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Uma defesa garantista da adoção homoafetiva

25/02/2011 às 15:10
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1 INTRODUÇÃO

Diante da perspectiva da Dogmática Hermenêutica, requer-se uma interpretação jurídica com fins na decidibilidade de conflitos. Contudo, para que se efetue tal interpretação é necessário, sobretudo, direcionar o olhar para uma das teorias que pretendem explicar o Direito.

Para tanto, com vistas aos moldes pós-positivistas, entende-se que a Teoria Geral do Garantismo Jurídico melhor explica e se adéqua a uma sociedade pautada em um Estado Democrático de Direito, que retira da Constituição a proteção e garantia dos direitos fundamentais do ser humano.

A partir disso, a fim de buscar a virtualidade de tal teoria, coloca-se em questão, de forma ilustrativa, a decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça (Resp 889.852) que polemiza o tema da adoção homoafetiva, já que se impõe de forma a garantir os direitos e os interesses de duas crianças, ao deferir a adoção destas por um casal homossexual.

Com base no exposto, utilizar-se-á como forma de abordagem um raciocínio dedutivo. Desse modo, como em um procedimento lógico, o propósito de tal método é, justamente, partir de uma idéia geral para, então, aplicá-la a um caso particular. Evidentemente, aqui, parte-se da teoria do Garantismo Jurídico para uma análise específica de um acórdão com base no aporte teórico escolhido.

Por fim, para atingir a finalidade deste trabalho, dividir-se-á o presente em três capítulos, quais sejam: Dogmática Hermenêutica e decidibilidade de conflitos; a Teoria do Garantismo Jurídico; e, por último, a aplicação do Garantismo Jurídico ao recurso especial 889.852 do Superior Tribunal de Justiça.


2 DOGMÁTICA HERMENÊUTICA E DECIDIBILIDADE DE CONFLITOS

Com vistas à instrumentalidade do Direito por meio da linguagem, urge a necessidade de se captar o sentido mais adequado quando da incidência, em um caso concreto, de uma norma reguladora de condutas. Isto pois a prática forense exige do jurista a habilidade de tornar técnico algo que provêm do cotidiano, traçando exatamente o limiar entre o ser e o dever-ser.

A partir disso, lança-se mão da interpretação como o meio principal de se apurar o sentido da norma jurídica. Neste ponto, Tercio Sampaio (2003, p. 260) discorre que interpretar "[...] é selecionar possibilidades comunicativas da complexidade discursiva". Pode-se, então, dizer que o ato de interpretar muito se relaciona com a incidência prática da norma, já que a decisão judicial dependerá da concepção teórico-interpretativa do jurista sobre determinado fato.

Neste contexto, de tornar o saber teórico normativo algo prático, preocupa-se a Dogmática Hermenêutica com a interpretação voltada para a solução jurídica de conflitos. Na verdade, como aduz Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003, p. 249), por essa perspectiva

[...] o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais de um problema.

Logo, é perceptível que os objetivos da Dogmática Hermenêutica estão envoltos por, justamente, um saber tecnológico, o que retira o campo da hermenêutica de um plano originariamente zetético (problematizar sem compromisso em alcançar uma decisão judicial) e passa para uma instrumentalização da teoria (buscar por meio de uma teoria da interpretação jurídica a melhor solução para o caso concreto).

Neste diapasão, surge a importância das diversas teorias do Direito travadas pela doutrina jurídica. Tais teorias passam a funcionar como um "óculos hermenêutico", na medida em que norteiam os passos do jurista ao lidar com o Ordenamento Jurídico inserido em conflitos reais. Dessa forma, para que se faça uma interpretação do Direito é necessário, primeiramente, firmar-se diante de uma concepção de Direito.

Dessa forma, há que se considerar o fato de estarmos submetidos a uma sociedade que se baseia em Estado, Democracia e Direito, para, então, buscar por uma teoria jurídica que melhor atenda aos anseios deste modelo social.

Assim, tendo sido consagrado pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, caput, o Estado Democrático de Direito é tido como princípio fundamental da República e consiste, como menciona Uadi Lammêgo Bulos (2010, p. 496),

[...] na idéia de que o Brasil não é um Estado de Polícia, autoritário e avesso aos direitos e garantias fundamentais. Em suma, a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, porque assegura direitos inalienáveis, sem os quais não haveria democracia nem liberdades públicas.

Por esse viés, tendo a vigência de uma sociedade que está configurada com base nos direitos fundamentais e na liberdade para todos, aponta-se o Garantismo Jurídico como uma teoria que melhor pode ser aplicada com o intuito de solucionar juridicamente conflitos sociais. Isto, tendo em vista seu surgimento em um movimento pós-positivista que tem fulcro na lei e, além disso, se associa à ideais que primam por fins sociais, como a valorização do homem e sua coletividade, transmitidos por regras e princípios.

Para tanto, a fim de demonstrar a teoria geral do Garantismo Jurídico, assim como a sua compatibilidade com as necessidades interpretativas e críticas atuais, analisar-se-á, de modo ilustrativo, uma decisão de caráter paradigmático do Superior Tribunal de Justiça.


3 A TEORIA GERAL DO GARANTISMO JURÍDICO

A partir da segunda metade do século XX, surge o movimento que intenta questionar as bases da Dogmática e, por conseguinte, da interpretação do Direito vigentes até então. Tal movimento, denominado de pós- positivista, rompe a barreira que detinha o jurista, na figura do juiz, como mero aplicador dos fatos à norma. Assim, o Direito que era visto como um sistema fechado, que valorizava primordialmente a vontade do legislador, passa a incorporar ao Ordenamento princípios e valores de importância social.

Infere-se, assim, uma mudança paradigmática no âmbito jurídico, já que

o constitucionalismo moderno promove [...] uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. (BARROSO, 2001, p. 19).

Logo, percebe-se que com a caracterização dos princípios como normas no Ordenamento jurídico pátrio, as cláusulas se tornam abertas e permitem uma atuação maior do juiz ao utilizar a argumentação para decidir um caso concreto.

No que tange à adesão e à difusão das idéias do pós-positivismo, surge na contemporaneidade, dentre outras, a teoria do Garantismo Jurídico.

Tal teoria, elaborada por Luigi Ferrajoli em 1989, em sua obra "Derecho y Razón", propõe, basicamente, explicar mais e melhor o Estado Democrático Constitucional atual e, ainda, estabelece um resgate da sua legitimidade. Dessa forma, "[...] propõe um modelo ideal de Estado de Direito, ao qual os diversos Estados Reais de Direito devem aproximar-se, sob pena de deslegitimação" (CADEMARTORI, 1999, p. 72).

A partir disso, como uma forma para melhor identificar a teoria Garantista, divide-se o termo em três acepções. Quais sejam: o modelo normativo de Direito; a teoria de legitimidade; e, por fim, a teoria jurídica.

3.1 O MODELO NORMATIVO DE DIREITO COMO PRIMEIRA ACEPÇÃO DO TERMO "GARANTISMO"

Na primeira das acepções, designa-se um modelo normativo de Direito que é propriamente de um Estado Constitucional Democrático de Direito. Ou seja, busca-se, a partir da supremacia de uma Constituição, verificar eventuais dissonâncias entre esta e normas infraconstitucionais. Assim, "[...] poderá inferir-se o grau de garantismo do referido sistema" (CADEMARTORI, 1999, p. 76), que corresponde exatamente ao quanto se cumpre as normas constitucionais.

Dentro disso, Ferrajoli (1995, p. 849) ainda propõe três planos para essa primeira acepção: epistemológico, político e jurídico. Acerca destes, diz que

[...] o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognoscitivo ou de poder mínimo, no plano político como uma técnica de tutela capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade e no plano jurídico como um sistema de vínculos impostos à potestade punitiva do Estado na garantia dos direitos dos cidadãos. [01] (tradução livre).

Então, pode-se concluir que por um viés epistemológico se configura um modelo de intervenção reduzida do Estado, com ênfase na centralidade da pessoa humana; por um viés político, o objetivo gira em torno da atuação do poder público, que deve ser garantidora das liberdades individuais; e, por último, por um viés jurídico a intenção é a promoção dos direitos fundamentais que atuam, inclusive, limitando o poder estatal.

Vale ressaltar, ainda no plano jurídico, a configuração de uma dimensão descritiva do Garantismo. Isto, pois, demonstra como é o Estado de Direito atual, qual seja baseado em uma Constituição Federal que supera o déficit de indisponibilidade de conteúdo das teorias jurídicas formalistas, as quais possuem como critério de validade jurídica o respeito a condições formais: autoridade produtora da norma jurídica e procedimento adequado para produção.

3.2 A TEORIA DE LEGITIMIDADE COMO SEGUNDA ACEPÇÃO DO TERMO "GARANTISMO"

Quanto à segunda acepção, pode-se identificar uma dimensão prescritiva ou propositiva do Garantismo Jurídico, já que se pretende evidenciar como deve ser o Estado Democrático de Direito, a fim de que os Estados reais possam-se nortear.

Para tanto, lança-se um paralelo entre validade e efetividade das normas estatais. A partir disso, quer-se estabelecer parâmetros (validade) para que as normas jurídicas sejam passíveis de aplicabilidade na prática (efetividade). Sobretudo, que o Estado seja dotado de práticas garantistas em prol dos direitos fundamentais do homem.

Contudo, são visíveis práticas corriqueiras do Estado que demonstram uma dissociação entre validade e efetividade, na medida em que normas válidas não são aplicadas a ponto de produzirem efeitos sociais úteis e, ao inverso, normas são tidas como efetivas mesmo sem conterem validade.

Neste ponto, as práticas anti-garantistas do Estado tornam a legitimidade um fator idealizado da teoria, ou seja, algo a ser alcançado. Por isso, o fato de ser tratado como algo propositivo "[...] ao postular valores que necessariamente devem estar presentes enquanto finalidades a serem perseguidas pelo Estado de Direito, quais sejam a dignidade humana, a paz, a liberdade plena e a igualdade substancial." (CADEMARTORI, 1999, p. 72).

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3.3 A TEORIA JURÍDICA COMO TERCEIRA ACEPÇÃO DO TERMO "GARANTISMO"

Pela acepção jurídica, o Garantismo traz à tona um aspecto formal e substancial da norma jurídica. Ou seja, além do rigor de obedecer a um procedimento formal para obter validade, a norma traz em seu bojo também respeito a um aspecto substancial.

Então, observa-se uma primeira implicação da teoria jurídica, que é, justamente, uma redefinição conceitual de validade jurídica. Aqui, a validade irá abarcar também o conteúdo, na medida em que agrega valores e princípios à norma. Deve, portanto, estar em conformidade com uma Constituição, já que estamos no contexto de um Estado Democrático de Direito.

Com isso, pode-se identificar a redefinição de outro conceito: o de vigência. Pela perspectiva Garantista, é vigente a norma que obedece ao procedimento formal do Estado para ser criada. Logo, "[...] podemos dizer que as normas vigentes [...] podem ser válidas ou inválidas, e eficazes ou ineficazes" (CADEMARTORI, 1999, p. 78), bastando se enquadrar nos requisitos formais de validade.

Neste viés ainda é possível uma terceira redefinição, concernente à idéia de eficácia. Esta, para o Garantismo, remete à devida observância das prescrições normativas na prática. Assim, só se atinge a eficácia das normas quando incentivadas pelo poder público e vividas pela sociedade.

Diante disso, o teórico Luigi Ferrajoli (1995, p. 365) tornou possível visões inéditas sobre "justiça", quando diz que

[...] podemos chamar de justiça interna (ou legal) à correspondência entre vigência e validade no seio de cada ordenamento: das leis com respeito à constituição e das sentenças com respeito às leis; e justiça externa à correspondência entre validade e justiça, isto é, à adesão do ordenamento em seu conjunto a valores políticos externos. [02] (tradução livre).

Quer-se, portanto, com o termo justiça, que a norma esteja consoante às exigências sociais, no que tange não só ao âmbito jurídico mas, também, aos âmbitos político, econômico e ético.

Depois de identificadas as redefinições dos predicados de validade, vigência, eficácia e justiça, encontra-se um problema central que remete a uma falácia Garantista, já que é travada uma divergência entre os planos do ser e do dever-ser.

Isto, pois o ponto crucial da tendência crítica do Garantismo Jurídico é "a forma de abordagem do Direito que coloca em questão dois dogmas do positivismo dogmático: a fidelidade do juiz à lei e a função meramente descritiva e avalorativa do jurista em relação ao Direito vigente" (CADEMARTORI, 1999, p. 82). Neste ponto, entra em questão a necessidade de o juiz buscar, consoante às necessidades sociais, a solução dita mais justa para o caso, conferindo uma maior legitimidade à sua decisão.

Para tanto, o juiz pode deixar de aplicar – no caso concreto – uma norma jurídica vigente, mas inválida, já que a sua fidelidade é ao Direito e não à lei. Na verdade, preza-se pela supremacia constitucional, que deve ser tida como fator principal de validade das normas inferiores. E, para fazer esse juízo mais complexo da validade jurídica, já que envolve "opinião" acerca de aspectos formais e materiais, o juiz se posiciona superando, portanto, a visão de que sua atividade é meramente de aplicador mecânico das normas jurídicas.

Diante do exposto, conclui-se que a teoria do Garantismo Jurídico estabelece uma crítica ao modelo de Estado vigente, e também proporciona uma solução para a falta de legitimidade do mesmo. Na medida em que se situa no Estado Democrático de Direito, coloca-se a Constituição acima do Ordenamento para garantir o cumprimento dos direitos fundamentais do ser humano. Portanto, o que se pretende por meio desta concepção de Direito é interpretar a realidade social de forma mais justa, já que se analisa a concretude dos fatos com parâmetros no valor da pessoa humana.


4 APLICAÇÃO DO GARANTISMO JURÍDICO AO RECURSO ESPECIAL Nº 889.852 DO STJ

No mês de abril de 2010, o Supremo Tribunal de Justiça deste país acordou por unanimidade em indeferir o recurso especial nº 889.852, interposto pelo Ministério Público do estado do Rio Grande do Sul.

Sobre o caso, relata-se: LMBG impetrou ação para requerer a adoção das crianças JVRM e PHRM, irmãos biológicos. Afirma a requerente que vivia em união homoafetiva com LRM, desde o ano de 1998, e que a companheira já havia conseguido a adoção judicial dos menores desde o nascimento dos mesmos.

Após estudos sobre o caso, a sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido da autora, concedendo a adoção homoafetiva e determinando a inserção do sobrenome da LMBG no nome das duas crianças.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul, por sua vez, em apelação cível argüiu a impossibilidade de um casal formado por pessoas de mesmo sexo adotar judicialmente duas crianças. Em resposta ao apelo, o Tribunal de Justiça local não proveu o recurso, alegando ser a adoção, neste caso, um ato que garante os interesses dos menores, tendo em vista a relação saudável existente neste meio familiar.

Neste ínterim, o Ministério Público do Rio Grande do Sul interpõe recurso especial à Corte do Superior Tribunal de Justiça, que, como já supramencionado, é indeferido.

A partir do breve relatório, urge a necessidade de se constatar os argumentos que fizeram deste um caso de ampla repercussão no país.

Assim, requer o Ministério Público do Rio Grande do sul, como consta à fl. 5 do acórdão em tela, "[...] o provimento do recurso, para o fim de definir a união homossexual apenas como sociedade de fato e, consectariamente, fazer incidir o artigo 1.622 do Código Civil, vedando a adoção conjunta dos menores pleiteada".

Além disso, o apelante "[...] alega contrariedade aos artigos 1.622 e 1.723 do Código Civil de 2002, 1º da Lei 9.278/96 e 4º da Lei de Introdução ao Código Civil [...]".

Evidentemente, ao se analisar o disposto no artigo 1.622 do Código Civil, que diz que "ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável", percebe-se que a defesa do Ministério Público estadual está pautada exclusivamente na literalidade da lei. Com isso, restam indícios de uma argumentação que leva a uma interpretação isolada dos dispositivos do Ordenamento jurídico pátrio.

Tal argumentação pode ser dita isolada, na medida em que não considera as normas inseridas em uma organização sistemática. Isto pode ser observado pelo fato de o recorrente Ministério Público não mencionar, em momento algum, as vantagens advindas do bom convívio familiar que as crianças possuem com as mães, e, ainda, que por se tratar de uma relação homossexual, isso nada tem atrapalhado no desenvolvimento dos menores.

Portanto, infere-se que a postura adotada pelo Ministério Público se porta de forma anti-garantista, pois não leva em conta o Estado Democrático de Direito com as suas devidas preocupações de melhor atender ao ser humano com relação às suas necessidades específicas. No caso em tela, as crianças são amparadas, ainda, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD), uma manifestação explícita da solidificação dos direitos constitucionalmente assegurados dessa parte da sociedade, dita hiposuficiente.

Por outro lado, o Ministro relator Luis Felipe Salomão (fl. 8) inicia seu voto fazendo a ressalva de que

[...] em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a interpretação da lei, segundo penso, deve levar em conta, sempre que possível, os postulados maiores do direito universal.

Assim, não restam dúvidas de que há de fato uma preocupação com as implicações do caso concreto a ser julgado.

Ao prosseguir em sua defesa, o relator menciona a importância da tolerância com relação às diferenças e preza pela não discriminação: um respeito ao artigo 3º, IV da Constituição Federal.

Aduz, ainda, com referência às implicações jurídicas, que caso seja indeferida a adoção, as crianças perderão o direito à proteção integral, já que se uma das mães vier a faltar, ficará comprometido o direito sucessório e o direito a alimentos.

Outra questão que o relator provoca é com relação às condições da mãe autora. Esta é professora universitária e, portanto, ao apresentar vínculo empregatício estável poderá garantir às crianças melhores condições de sustento, como inclusão em plano de saúde e no ensino básico e superior de ensino.

Contudo, é explícita a posição do acórdão em se preocupar com a prevalência dos interesses dos menores. Isto resta claro, quando observa o relator que (fl.10)

[...] a matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das crianças, pois são questões indissociáveis entre si. É o que se depreende do artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A partir do exposto e com respeito ao que melhor se designa para as crianças de acordo com a tutela especial oferecida pela Constituição Federal em seu artigo 227, não restam dúvidas do forte vínculo afetivo construído e que, por conseguinte, deve ser mantido. Com apoio, o parecer do Ministério Público Federal se mostra favorável à permanência da adoção pelo casal, pelo fato de não haverem razões que funcionem como empecilho ao bom desenvolvimento dos menores.

Ainda na defesa da adoção e como forma de refutar a argumentação apresentada pelo recorrente, o relator aduz que "não existe proibição para o reconhecimento de qualquer união, desde que preenchidos os requisitos legais." (fl. 15). Dessa forma, acerca dos requisitos doutrinários para configuração da entidade familiar, disserta Gustavo Tepedino (1999, p. 64), que

[...] as relações de família, formais ou informais, [...] ontem como hoje, por muito complexas que se apresentem, nutrem-se todas elas, de substancias triviais e ilimitadamente disponíveis a quem delas queira tomar: afeto, perdão, solidariedade, paciência, devotamento, transigência, enfim, tudo aquilo que, de um modo ou de outro, possa ser reconduzido a arte e a virtude do viver em comum.

Assim, quer dizer que, a partir do momento que a relação entre duas pessoas se configure nos moldes de uma convivência pública, duradoura e contínua, não há aspecto algum que impeça que seja entre dois homens ou duas mulheres.

Diante disso, pode-se perceber que o legislador optou por nada mencionar acerca da caracterização sexual dos componentes da união afetiva. Logo, configura-se um caso de lacuna na lei. Para tanto, usando-se de métodos de integração, como a analogia, prevista no artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil, e de métodos interpretativos, pode-se chegar a uma solução cabível para o caso concreto. Isto, tendo em vista, até mesmo, o fato de o juiz não poder se eximir de decisão apenas pelo fato de não haver expressa previsão legal sobre determinado assunto.

Com referência ao assunto em questão, menciona o relator (fl. 17)

Registre-se que o Superior Tribunal de Justiça, a despeito de não haver reconhecido expressamente a união estável homoafetiva, considerou-a análoga à união entre pessoas de sexos diferentes, fazendo incidir, a fim de dispensar tratamento igualitário, em termos patrimoniais, às relações heterossexuais e homossexuais [...]

Para tanto, faz-se o uso da analogia a fim de garantir a adoção das crianças pelas mães que mantêm relação homoafetiva, a partir da incidência de tratamento idêntico ao conferido à união estável, na medida em que vivem juntas desde o ano de 1998, de forma pública e com ânimo de constituírem família. Logo, afasta-se a possível violação do artigo 1.622 do Código Civil alegada pelo recorrente Ministério Público.

Vale ressaltar diante da análise do julgado, o caráter garantista da decisão do STJ. Primeiramente, o relator enfatiza a função social do Direito, na medida em que propõe adequar a lei aos anseios dos menores adotados, o que preza pela centralidade da pessoa humana. Segundo que, com vistas à supremacia da Constituição, o respeito aos preceitos constitucionais é condição de validade das normas jurídicas e de legitimidade da atuação estatal, assim, propõe ampla garantia de direitos tanto para as mães quanto para as crianças.

Então, há que se falar em uma decisão legitimamente garantista, que não se preocupa somente com formalismos, mas acima de tudo com a materialidade e com o verdadeiro sentido da norma, o que caracteriza uma concepção de justiça interna. Daí, retira-se a importância da teoria do Direito escolhida, pois atua de forma a influenciar na atividade interpretativa e decisória do órgão julgador.

Cabe ressaltar, ainda, o caráter paradigmático da decisão estudada, tendo em vista a inexistência de precedentes neste sentido em nosso país e o fato de que esta decisão fixa, de forma importante, uma diretriz garantista para o tema. Ao final do acórdão, há uma ressalva do Ministro do STJ, com vistas, justamente, a explicitar a posição da 4ª turma do Tribunal, de quão importante é "deixar positivado". Logo, infere-se que a jurisprudência tem tido grande força, não no sentido de fazer com que o Judiciário esteja "legislando", mas com o fim de dar eficácia às normas garantidoras de direito, atividade precípua deste órgão estatal, comprometido com os valores de um Estado Constitucional Democrático de Direito.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, o Garantismo Jurídico se constrói nos moldes de uma teoria do Direito que pretende, sobremaneira, alcançar a incidência prática dos direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente previstos.

Para tanto, há que se levar em conta a necessidade da adequação da norma jurídica ao seu tempo de aplicação e ao caso concreto. Isto, por meio de uma interpretação razoável, que não se porte anacrônica, e com fins na Dogmática Hermenêutica.

Assim, pautando-se na decidibilidade de conflitos, uma defesa Garantista da adoção homoafetiva se configura na proteção dos direitos dos menores e, ainda, é embasada na concepção contemporânea de família, demonstrada por meio da relação de afeto entre as crianças e o casal homossexual que pretende a adoção. Portanto, resta caracterizada a centralidade da pessoa humana nos aspectos decisórios do julgado.

No caso, o foco Garantista aplicado permite ao órgão julgador uma decisão nunca antes proferida. É, na verdade, uma admissão e incorporação de valores socialmente compartilhados na análise de casos concretos. Evidentemente, configura-se na prática forense a busca por uma decisão justa, de acordo com a concepção Garantista do termo.

Logo, o STJ direciona a jurisprudência do país ao deixar positivado, para além da norma jurídica, que hoje o melhor e mais justo é acatar aos anseios do Estado democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, v. 1, n. 6, set. 2001.

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010.

BRASIL. Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. Nº 889.852-RS. Disponível em: <http://www.direitohomoafetivo.com.br/uploads_jurisprudencia/649.pdf>. Acesso em: 02 set. 2010.

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Madrid, Trotta Ed., 1995.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.


Notas

  1. "[...] en el plano epistemológico se caracteriza como un sistema cognoscitivo o de poder mínimo, en el plano político como una técnica de tutela capaz de minimizar la violencia y de maximizar la libertad y en el plano jurídico como un sistema de vínculos impuestos a la potestad punitiva del estado en garantía de los derechos de los ciudadanos.".
  2. "[...] podemos llamar justicia interna (o legal) a la correspondencia entre vigencia y validez en el seno de cada ordenamiento: de las leyes respecto a la constitución y de las sentencias respecto a las leyes; y justicia externa a la correspondencia entre validez y justicia, es decir, a la adhesión del ordenamiento en su conjunto a valores políticos externos.".
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Sobre a autora
Carolina Lopes Lino

Estudante de Direito na Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINO, Carolina Lopes. Uma defesa garantista da adoção homoafetiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2795, 25 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18573. Acesso em: 19 nov. 2024.

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