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Da constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 12.382/2011.

Reajuste do salário mínimo por decreto

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5. Atualizando o princípio da legalidade e as cláusulas de reserva legal

No ponto anterior, desenvolvi uma argumentação que é a correta, no meu entender, a respeito do tema. Não houve realmente uma delegação ao Executivo, antes apenas uma mera execução da lei, sem margem de apreciação discricionária, consoante adora afirmar a doutrina administrativista sobre as relações entre os atos administrativos e a lei.

Mas agora quero, na verdade, atacar a própria distinção sobre a qual se basearam os requerentes e que está assente desde há muito tempo em nossa prática constitucional, inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tomando como exemplo a própria ADIn. 2.585/SC. Explanei o significado e a relevância prática da distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei, com base na idéia de que em uma não há possibilidade ou margem de apreciação para uma complementação do conteúdo da lei por parte da Adm. Pública, ao passo que, na outra, isso é possível, a depender do que o legislador vier a estabelecer. No entanto, essa visão do princípio da legalidade e, consequentemente, da própria reserva de lei está severamente ameaçada.

Esse paradigma classificatório da cláusula de reserva legal parte da premissa, compartilhado pela própria idéia de legalidade e que se incorporou ao senso comum, de que a lei per se é suficiente. Não há necessidade de qualquer espécie de ulterior questionamento ou diferenciação, limitando-se o Executivo a uma mera "aplicação" da lei. Esse paradigma é essencialmente juspositivista, como podemos observar, e remonta a própria idéia política de lei segurança contra os abusos do Executivo, cujo embrião foi a Carta Magna de 1215 e que deu origem à famosa expressão "no taxation without representation" [11]. Mas isso não é mais correto hoje, seja sob qual ângulo se veja o princípio da legalidade.

Em primeiro lugar, sob o ângulo da teoria política, nem mesmo sob a égide do Estado Liberal oitocentista, que, junto com o positivismo jurídico e a democracia formal, formam o paradigma-mor da teoria política, jurídica e econômica que cada vez mais soçobra frente às mudanças sociais, a lei era autosuficiente. "(...) o direito era o conteúdo da lei e esta era o resultado livre e infalível da vontade geral" [12]. Com a mudança estrutural das funções do Estado, requerendo um Executivo mais presente e atuante isso se tornou iniludível e mais agudo.

Afora isso, note-se que a tecnicização do problemas sociais, já notada por Bobbio, põe em xeque a própria idéia de democracia e, por tabela, a primazia da lei. Especialistas em determinadas áreas do saber humano detém, iniludivelmente, uma parcela de poder político, já que serão eles que irão determinar, no final das contas, o que é devido [13]. Consequentemente, a Adm. Pública ganha em liberdade [14] e, consequentemente, em poder político.

José Casalta Nabais [15] afirma, ao refazer uma leitura do princípio da legalidade, que:

"(...) a lei que, ao contrário do que sugeria a fé liberal na sua omnipotência, jamais pôde prescindir da dispensa de um papel activo mínimo à administração, mesmo no sector da reserva de lei e quando ao estado estava [sic] vedado uma ação activa nos domínios econômico e social, apresenta-se-nos hoje em dia contendo ‘predeterminações abertas’, reclamadas por exigências várias e traduzidas na técnica legislativa de utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais e na concessão de verdadeira discricionalidade, assim se abrindo caminho a uma ampla margem de livre actuação do operador jurídico administração."

Em segundo lugar, do ponto de vista linguístico, reconhece-se cada vez mais, dentro da teoria da interpretação jurídica, que a norma jurídica não é um dado prévio, mas fruto de um processo interpretativo que tem como ponto de partida um cânon linguístico (v.g., a redação do artigo de uma lei) e como ponto final a norma que se estava procurando. Destaco, aqui, a postura teórica de Kelsen, um dos maiores filósofos do direito do século passado, que, apesar de ser um juspositivista ferrenho, reconhecia a absoluta impossibilidade de determinação absoluta entre uma norma de um escalão superior e uma norma do escalão inferior dentro da estrutura piramidal do ordenamento jurídico. Transcrevo uma passagem da obra do membro do Círculo de Viena:

"A relação entre um escalão superior e um escalão inferior da ordem jurídica, como a relação entre a Constituição e a lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do escalão superior regula – como já se mostrou – o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior, ou o ato de execução, quando já deste apenas se trata; ela determina não só o processo em que a norma inferior ou o ato de execução são postos, mas também, eventualmente, o conteúdo da norma a estabelecer ou do ato de execução a realizar.

Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para que o órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externar que o órgão emissor do comando não previ e, em grande parte, nem sequer podia prever." [16]

Na doutrina mais atual, distingue-se, na hermenêutica jurídica concretizadora tão em voga, texto e norma jurídica [17], chegando Müller até a decompor a norma em programa normativo e âmbito normativo, segundo a teoria normativo-estruturante [18], reconhecendo-se, dessa forma, que a interpretação jurídica não é uma mera subsunção ou silogismo entre a norma e o fato objeto de aplicação. O raciocínio jurídico é inerentemente problemático, complexo e, o que é mais importante ainda, iniludivelmente constitutivo, conforme afirma o Min. Eros Grau [19].

Com base nisso, é de se mencionar que essa tarefa interpretativa realizada pela comunidade de intérpretes longe está de configurar qualquer espécie de usurpação de funções. Quando o Executivo ou o Judiciário interpretam os textos legais, a exegese não configura necessariamente qualquer espécie de afronta ao princípio da separação dos poderes e da democracia. É algo inerente à prática jurídica.

Desse modo, vai-se até mais longe do que vem sendo feito no Supremo Tribunal Federal. Num primeiro momento, entendia o Supremo Tribunal Federal que a interpretação jurídica estava longe de configurar uma espécie de produção normativa. A seguinte passagem do voto do Min. Celso de Mello, no RE 263.831 AgR-SP [20], corrobora essa afirmação:

"A interpretação, qualquer que seja o metido hermenêutico utilizado, tem por objetivo definir o sentido e esclarecer o alcance de determinado preceito inscrito no ordenamento positivo do Estado, não se confundindo, por isso mesmo, com o ato estatal de produção normativa. Em uma palavra: o exercício de interpretação dos textos legais e da Constituição, ao contrário do que absurdamente sustenta a ora recorrente, não importa em usurpação das atribuições normativas dos demais Poderes da República."

Recentemente, no entanto, a questão passou a ganhar outros contornos. O Min. Eros Grau, por exemplo, reconhece que a função normativa não está vinculada organicamente a um dos centros de poder político (Legislativo). No seu dizer e baseando-se numa distinção entre função legislativa e função normativa, os três Poderes exercem função normativa. [21] Trago à baila trecho do seu voto:

"A função legislativa é maior ou menor do que a função normativa. Maior porque abrange a produção de atos administrativos sob a forma de leis [lei apenas em sentido formal, lei que não é norma, entendidas essas como preceito primário que se integra no ordenamento jurídico inovando-o]; menor porque a função normativa abrange não apenas normas jurídicas contidas em lei, mas também nos regimentos editados pelo Poder Judiciário e nos regulamentos expedidos pelo Poder Executivo.

Daí que a função normativa compreende a função legislativa [enquanto produção de normas jurídicas], a função regimental e a função regulamentar. Quanto a estas últimas expressões das parcelas de função normativa respectivamente próprias ao Judiciário e ao Executivo, decorrem – no sistema organizacional construído sobre a técnica da ‘separação’ dos poderes – de uma atribuição de poder normativo contida explícita ou implicitamente na Constituição ou em lei formal."

Apesar de reconhecer um verdadeiro caráter normativo à atuação dos demais Poderes, para o Min. Eros Grau essa função normativa não possui espaço quando se está se tratar do princípio da reserva absoluta de lei [22]. Não obstante os termos restritos em que foi reconhecida a atividade normativa, é um passo significativo do Supremo Tribunal Federal para reconhecer o caráter constitutivo-normativo de todos os três Poderes, e não apenas do Poder Legislativo.

Donde é possível afirmar que a Adm. Pública não prescinde de interpretar os textos jurídicos (Constituição e leis) e, em virtude do princípio da impessoalidade no tratamento dos administrados, não pode menos ainda prescindir de formalizar sua interpretação e utilizá-la para desempenhar seu mister [23] [24]. Coisa que é pacificamente reconhecida por qualquer um que atue na prática jurídica.

Por isso tudo que se vê, a distinção da cláusula de reserva legal, se absoluta ou relativa, não possui mais nenhuma relevância prática. Sempre é possível que uma lei necessite de uma maior densificação por parte de outros atos infralegais de origem administrativa, o que pressupõe uma interpretação jurídica, a qual, por sua vez, possui um resultado de caráter eminentemente constitutivo. A idéia subjacente à doutrina do Min. Eros Grau possui maiores consequências e um espectro de abrangência mais amplo do que V. Exª imagina.

Isso significa, dessarte, que o teste referente ao respeito à legalidade deve ser feito não em termos meramente formais, conforme fizeram os partidos, mas em termos conteudísticos, i.e., cotejo de conteúdo entre o ato infralegal e a lei que lhe embasa. E foi justamente o que foi feito na argumentação jurídica acima. Foi necessário entender se faz sentido, do ponto de vista de uma política salarial para concretizar o direito fundamental ao salário mínimo, se o decreto do Poder Executivo pode funcionar como um "gatilho" tão logo os indicadores econômicos (INPC e taxa de crescimento do PIB) sejam quantificados e se a participação política do Congresso foi devidamente respeitada na confecção da política (seleção dos critérios). Daí porque a simples existência de um decreto em relação a uma lei não necessariamente quer dizer que o princípio da legalidade foi corrompido, menos ainda a cláusula de reserva legal.

Melhor é, então, diluir a distinção reserva absoluta/relativa e manter apenas a concepção na base do princípio: estruturação e regulamentação de determinadas matérias através, num primeiro momento, via lei, deixando em aberta a possibilidade de que outros veículos normativos, num segundo momento, venham a lhe ajudar na tarefa regulatória e concretizadora.

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6.Conclusões

De tudo que foi exposto, podemos tirar as seguintes conclusões:

a) a distinção entre reserva legal absoluta e reserva legal relativa não mais possui utilidade prática, haja vista a alteração do paradigma interpretativo jurídico e, por consequência, o redimensionamento do próprio princípio da legalidade;

b) para que seja satisfeita a cláusula de reserva legal constante do inciso IV, art. 7º da CF/88, basta que Executivo e Legislativo concordem quanto aos critérios de preservação do valor real do salário mínimo, sendo desnecessário que a lei possua expressamente em seu bojo o valor já devidamente quantificado;

c) é constitucional o art. 3º da Lei 12.382/2011, já que respeita a cláusula de reserva legal, haja vista a devida participação do Congresso Nacional na fixação da política de reajuste do valor do salário mínimo, podendo validamente o decreto do Poder Executivo determinar o valor final.


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Sobre o autor
José Luizilo Frederico Júnior

Procurador do Município de Teresina (Procuradoria Fiscal). Advogado. Ex-analista judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região (MA). Pós-graduando em direito tributário pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEMP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREDERICO JÚNIOR, José Luizilo. Da constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 12.382/2011.: Reajuste do salário mínimo por decreto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2836, 7 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18847. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Título original: "Da constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 12.382/2011".

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