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A ação penal na lesão corporal leve praticada pelo marido contra a mulher

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A superação da violência de gênero é um tema que vem ganhando uma importância cada vez maior no âmbito da comunidade internacional, merecendo, inclusive, a edição de normas de cunho protetivo, a exemplo da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher, a chamada Convenção de Belém do Pará de 1994.

No plano interno, a edição da Lei n°11.340/06, a chamada Lei Maria da Penha, representa o engajamento do Brasil no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, sendo fruto de recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após denúncia da mulher que empresta seu nome à Lei, em virtude de violência doméstica por ela sofrida e não resolvida de modo adequado pela Justiça brasileira. [01]

Em que pese a legislação pátria estabelecer 3 (três) espécies de atuação:preventiva, psicossocial e punitiva, com destaque para as duas primeiras, sem sombra de dúvidas, o aspecto punitivo é o que surge com mais destaque [02], inclusive com acirrada polêmica acerca da necessidade de haver representação da vítima para a lesão corporal leve.

Com relação a esse aspecto da novel legislação, duas correntes se firmaram a respeito, com reflexos na jurisprudência pátria, a primeira entendendo como desnecessária a representação da vítima e a segunda reafirmando a lesão corporal leve, mesmo no âmbito das relações domésticas contra a mulher, como crime de ação pública condicionada à representação.

Os defensores da primeira corrente lastreiam sua argumentação a partir da constitucionalidade e convencionalidade das normas de proteção da mulher, bem como no disposto no art. 41 da Lei n° 11.340/06, o qual exclui a incidência da Lei n° 9.099/95 dos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.

No que se refere à adequação constitucional da citada corrente, esta se verifica a partir de dois dispositivos: o caput do art. 5°, que prevê a igualdade entre os gêneros e o art. 226, §8°, que dispõe que "o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações".

No plano internacional, a já citada Convenção de Belém do Pará segue o mesmo rumo da orientação constitucional e da Lei Maria da Penha.

Nesse sentido, ao se cotejar as normas constitucionais e internacionais que regem o tema com os estarrecedores dados de violência doméstica e familiar contra a mulher, fruto de anos de opressão e uma cultura machista que naturaliza o cometimento de tais delitos e evita uma adequada prevenção do tema, bem como a punição dos infratores, verifica-se que a interpretação segundo a qual o crime de lesão corporal leve seria de ação penal pública incondicionada é a mais condizente com a necessidade de promover mudanças no estado de machismo que ainda vigora em sociedade e coibir sua face mais cruel, a violência quotidiana contra as mulheres.

Outrossim, no plano legal, consoante a citada corrente, na medida em que o art. 41 da Lei Maria da Penha excluiu os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher da esfera de aplicação da Lei n° 9.099/95 e foi a citada legislação que tornou os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa como de ação penal pública condicionada, tais delitos quando praticados contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar dispensariam a representação da ofendida.

A citada corrente chegou a ser aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça, consoante se percebe do julgado abaixo colacionado:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA.

1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República).

2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.

3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal.

4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006).

5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada.

6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima.

7. Ordem denegada. [03]

Por outro lado, firmou-se posição na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de se considerar que os citados delitos permanecem sendo crimes de ação pública condicionada à representação da ofendida.

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Os defensores da citada corrente afirmam que tornar incondicionada a ação penal em tais delitos ao invés de resguardar o ambiente familiar, impossibilitariam, em determinados casos, a sua pacificação, posto que tiraria das mãos da ofendida a oportunidade de fazer o juízo sobre o que seria melhor para a sua família.

Outrossim, tal reforma iria ao encontro do princípio da intervenção mínima da lei penal, objetivo que se deve buscar no direito moderno.

Nesse sentido, leciona Damásio de Jesus [04]:

"Segundo entendemos, a Lei n. 11.340/2006 não pretendeu transformar em pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar, o que contrariaria a tendência brasileira da admissão de um Direito Penal de Intervenção Mínima e dela retiraria meios de restaurar a paz no lar. Público e incondicionado o procedimento policial e o processo criminal, seu prosseguimento, no caso de a ofendida desejar extinguir os males de certas situações familiares, só viria piorar o ambiente doméstico, impedindo reconciliações"

Como supramencionado, a citada posição tornou-se majoritária no STJ, consoante se depreende do Informativo da sua Jurisprudência, abaixo transcrito:

Terceira Seção REPETITIVO. LEI MARIA DA PENHA.

A Seção, ao julgar recurso sob o regime do art. 543-C do CPC c/c a Res. n. 8/2008-STJ, firmou, por maioria, o entendimento de que, para propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves (Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), pois se cuida de uma ação pública condicionada. Observou-se, que entender a ação como incondicionada resultaria subtrair da mulher ofendida o direito e o anseio de livremente se relacionar com quem quer que seja escolhido como parceiro, o que significaria negar-lhe o direito à liberdade de se relacionar, direito de que é titular, para tratá-la como se fosse submetida à vontade dos agentes do Estado. Argumentou-se, citando a doutrina, que não há como prosseguir uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com a definição de alimentos, partilha de bens, guarda e visitas. Assim, a possibilidade de trancamento de inquérito policial em muito facilitaria a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor. Para os votos vencidos, a Lei n. 11.340/2006 afastou expressamente, no art. 41, a incidência da Lei n. 9.099/1995 nos casos de crimes de violência doméstica e familiares praticados contra a mulher. Com respaldo no art. 100 do CP, entendiam ser de ação pública incondicionada o referido crime sujeito à Lei Maria da Penha. Entendiam, também, que a citada lei pretendeu punir com maior rigor a violência doméstica, criando uma qualificadora ao crime de lesão corporal (art. 129, § 9º, do CP). Nesse contexto, defendiam não se poder exigir representação como condição da ação penal e deixar ao encargo da vítima a deflagração da persecução penal. REsp 1.097.042-DF, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 24/2/2010.

Em que pese o Superior Tribunal de Justiça ter se posicionado de modo tão conservador, espera-se que o tema seja finalmente pacificado pelo Supremo Tribunal Federal em termos distintos, posto que a citada corte ainda não se pronunciou sobre o tema.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIANCHINI, Alice; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Lei de violência doméstica e familiar contra mulher (Lei Maria da Penha): constitucionalidade e convencionalidade. In: Atualidades Jurídicas: Revista eletrônica do Conselho Federal da OAB, v. 5, p. 2-22, 2009.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 96992/DF. Sexta Turma. Relatora: Min. Jane da Silva, Brasília, DF, 12/08/2008.

JESUS, Damásio de. Da Exigência de representação da ação penal publica por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, set. 2006, disponível em www.damasio.com.br

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional.Volume I. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2008.

MACHADO, Antônio Alberto, Curso de Processo Penal. 2ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2009.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. 2ª Edição. Salvador: Editora JusPodivm, 2009.


Notas

  1. BIANCHINI, Alice; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Lei de violência doméstica e familiar contra mulher (Lei Maria da Penha): constitucionalidade e convencionalidade. In: Atualidades Jurídicas: Revista eletrônica do Conselho Federal da OAB, v. 5, p. 2-22, 2009.
  2. Idem.
  3. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Penal. Habeas Corpus 96992/DF. Sexta Turma. Relatora: Min. Jane da Silva, Brasília, DF, 12/08/2008.
  4. JESUS, Damásio de. Da Exigência de representação da ação penal publica por crime de lesão corporal resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006). São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, set. 2006, disponível em www.damasio.com.br
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Sobre o autor
Geraldo Vilar Correia Lima Filho

Defensor Público Federal. Professor Universitário. Chefe Substituto da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Mestrando em Direito pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA FILHO, Geraldo Vilar Correia. A ação penal na lesão corporal leve praticada pelo marido contra a mulher. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2811, 13 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18689. Acesso em: 22 dez. 2024.

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