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"Um teto todo seu" de Virgínia Woolf.

A produção intelectual e as condições materiais das mulheres

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08/02/2011 às 18:56
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1. INTRODUÇÃO

O presente ensaio busca tecer algumas considerações sobre o livro "Um teto todo seu" de Virgínia Woolf, relacionando-o com dois macro-temas: Gênero e Direito, numa perspectiva interdisciplinar.

Primeiramente, destacaremos algumas características biográficas da autora do livro em comento, Virgínia Woolf, considerada uma das maiores escritoras inglesas do séc. XX, com vasta produção artística em romances e ensaios.

Realizaremos a seguir uma síntese da própria obra "Um teto todo seu", contextualizando o momento de sua criação e as possibilidades interpretativas que se abrem, no nosso entender, com a sua leitura.

Destacamos dois elementos centrais na obra, dentre outros possíveis, que ajudam a relacioná-la com a temática de gênero: a) a relação entre produção intelectual (ou científica, artística, etc.) e as condições materiais, e b) a reorientação da história das mulheres numa perspectiva crítica. Transversalmente, seria possível dizer que o texto utiliza uma "chave de leitura" de gênero como recurso (não isolado) para interpretar a realidade.

A resenha ora proposta não tem o condão de esgotar as possibilidades interpretativas da obra. Longe disso. Não se quer, por outro lado, após ler e desfrutar da obra, prender-se a tantas amarras do chamado "conhecimento científico", tanto no estilo quanto na forma. Talvez esse seja um primeiro legado importante que a própria autora deixa: a possibilidade de passear entre estilos, entre ensaio, ciência, ficção e realidade.

A verdade é que as grandes obras literárias, assim como as grandes obras científicas, são um mar aberto no qual o velejador pode no máximo disciplinar-se metodologicamente, utilizando os instrumentos de medição e de orientação que tem, para chegar a algum lugar. Este lugar, conhecido ou não, resulta diretamente das opções que o velejador tomou no transcorrer de sua viagem. Alguns poucos o chamam de conhecimento. Outros o chamariam de mito. A despeito das falhas e insuficiências que assumimos desde já, e não ignorando a função ideológica presente nessas questões epistemológicas, esperamos nos aproximar mais do primeiro e nos afastar do segundo.


2. NOTA BIOGRÁFICA – QUEM FOI VIRGÍNIA WOOLF?

Virgínia Woolf (1882-1941) teve uma vida muito conturbada desde cedo, quando sofreu pela morte da mãe, aos 13 anos, momento no qual apresentou pela primeira vez sintomas de problemas mentais que iriam lhe acompanhar por toda a vida. Esse fato, aliado a um não confirmado, mas insinuado, caso de abuso sexual na infância pelo seu meio-irmão e o terror de duas guerras mundiais compõem o quadro de uma personalidade complexa. Alternava momentos de euforia e alegria com momentos de profunda depressão e isolamento. Casou-se com Leonard Woolf com quem viveu até o fim da vida, inclusive publicando seus escritos na Editora por eles fundada. Em 1941, usando um casaco grosso cheio de pedras nos bolsos, Woolf entrou no Rio Ouse e se suicidou [01].

A despeito da ausência de formação, Woolf desfrutava de boas condições financeiras que possibilitaram sua produção, tendo dedicado sua vida à literatura. Foi uma das grandes escritoras inglesas de sua época. Crítica da Era Vitoriana, sua obra pode ser considerada modernista, com recursos estéticos inovadores e com profundidade descritiva notáveis. Produziu muito como artista, apesar de não ter sido educada da mesma forma que seus irmãos: nove romances, duas biografias, sete volumes de ensaios, vinte e seis cadernos de diários e muitas cartas [02].

Pode-se dizer que Woolf é uma mulher à frente do seu tempo. Seu traço de inovação e qualidade literária foi aliado às várias circunstâncias vivenciadas ao seu redor. Virgínia escreveu sobre sua vida e a vida das mulheres do seu tempo. Buscou evidenciar, sem odes panfletárias, a opressão vivida pelas mulheres, elemento muito presente no ensaio "Um teto todo seu", objeto deste estudo. Influenciou toda uma geração de mulheres que afloravam para a vida pública e literária da Inglaterra do início do séc. XX e ainda hoje é lembrada e lida como uma referência, antecipando discussões que só iriam aflorar 50 anos depois.


3. SÍNTESE DA OBRA

O ensaio "Um teto todo seu" baseia-se em dois artigos lidos por Virgínia Woolf perante a Sociedade das Artes, numa conferência em 1928. Como os dois artigos ficaram bastante extensos, a autora decidiu reuni-los e ampliá-los para uma publicação. Na platéia que assistiu à Conferência, muitas mulheres inglesas universitárias [03] esperavam uma discussão sobre o tema "As mulheres e a ficção".

O ensaio se inicia com a apresentação de seus objetivos da conferência, mas a construção da autora, que migra engenhosamente entre o ensaio, a ficção e conferência, acaba por delimitar um outro campo de discussão.

A autora afirma que ter "um teto todo seu" influencia diretamente na produção artística das mulheres, e constrói uma obra que passa a discutir as condições de vida das mulheres da Inglaterra e suas reais possibilidades como artistas numa sociedade notadamente patriarcal e desigual.

Para tal, encaixa dentro do próprio ensaio uma ficção, com uma personagem chamada Mary Beton, que remonta aos dois dias anteriores à conferência, demonstrando como viviam as mulheres naquele momento histórico – num contexto que já era "avançado" para a época [04] –, quais as dificuldades apresentadas, as "novidades teóricas", as últimas discussões envolvendo a temática das mulheres.

Apresenta ao leitor uma estrutura completamente desigual de oportunidades e de direitos entre homens e mulheres tanto no que tange à questão econômica quanto no acesso aos diversos bens culturais, como a educação e a arte. Desse modo, começa a relacionar a produção intelectual com condições materiais, visualizando que as mulheres são muito pobres e que isso tem influência sobre a ausência de produção intelectual feita pelas próprias mulheres. Além disso, demonstra como as mulheres são desencorajadas pelos homens a produzirem suas próprias obras, seja taxando-as como de má-qualidade ou naturalizando sua inferioridade.

Nesse caminho, a personagem decide buscar ajuda no Museu Britânico, realizando pesquisas acerca do tema tão controverso. Começa, então, a destacar que não só a sociedade em que vive é desigual e patriarcal, mas que esses elementos estão profundamente presentes na produção científica e artística. Mesmo sabendo que desde os primórdios as mulheres fazem parte da História, as obras sempre a destacam de forma idealizada (romantizada e essencializada) ou demonizada (inferiorizada e marginalizada). Em diálogos profícuos com autores e autoras da tradição inglesa, vai buscando um fio da meada explicativo, momento no qual já aparece um tom de denúncia que não perde a qualidade estética.

Dedica-se a identificar as dificuldades e as possibilidades interessantes que surgiriam se a história das mulheres fosse diferente. Demonstra os avanços de cada escritora como mulheres de seu tempo, por um lado, reféns de um processo de aprisionamento e opressão, por outro, mães dos novos romances, das novas gerações.

Ao perceber o quanto a produção feminina cresceu após o século XVIII, passa a reafirmar a necessidade de mais mulheres emanciparem-se financeiramente, podendo ter um espaço que possa chamar de seu, seu quarto com chave, onde possam produzir e libertarem a mente para escrever. Já no fim do ensaio, reconhece a necessidade de uma compreensão complementar entre os sexos, defendendo inclusive a idéia de androginia como melhor forma para produzir uma boa obra literária.

O ensaio acaba com a reafirmação da personagem que, para fazer ficção ou poesia, é necessário que a mulher tenha quinhentas libras por ano e um quarto com fechadura na porta. Não é possível liberar a criatividade e o senso artístico sem condições materiais para isso e sem que o domínio masculino seja, ao menos, criticado. No fim, exorta as mulheres a fazer nascer uma personagem fictícia criada no decorrer da ficção como exemplo de contraste. Judith – a irmã talentosa de Shakespeare que nunca existiu nem poderia existir no séc. XVI – estaria viva nas várias mulheres que acreditam ser possível construir uma outra história das mulheres.


4. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS

Após a síntese da obra de Virgínia Woolf, consideramos importante realizar um debate crítico acerca dos pontos que, para nós, são mais interessantes do ponto de vista analítico. Como já dito na Introdução do presente trabalho, dividimos em dois tópicos essas considerações: a) a relação entre produção intelectual (ou científica, artística, etc.) e as condições materiais; b) a reorientação de uma história das mulheres numa perspectiva crítica. Estes tópicos estão intimamente relacionados com a obra da autora e parecem indicar uma relação bastante próxima entre produção e cultura. Entre produção material e produção simbólica. Mas também entre produção e reprodução [05].

Desse modo, as considerações a seguir apontam mais problematizações identificadas no texto do que propriamente conclusões, mesmo que parciais. Refletir sobre a temática de gênero a partir da obra e das aulas que foram lecionadas neste período letivo demanda um raciocínio crítico.

Como toda teoria crítica tende a ser polêmica por não repetir ou não aceitar o status quo, nos permitimos não falar o óbvio, buscando elementos que reforcem essa perspectiva, sem desconstruí-la (para usar um termo caro às feministas pós-modernas). Nesse mister, e tomando por base a própria autora, deixamos nossa opinião sobre o livro, já que, em se tratando do tema, "jamais conseguiria chegar a uma conclusão" (WOOLF, 1985, p. 7).

4.1. Relação entre produção intelectual e condições materiais

Um primeiro elemento importante que destacamos na obra é a relação intrínseca que aparece entre a produção intelectual (e aqui falamos não só da produção artística, mas também científica ou técnica) e determinadas condições materiais. O próprio título do ensaio e suas primeiras linhas indicam essa relação condicional:

Mas, dirão vocês, nós lhe pedimos que falasse sobre as mulheres e a ficção — o que tem isso a ver com um teto todo seu? [...] Tudo o que poderia fazer seria oferecer-lhes uma opinião acerca de um aspecto insignificante: a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção. (WOOLF,1985, p. 7-8)

Essas condições materiais são entendidas como: um conjunto de elementos concretos (nem metafísicos nem subjetivos) que influenciam decisivamente na existência dos homens e das mulheres e nas decisões que tomam. Relacionam-se com a esfera da produção, mas não estão adstritos a ela: educação, saúde, moradia, renda, propriedade, dinheiro, etc. Todos estes elementos, quando são negados, influem na "ausência" de produção intelectual.

Eis a tese principal que Woolf levanta, relacionando essa "ausência" com a questão do patriarcado (poder masculino) sobre a história das mulheres, bem como com o papel das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos na chamada "divisão sexual do trabalho". Nesse ponto, parece que a questão do tempo das mulheres também pode ser identificado [06].

Tais fatos são encarados pela autora de forma muito sincera e incisiva. A estratégia escolhida para essa comprovação foi colher algumas citações nos diversos capítulos, presentes em momentos distintos do texto, para demonstrar como essa característica é transversal, quer seja nas descrições que faz da sociedade patriarcal inglesa, seja na pesquisa da personagem na biblioteca, seja nas lições trazidas para as mulheres que assistem à conferência. Vejamos.

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Virgínia Woolf vai descrever quão precária era a situação das mulheres naquele momento, sem condições de possuírem bens e renda, em virtude de leis discriminatórias (e aqui aparece a questão da masculinidade do direito [07]) e por estarem responsáveis pelos trabalhos domésticos e do cuidado com os filhos: "Fazer fortuna e ter treze filhos... nenhum ser humano suportaria isso" (WOOLF, 1985, p. 31). E acrescenta, ao falar do seu ídolo Shakespeare, relacionando a temática de gênero com a questão das classes sociais:

Um gênio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes. Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes operárias. Como então poderia ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava, de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes? Não obstante, alguma espécie de talento deve ter existido entre as mulheres, como deve ter existido entre as classes operárias. (WOOLF, 1985, p. 64)

A importância dada à questão material fica também clara na exposição sobre o pagamento da conta ao garçom com uma nota de dez xelins fruto da herança de quinhentas libras por ano: "A sociedade me dá galinha e café, cama e moradia, em troca de um certo número de pedaços de papel que me foram deixados por uma tia, pela única razão de eu ter o mesmo nome que ela." (WOOLF, 1985, p. 50). A importância do dinheiro, como fator de "independência" [08] que influi na possibilidade de produzir intelectualmente, faz a personagem comparar o direito de voto, recentemente conquistado, com a herança:

A notícia da herança chegou certa noite quase simultaneamente com a da aprovação do decreto que deu o voto às mulheres. A carta de um advogado caiu na caixa do correio e, quando a abri, descobri que ela me havia deixado quinhentas libras anuais até o fim da minha vida. Dos dois — o voto e o dinheiro —, o dinheiro, devo admitir, pareceu-me infinitamente mais importante. (WOOLF, 1985, p. 50)

Parece-nos que a descoberta, pela personagem, dessa "verdade" confusa, que não era o objeto primeiro da sua exposição, reforça-se na pesquisa no Museu Britânico. No início do terceiro capítulo, após a personagem ter voltado para casa angustiada com a relação entre mulheres e pobreza, relaciona definitivamente os dois temas:

Quais eram as condições em que viviam as mulheres, perguntei-me; pois a ficção, trabalho imaginativo que é, não cai como um seixo no chão, como talvez ocorra com a ciência; a ficção é como uma teia de aranha, muito levemente presa, talvez, mas ainda assim presa à vida pelos quatro cantos" (WOOLF, 1985, p. 50)

E demonstra seu caráter questionador e irônico, quando finaliza a discussão sobre Judith, a irmã ficcional talentosa de Shakespeare: "Todas as condições de sua vida [de Judith] e todos os seus próprios instintos conflitavam com a disposição de ânimo necessária para libertar tudo o que há no cérebro" (WOOLF, 1985, p. 67).

A partir daí, esses aspectos vão relacionar-se com o domínio masculino e aparecem também quando se defrontam questões sobre a "autonomia" do "pensar" e do "produzir" intelectualmente. Há uma inversão que poderíamos chamar de "materialista" [09] no questionando aos homens:

Além disso, é muito fácil para vocês, que ingressaram na universidade e desfrutam de sala de estar (ou serão apenas conjugados de quarto e sala de estar?) própria afirmar que a genialidade não deveria ligar para tais opiniões, que a genialidade deveria pairar acima do que se diz dela. (grifos nossos). (WOOLF, 1985, p. 73).

No fim do livro, a autora adverte, já como conferencista [10], acerca das objeções que lhe poderiam ser feitas, justamente sobre a tamanha importância dada às "coisas materiais" no ensaio que se encerrava.

No entanto, ela escreve categoricamente que: "Talvez pareça uma coisa brutal dizê-lo, mas, na dura realidade, a teoria de que o gênio poético floresce onde é semeado, e de igual modo entre pobres e ricos, contém pouca veracidade." (WOOLF, 1985, p. 140). Mais uma vez a realidade desigual argutamente observada pela autora extrapola qualquer teorização ou abstração, indicando aquela relação de determinação (ou condicionamento) entre a liberdade para produzir literariamente e as condições materiais, condições de vida produzidas historicamente, que foram, como se sabe, extremamente excludentes para as mulheres.

Em se tratando da nação considerada o berço da liberdade e maior potência do mundo até então, as palavras de ultimato que Woolf traz no fim do livro para confirmar sua posição são bastante surpreendentes, mas elucidadoras:

Creiam-me – e passei uns bons dez anos observando umas trezentas e vinte escolas primárias -, podemos tagarelar sobre a democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem pouco mais esperança do que tinha o filho de um escravo ateniense de emancipar-se até a liberdade intelectual de que nascem os grandes textos. [...] É isso aí. A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual. E as mulheres sempre foram pobres, não apenas nos últimos duzentos anos, mas desde o começo dos tempos. (1985, p. 140-141)

O retorno, portanto, que a escritora faz à questão da temática de gênero aliada à questão das classes sociais anteriormente mencionado, indica uma preocupação para a autora: até pouco tempo, toda a historiografia (incluindo aí a história das mulheres e sobre as mulheres) havia sido feita por homens com condições materiais para serem lidas e discutidas por homens também com condições materiais, com raras e belíssimas exceções. Recontar ou reconstruir a história das mulheres, que acaba por ser uma "história vista de baixo", como diria Thompson [11], é uma necessidade fundamental para todas aquelas que pensam na emancipação feminina.

4.2. Uma história das mulheres numa perspectiva crítica

Nessas considerações, nosso objetivo é pontuar a presença, também perene, de uma certa leitura crítica da história das mulheres na obra de Virgínia Woolf. Sabendo de sua biografia e do contexto onde viveu, é possível imaginar o turbilhão de possibilidades que apareceram para alguém com acuidade intelectual e sensibilidade para as principais movimentações de seu tempo.

Às mulheres, como se sabe, foi relegada a escrita da história (decorrência óbvia da falta de instrução e do poder patriarcal exercido). Nesse sentido, Woolf parece indicar duas situações um pouco distintas mas conectadas: a necessidade e a possibilidade de recontar, "suplementar", a história. História essa não entendida como um dado a ser objetivado descritivamente ou naturalizado, mas entendida como um processo, com seus condicionantes e mudanças, com os seus gritos e seus silêncios.

Toda essa produção, para a autora, indica ao mesmo tempo a exclusão da mulher na escrita da sua história e a "imprestabilidade" dos livros raivosos que eram produzidos pelos homens de ciência para naturalizar a inferioridade das mulheres. Perguntava, após uma coleção de opiniões masculinas: "Como explicar a raiva dos catedráticos?". E logo depois, a resposta: "Qualquer que seja a razão, todos esses livros, pensei, inspecionando a pilha sobre a escrivaninha, são imprestáveis para meus fins" (1985, p. 44).

E para questionar essa naturalização, utiliza de uma metáfora já amplamente conhecida do espelho: a mulher é um espelho que aumenta o homem, o duplica. Sem esse espelho o homem estaria perdido. "Possivelmente, quando o professor insistia enfaticamente demais na inferioridade das mulheres, não estava preocupado com a inferioridade delas, mas com sua própria superioridade". (1985, p. 44).

Desse modo, Woolf estabelece alguns critérios importantes para o que estamos chamando aqui de história das mulheres numa perspectiva crítica. Se as mulheres, todas elas, também são sujeitos da história, cabe a elas romper com o discurso neutral e retoricamente objetivo que pressupõe um Homem abstrato como sujeito único da história. E um passo para realizar tal mister é a desmistificação desse conhecimento historiográfico e literário que, a despeito de querer retratar a História, retrata uma história.

Reconhecendo a história como processo material, é possível à autora identificar a possibilidade na mudança de valores decorrentes das transformações que estão a ocorrer na Inglaterra:

Mesmo que fosse possível afirmar o valor de um dom qualquer num dado momento, esses valores se modificam; em um século, eles se terão, com toda a probabilidade, modificado por completo. Além disso, dentro de cem anos, pensei, alcançando minha porta de entrada, as mulheres terão deixado de ser o sexo protegido (1985, p. 54)

Paradoxalmente, a escritora demonstra que não há ausência da mulher na arte ou na ciência: na verdade, sempre se falou muito sobre as mulheres, criando personagens fantásticas, situações de conflito, deusas e monstros: "as mulheres brilharam como fachos luminosos em todas as obras de todos os poetas desde o início dos tempos" (1985, p. 57). No entanto, essa postura, não podia escamotear as conseqüências drásticas na vida real. Retomando a relação dialética entre ficção e realidade, ela sintetiza:

De fato, se a mulher só existisse na ficção escrita pelos homens, poder-se-ia imaginá-la como uma pessoa da maior importância: muito versátil; heróica e mesquinha; admirável e sórdida; infinitamente bela e medonha ao extremo; tão grande quanto o homem e maior, para alguns. Mas isso é a mulher da ficção. Na realidade, como assinala o Professor Trevelyan, ela era trancafiada, surrada e atirada pelo quarto. [...] Na imaginação, ela é da mais alta importância; em termos práticos, é completamente insignificante. Ela atravessa a poesia de uma ponta à outra; por pouco está ausente da história. Ela domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na vida real, era escrava de qualquer rapazola cujos pais lhe enfiassem uma aliança no dedo (1985, p. 57-58)

Para reforçar o argumento desta leitura crítica da história das mulheres, poder-se-ia utilizar várias outras citações da parte que a autora faz a história das (poucas) mulheres que escreveram ficção na Inglaterra, nos capítulos IV e V, indicando, inclusive, um aspecto bastante interessante para a questão das obras-primas: elas não estão isoladas no tempo e no espaço, são o resultado de muitos anos, de muitas autoras que vieram antes, são uma síntese de várias determinações (tanto materiais quanto culturais) que dão à História um caráter coletivo e ao mesmo tempo ininterrupto.

Ficaremos, no entanto, satisfeitos, com a exaltação da necessidade de que as mulheres, embora alvo de muitos preconceitos e privações de toda ordem, agora não poderiam se ausentar de "incomodar", questionando e estudando novas possibilidades para contar sua história, com inovação e espírito crítico.

Nesse sentido de sugestão, há uma passagem que se tornou famosa e utilizada por vários autores(as) contemporâneos para relacionar Woolf com teorias desconstrutivistas, a la Derrida. A despeito de discordarmos das conseqüências que retiram dessa passagem [12], acreditamos que ela é sem dúvida uma pérola de compreensão crítica da história das mulheres. Vejamos:

Uma ambição que ultrapassaria minha audácia, pensei, procurando pelas prateleiras os livros que não estavam ali, seria sugerir às alunas dessas famosas universidades que elas reescrevessem a história, embora deva admitir que, muitas vezes, ela parece um tanto estranha tal como é – irreal, tendenciosa; mas por que não poderiam elas acrescentar um suplemento à história, dando-lhe, é claro, algum nome não conspícuo, de modo que as mulheres pudessem ali figurar sem impropriedade? (1985, p. 60)

E, por fim, nas últimas páginas do ensaio, mais pedidos com o mesmo conteúdo. "Peço-lhes que escrevam todo tipo de livros, não hesitando diante de nenhum assunto, por mais banal ou mais vasto que sejam". Isso porque, será duplamente importante "para seu bem [das mulheres] e para o bem do mundo em geral". (1985, p. 143).

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Sobre o autor
Hugo Belarmino de Morais

Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Professor das Faculdades Integradas de Patos - PB. Membro da Dignitatis - Assessoria Técnica Popular.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Hugo Belarmino. "Um teto todo seu" de Virgínia Woolf.: A produção intelectual e as condições materiais das mulheres. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2778, 8 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18451. Acesso em: 23 nov. 2024.

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