vista que nossas instituições carcerárias se transformaram em verdadeiros centros de abusos aos direitos humanos e afronta a dignidade das pessoas, fazendo com que a pena perca totalmente o seu caráter ressocializador, pois comprovadamente grande parte dos indivíduos que acabam tendo que cumprir penas restritivas de liberdade em tais locais, vêm a ter o seu grau de periculosidade aumentado, retornando muito mais perigosos a sociedade do que quando lá adentraram. Além de nos preocuparmos com a seguridade da dignidade humana daqueles que, porventura vêm a cometer alguma infração penal e tenham que cumprir penas em nosso precário sistema prisional, de igual importância é preciso assegurar em nosso ordenamento à total proteção a àquele que tem sua dignidade humana ferida, ou seja, a vítima, sendo uma das maneiras mais eficazes de zelar por esta, a punição rígida aos delitos que venham a afrontar à vida, bem como a integridade física da pessoa humana, já que estes são os bens jurídicos mais valiosos e, conseqüentemente, aqueles que os ferem merecem sanções mais rigorosas por parte dos entes estatais.
Por fim, nesta breve síntese sobre a presença e consagração da dignidade humana em nosso sistema jurídico, impossível deixar de expor importante lição de Alexandre de Morais do que realmente seja a Dignidade da pessoa Humana e qual deva ser o seu alcance:
A Dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES,2006, p.16).
2. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA:
Segundo Grispigni (1947, v.1, p.296), o direito de ação penal "consite na faculdade de exigir a intervenção do poder jurisdicional para que se investigue a procedência da pretensão punitiva do Estado-Administração, nos casos concretos". Trata-se, portanto, da aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto.
Com objetivo acima assinalado a Ação Penal pode ser pública ou privada. Sendo pública a titularidade desta, cabe ao Ministério Público, se iniciando por meio de denúncia e se dividindo em condicionada ou incondicionada. Na Ação Penal Pública Incondicionada ela é promovida por iniciativa do Parquet independentemente de qualquer representação do ofendido. Já quando a Ação Penal for Pública Condicionada necessitará da representação do ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça, há aqui uma condição de processabilidade. Todavia, ao representar, a vítima concede ao Ministério Público a condição necessária para que este possa ajuizar a ação penal, sendo este o único titular da ação, de modo que, representando o ofendido não terá a prerrogativa de escolher contra quem a ação penal será proposta. Diferentemente, quando for caso de Ação privada, a vítima ou seu representante legal tem a total disponibilidade e a titularidade da ação penal.
Nos casos de Ação Penal Privada consagra-se o Princípio da Disponibilidade ou da Conveniência, onde se oportuna à vítima a escolha de propor ou não a Ação Penal. Quando o ofendido decidir pela propositura desta, interporá a chamada Queixa-Crime. Por sua vez nos casos de Ação Penal Pública Incondicionada ou Condicionada à representação, após o advento desta condição, há uma primazia do princípio da obrigatoriedade, onde se impõe ao Ministério Público, havendo materialidade ou indícios de autoria, a indispensabilidade de oferecimento da ação penal, que se dá através da denúncia, peça inicial da Ação Penal Pública.
A grande questão que se torna pertinente neste momento é entender qual o interesse do legislador ao dividir a Ação penal em pública ou privada. O que buscou o legislador dividindo a titularidade da ação penal? É de se concluir que nas objetividades jurídicas que possuem uma maior relevância o Estado reserva a si a titularidade da Ação Penal, já nos demais casos onde a lesão advinda do ilícito penal venha a atingir um bem da esfera íntima do ofendido, este é o dotado de titularidade para tal iniciativa.
Fernando Capez corrobora este pensamento afirmando em sua célebre obra que:
Essa divisão atende a razões de política criminal. Há crimes que ofendem sobremaneira a estrutura social e, por conseguinte, o interesse geral. Por isso, são puníveis mediante Ação penal pública incondicionada. Outros afetando imediatamente esfera íntima do particular e apenas mediatamente o interesse geral, continuam de iniciativa pública, mas condicionada à vontade do ofendido, em respeito à sua intimidade, ou do ministro da justiça, conforme for. São as hipóteses de ação penal pública condicionada. Há outros que por sua vez, atingem imediata e profundamente o interesse do sujeito passivo da infração. Na maioria desses casos, pela própria natureza do crime, a instrução probatória fica quase que inteiramente na dependência do concurso do ofendido. Em face disso, o Estado lhe confere o próprio direito de ação, conquanto mantenha para si o direito de punir, a fim de evitar que a intimidade, devassada pela infração, venha a sê-lo novamente (e muitas vezes com maior intensidade, dada a amplitude do debate judicial) pelo processo. São os casos de Ação penal Privada (CAPEZ, 2008, v.1, p. 537-538).
Quando voltamos o nosso olhar a todos os crimes que afrontam a vida, bem como aos crimes que ferem a integridade física da vítima, impossível aceitar que a Ação Penal destes crimes seja de titularidade da vítima, dependa de uma iniciativa sua ou de um desejo explicitado através da representação para que o Estado exerça a sua titularidade. Nestas situações a ação penal deve ser pública incondicionada, devido à imensa importância que tais bens jurídicos possuem, já que estão intimamente ligados ao Princípio da Dignidade Humana, de forma que tudo que vem a lesionar este supremo princípio deve ser combatido da mais gravosa forma e com todos os meios possíveis, impedindo assim que alguma pessoa venha abrir mão de sua dignidade por algum interesse pecuniário ou até mesmo deixe de exercer seu direito por estar sofrendo algum meio de coação, situações que infelizmente são muito cotidianas em um país como nosso que ainda se encontra tomado por desigualdades, aonde o sentimento de impunidade por parte dos criminosos vêm crescendo a cada dia. Sendo assim, o Estado deve ter a total titularidade para propor a ação penal, usando o Ministério público para isto, quando a Dignidade de qualquer pessoa venha a ser ferida.
3. PRINCÍPIO DA CELERIDADE PROCESSUAL:
Trata-se de princípio que busca estabelecer um tempo razoável de duração do processo, evitando que este se torne excessivamente demorado. O princípio agora analisado se destaca em nosso ordenamento jurídico nas leis 9.099/95 e 10.259/01, leis estas que tratam dos Juizados Especiais Estaduais e dos Juizados Especiais Federais, respectivamente.
Edilson Mougenot Bonfim expõe a importância do Princípio da Celeridade Processual nos Juizados Especiais:
Trata-se de um princípio pelo qual não só os atos processuais, vistos isoladamente como partículas do procedimento, mas também a concessão da própria tutela requerida, nos casos em que o requerente tenha razão, seja provida com celeridade, privilegiando a eficácia da tutela concedida; (MOUGENOT, 2010, p.102-103)
Muito embora tal princípio sirva como um dos pilares dos juizados especiais, sua aplicação não se restringe a este âmbito, estando presente em diversos diplomas de nosso ordenamento jurídico como o art. 125, inciso II do Código de processo Civil que explicita que o juiz velará pela rápida solução do litígio.
O pacto de San José da Costa Rica tratou de consagrar tal princípio em seu art. 8° onde estabelece que toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Na segunda fase da dosimetria da pena, para alguns estudiosos do direito a demora demasiada do processo pode inclusive ser usada na forma de atenuante inominada, prevista pelo art. 66 do Código Penal, que afirma que a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.
Por fim, para evidenciar o extremo acolhimento de nosso ordenamento jurídico com relação a este princípio, não podemos deixar de comentar que nossa própria Carta Magna o prevê no art. 5°, LXXVIII, onde estabelece que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
A razão para a aplicação deste princípio em todo o nosso ordenamento é extremamente lógica, já que um processo exacerbadamente demorado não tende a ser proveitoso, tanto para a vítima que a cada dia que passa se vê mais desacreditada com o sistema jurídico atual, onde um sentimento de impunidade domina todos, como para o réu, onde de certa forma a demora também não é satisfatória, pois o litígio judicial é uma das maiores fontes de preocupação do cidadão comum, que na grande maioria das vezes se sente extremamente incomodado por estar envolvido em um litígio. Um processo demorado só interessa mesmo para aquele que busca burlar as leis e continuar impune.
Apesar de termos o dever de lutarmos por uma justiça mais célere, nunca podemos nos esquecer de que é de suma importância que o processo tenha o seu tempo razoável para que dê as partes oportunidade de exercitarem o contraditório. Mais uma vez, Edilson Mougenot Bonfim (2010, p.102-103) evidencia que "O princípio, evidentemente, deve ser contraposto à necessidade de um grau aceitável de segurança jurídica, já que a consecução da função jurisdicional apenas se dará de forma plena se houver equilíbrio entre a eficácia e a correção das decisões".
Portanto, o processo judicial deve durar o tempo suficiente para que haja segurança jurídica, não devendo se perpetuar no tempo, pois como afirma o velho e conhecido jargão "uma justiça tardia não é justiça".
Falta a nossa justiça uma maior capacidade estrutural para resolver os litígios. Necessita-se de um número maior de servidores, bem como investimentos em tecnologias que permitam uma maior rapidez no trâmite processual, além de legislações que procurem eliminar os inúmeros procedimentos demorados e dispendiosos existentes em nosso sistema atual que não contribuem para a resolução dos litígios.
4. LEI MARIA DA PENHA:
No dia 22 de setembro de 2006 entrou em vigor no Brasil a Lei n. 11.340/06, que foi chamada de Lei Maria da Penha, em homenagem a cearense Maria da Penha, que foi símbolo da luta contra a violência doméstica contra a mulher, já que esta, em 1983, foi vítima de duas tentativas de homicídio e acabou ficando paraplégica.
Tal lei entrou em vigor com o objetivo de coibir a violência doméstica contra mulher, estabelecendo em seu art. 2° que toda mulher "goza de direitos fundamentais inerentes a pessoa humana" e sendo assim é importante buscar de todas as formas possibilitar que esta possa exercitar a sua dignidade plenamente, livre de violências e agressões.
A lei 11.340/06 busca coibir as diversas formas de manifestação da violência doméstica, que, segundo seu artigo 7°, podem se manifestar como a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Além disso, seu texto é marcado por um grande número de normas programáticas que determina ao poder público elaborar uma série de ações que visem coibir a violência doméstica e garantir o respeito aos direitos humanos.
A legislação que esta sendo analisada está de acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher a qual o Brasil é signatário. O diploma internacional no art. 7° promove uma série de medidas visando à proteção à mulher, entre elas estão os deveres de agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade, além de buscar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.
Em nossa própria Constituição Federal há dispositivos que visam assegurar à proteção a mulher como no art. 226, § 8º, da Constituição Federal de 1988, que estabelece: "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações"
Todos os dispositivos apresentados chancelam a Lei Maria da Penha, assegurando de certa forma a mulher um tratamento diferenciado. Há profundos questionamentos com relação à constitucionalidade da Lei Maria da Penha, já que para muitos, esta, feriria o Princípio da Igualdade consagrado em nossa Carta Magna. Porém, não se pode deixar de repetir a igualdade Aristotélica onde é preciso tratar com igualdade os iguais e desigualmente os desiguais, sendo assim, apesar das enormes vitórias conquistadas pelas mulheres nas últimas décadas, como a sua independência financeira e cultural obtida juntamente com a sua invasão ao mercado de trabalho, não se pode fechar os olhos para os vários séculos em que a mulher esteve sob a dependência e submissão total do homem. No Brasil, assim como na América Latina, a mulher até os dias atuais na maioria das vezes sofre preconceitos e atentados a sua dignidade, carecendo de uma maior atenção do poder estatal para que tenha seus direitos respeitados, e possa usufruir de sua vida amplamente, livre de preconceitos e violências.
Algo que causa estranheza a qualquer observador mais atento de nosso ordenamento jurídico, é que a lei 11.340/06 trata de crimes também tipificados pelo Código Penal, como a lesão corporal, porém determina que quando a vítimas destes delitos venha a ser a mulher dentro do âmbito familiar, os crimes em questão possuam uma maior sanção, uma maior reprimenda. Visando a proteção da mulher, o legislador na Lei Maria da Penha, criou um sistema judicial próprio com a aplicação de normas mais severas, como por exemplo, a proibição de aplicação de penas de prestação pecuniária, bem como a substituição da pena que implique pagamento isolado de multa.
De certa forma houve uma aproximação do direito brasileiro com o norte americano, já que em nosso país a providência acautelatória por excelência sempre foi à prisão do indivíduo, porém com a Lei Maria da Penha se introduziu outras cautelares como suspensão de porte de arma, afastamento do lar, proibição de aproximação, de contato e de freqüência a determinados lugares, restrição ao direto de visita de menores e prestação de alimentos provisionais. A desobediência do agressor à ordem determinada pelo juiz pode ensejar sua prisão preventiva, nos termos de alteração feita pela nova lei no Código de Processo Penal. Além destas, outras medidas de proteção estão previstas na nova lei, como encaminhamento da vítima a programa oficial de proteção, recondução da vítima ao domicílio com apoio de força policial, proibição temporária de disposição do patrimônio comum pelo agressor, dentre outras.
Foram criados também alguns direitos às mulheres vítimas de violência doméstica, como o direito à proteção policial, quando necessário; encaminhamento da ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal; direito de receber transporte policial para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida e se necessário, ser acompanhada para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar.
Atualmente o que tem se discutido com maior veemência sobre a lei 11.340/06 é o que diz respeito a ação penal nos crimes de lesão corporal leve. Segundo o Código Penal os crimes de lesão corporal leve sempre possuíram Ação Penal Pública Incondicionada, deixando a cargo do estado a titularidade da ação, dando aos os Promotores de Justiça a responsabilidade da propositura da ação penal.
O fato de a Ação Penal ser Pública Incondicionada, sem dúvida alguma é uma forma de sancionar mais rigorosamente um delito, pois se retiram a titularidade e a disponibilidade da ação da vítima, concedendo ao Ministério Público estas prerrogativas. O Ministério Público será regido nestas ocasiões pelo princípio da Obrigatoriedade, onde tal a órgão ficará obrigado a oferecer a propositura da ação, desde que existam indícios da autoria e prova da materialidade, independentemente da vontade a vítima, bem como sem necessitar provas aprofundadas da autoria, já que nesta fase processual, incide o principio do In dúbio pro Societate, ou seja, se existir dúvida em relação a quem seja o autor e houver apenas indícios que tal delito tenha sido cometido por tal sujeito, deve haver a instauração da ação penal, que se dá através do oferecimento de denúncia, peça esta, que pode ser considerada como a petição inicial da Ação Penal Pública Incondicionada,pelo Promotor de Justiça.
Com o advento da lei 9.099/95, lei dos juizados especiais, surgiu uma nova questão, pois tal diploma tratou de regular a competência dos Juizados Especiais Criminais, que teriam a competência de julgar os crimes de menor potencial ofensivo, sendo que tais delitos foram definidos no art. 61: "Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa." Estabeleceu ainda que a ação penal destes crimes seriam pública condicionadas a representação do ofendido. Além disso, afirma em seus artigos 90 e 91 que as disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada. Com tal disposição, o crime de lesão corporal leve passou a ser de ação penal pública condicionada a representação, já que se enquadra na definição de crime de menor potencial ofensivo. Sendo assim, é dada ao ofendido a escolha de querer ou não que autor ou os autores sejam processados. Porém, importante ressalva a fazer é que, na medida em que a vítima concede a instauração da ação, o Ministério Público passa a ter a titularidade privativamente para a propositura da ação, bem como o ofendido não tem a disponibilidade da ação, ou seja, o Ministério público irá propor a ação contra quem bem entenda.
Com o surgimento da Lei Maria da Penha em seu artigo 41, que estabeleceu que, em relação aos crimes de violência doméstica contra a mulher não se aplicava Lei n. 9.099/95. Primeiramente se entendeu que nos crimes de lesão corporal leve contra a mulher, a ação penal passaria a ser pública incondicionada quando fosse praticada violência doméstica contra a mulher.
Atualmente, o entendimento jurisprudencial tem sido de que, apesar do art. 41 da Lei Maria da Penha dispor que não se aplica os dispositivos da lei 9.099/95, tal dispositivo não se refere à ação penal, e nos casos de lesão corporal leve a ação penal seria pública condicionada à representação, já que dentro da lei 11.340/06 há outros dispositivos que levam a crer que a ação penal deste diploma seria desta natureza, pois o artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, ao excluir a aplicação da Lei nº 9.099/95, pretendeu, somente, impedir a aplicação de outros institutos nela previstos, como a composição civil e a transação penal, instrumentos impeditivos da persecução criminal contra o agressor. Não foi intenção do legislador afastar a aplicação do artigo 88 da Lei nº 9.099/1995, que condiciona a ação penal concernente à lesão corporal leve e à lesão corporal culposa à representação da vítima, tanto que esta é prevista no art. 12, I, in fine, da Lei nº 11.340/2006.
O artigo 16 da Lei Maria da Penha também introduziu outra modificação significativa para o processo, já que determinou que as retratações feitas pela a vítima em delegacia não terão qualquer efeito se não forem feitas em juízo. Se a vítima não comparecer em juízo, poderá o Ministério Público dar continuidade ao processo penal.
Este procedimento que visa conceder as mulheres um instrumento a mais de proteção a violência, já que as proíbe de se retratarem em delegacia de polícia fazendo com que tal ato necessite ser realizado em juízo, na presença do juiz e promotor que poderão conscientizar a vítima de que não necessita temer e deve manter a representação caso tenha sofrido alguma forma de violência. Por oportunizar a vítima a possibilidade de se retratar, muitos entendem que a ação penal dos crimes de violência doméstica contra a mulher seria pública condicionada à representação, pois o instituto da representação não existe na Ação Penal Pública Incondicionada.
Havendo a possibilidade de retratação, como resolver o problema de esta ter que se realizar em juízo? A retratação é um instituto que em nosso ordenamento jurídico sempre foi aceito desde que fosse proposta até o oferecimento da ação penal e pelo procedimento normalmente aplicado a vítima somente terá contato com o juiz após a instauração da ação penal, já que antes estaríamos apenas diante da chamada fase investigatória, onde não há presença de contraditório, já que na verdade não há sequer acusação, mas somente investigação.
Diante deste problema de procedimentos duas soluções são apontadas. A primeira, em que pese o art. 41 da Lei Maria da Penha diga expressamente que a ela não se aplica a lei 9.099, se promoveria antes do oferecimento da denúncia uma espécie de audiência conciliatória, nos moldes das audiências realizadas nos juizados especiais criminais, e neste momento, anterior ao oferecimento da denúncia, é dado à vítima a oportunidade de se retratar. Outra solução apontada seria a de possibilitar a vítima se retratar na primeira oportunidade que comparecesse em juízo, mesmo que neste momento já tivesse sido oferecido à denúncia. Ao optar por esta última hipótese não há a aplicação de nenhuma audiência conciliatória, mas também é verdade que se acaba por desrespeitar o Código de Processo Penal, já que este veda a retratação após o oferecimento da denúncia. No Estado do Rio Grande do Sul, a solução que tem sido adotada na maioria das vezes é a primeira, realizando uma audiência conciliatória antes do oferecimento da denúncia e oportunizando a vítima a oportunidade de se retratar em juízo.
Este último problema apresentado seria facilmente resolvido na medida em que torna a ação penal da lei 11.340/06 Pública Incondicionada, já que na medida em que a autoridade policial descobre ou é informada de alguma situação de violência contra a mulher há a instauração de inquérito policial e investigação, e esta buscará dar ao Promotor de Justiça meios suficientes para que possa oferecer a denúncia. Tudo isto se processará a cargo da autoridade estatal, o estado assume a titularidade e disponibilidade da ação, não necessitando oportunizar a vítima algum momento para que esta possa vir a retratar-se.
O fato da Ação Penal da Lei Maria da Penha ser Pública Condicionada à representação, gera, inclusive, lesão ao princípio Constitucional da Celeridade Processual, extremamente difundido em nosso ordenamento jurídico e consagrado pelo Pacto de San José da Costa Rica, como anteriormente fora analisado. As vítimas de violência doméstica em nosso país têm usado muitas vezes as prerrogativas que lhes foram concedidas através deste diploma como forma de modificar o comportamento do companheiro e não como forma de punir agressores, normalmente covardes que utilizam de sua maior envergadura física para espancar as mulheres.
Tanto é assim que um fenômeno tem sido notado nas varas responsáveis por julgar as violências contra as mulheres no ambiente familiar, o de que a grande parte das mulheres que denunciam a violência a qual estão sendo vítimas, depois acabam na presença do juiz se retratando, demonstrando que se tem utilizado o diploma em questão com um objetivo diverso do que primeiramente possuía, o de simplesmente dar ao agressor uma mera reprimenda e não o de verdadeiramente puni-lo e buscar de todas as formas a prevenção contra tais violências. As mulheres têm acreditado que o fato de submeter seu companheiro a ir na presença de um juiz simplesmente bastará pra que se finde as violências, algo que não tem se comprovado, já que não são poucas as mulheres que após terem se retratado vem a sofrer nova violência. Além do mais, não é justo movimentar uma enorme estrutura pra realizar as intimações necessárias para audiência, bem como mobilizar promotores e juízes para que compareçam a um ato que tem sido utilizado como mero castigo, que realmente não serve como meio de prevenção e punição. Há evidente lesão ao Princípio da Celeridade Processual, pois o tempo despendido para a realização de tão grande procedimento que não tem obtido o resultado prático desejado poderia ser utilizado na resolução dos milhares de litígios judiciais existentes.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendido de maneira diversa da defendida neste trabalho, afirmando que nos crime de violência doméstica contra a mulher a Ação é Pública Condicionada à representação e, que o processamento do ofensor, mesmo contra a vontade da vítima não é a melhor solução para a família:
Subtrair da vítima mulher no âmbito doméstico e familiar o poder de decidir sobre o processamento de seu agressor nas hipóteses de lesão corporal leve e lesão corporal culposa significa privá-la de decidir sobre o seu próprio futuro e o de sua família, em evidente retrocesso cultural, considerando-se que a mulher muito tempo levou para fazer com que a sua vontade fosse respeitada (BRASIL, 2010, p.102-103)
Apesar deste posicionamento recente, não parece coerente permitir que a vítima possa se retratar em crimes de tamanha envergadura, onde a sua dignidade humana é pisoteada enormemente. Dizer que cabe a mulher decidir se quer ou não processar seu marido que a agride é a mesma coisa dizer que é permitido submeter uma pessoa as mais grandiosas humilhações e mesmo assim permitir que o Estado permaneça inerte, já que não há o seu desejo de representar. Bom lembrar que condicionar a representação da ofendida é conceder artifícios ao agressor para que coaja a vítima a retratar-se do desejo de processá-lo, fazendo com que tal diploma venha ter sua eficácia em grande escala diminuída, ainda mais com a falta de capacidade que possuem as autoridades policias de proteger a vítima das agressões e da pressão do autor do delito.
Condicionar à representação a violência doméstica contra a mulher é dar margem para que a vítima seja novamente agredida e é permitir muitas vezes que crianças, frutos do relacionamento do autor e da vítima, cresçam e um ambiente totalmente atípico e insuficiente para o seu desenvolvimento mental e intelectual. Pensando em defender a liberdade da mulher de decidir sobre seu futuro, acaba-se permitindo uma enorme afronta a sua dignidade humana, possibilitando a formação de uma família assentada na violência e o aumento do sentimento de impunidade de todos que tiverem acesso a uma relação tão conflituosa, já que não bastará às outras pessoas denunciarem a violência se a mulher não desejar representar contra seu marido, além é claro de uma grande perda de tempo e insensibilidade com a realidade de nosso país, pois enquanto milhares de ações processuais são tomadas para logo em seguinte serem totalmente canceladas através da possibilidade de retratação em juízo, diversas pessoas sofrem com a demora processual, que acaba fazendo com que o resultado tardio que venha a ser obtido com o processo penal não alcance os mínimos objetivos desejados pela sociedade.
CONCLUSÃO:
Mediante a análise do art. 41 da Lei Maria da Penha, onde se dispõem que a este diploma não se aplicam a lei 9.099/95, bem como realizando uma breve análise do objetivo do referido diploma e da realidade de nosso país, conclui-se que a Ação Penal no crime de lesão corporal leve contra a mulher no âmbito familiar deve ser Pública Incondicionada. Somente desta forma, haverá proteção aos Princípios Constitucionais da Dignidade Humana e da Celeridade Processual, já que ao permitir que o Estado tenha a disponibilidade e a titularidade para propor a Ação Penal sem necessitar de nenhuma condição de processabilidade, acaba-se punindo e prevenindo de uma melhor forma a violência doméstica contra a mulher.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
-BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, 5. Ed., Malheiros, 1994, p. 451;
-BRASIL, Superior Tribunal Justiça, Processual penal. Habeas Corpus n° 157.416-MT. Crime de Lesão Corporal leve. Lei Maria da Penha. Natureza da Ação Penal. Representação da Vítima. Necessidade. Ordem concedida, recorrente Marco Antonio Guimarães Jouan Junior, recorrido Ministério Público do Estado do Mato Groso do Sul. Relator Arnaldo Esteves Lima, 15 de abril de 2010, p.5. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=a%E7%E3o+penal+lei+maria+a+penha&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em 06 de Jun. 2010;
-CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal parte gera, 12ª Ed., Saraiva, 2008, v.1, p. 537-538;
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-__________ , ___________, 5° Ed. Saraiva, 2010, p.103.