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A responsabilidade civil da indústria tabagista e a teoria do risco concorrente

12/04/2011 às 16:50
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No findar do ano de 2010, o brilhante civilista Flávio Tartuce defendeu sua tese de doutorado na USP, na qual sustenta a aplicação da teoria do risco concorrente nos casos envolvendo demandas de consumidores contra a indústria do tabaco. O eminente professor promove uma rápida explanação sobre o tema no site do INJUR – Instituto Cultural para a Difusão do Conhecimento Jurídico (http://www2.injur.com.br/pg/videos/play/group:5/9325/responsabilidade-civil-pelo-cigarro-prof-flvio-tartuce), adiantando que o assunto, dada sua relevância, merece ser objeto de aprofundado estudo durante os próximos anos.

Diante das interessantes colocações do Doutor Flávio, penso que a questão mereça mesmo ser estudada e esmiuçada à luz dos princípios e regras que orientam o ordenamento jurídico brasileiro.

A questão envolvendo o consumo de tabaco é, de fato, das mais intrincadas no estudo do Direito. A doutrina civilista é dividida, mas a jurisprudência do STJ é majoritária no sentido da não responsabilização da indústria do tabaco pelos danos ocasionados pelos efeitos.do fumo. Só no ano passado, o Tribunal da Cidadania, amparado em precedentes, analisou a questão dos danos provocados pelo fumo em três oportunidades: no REsp 1.009.591-RS, no REsp. 1.113.804, e no REsp 886.347-RS.

Os argumentos despendidos no julgamento do REsp 886.347-RS estão disponíveis no informativo nº 430, abaixo transcritos:


RESPONSABILIDADE. CIGARRO.

Cuidava-se de ação de indenização por dano material e moral decorrente das sequelas causadas pelo uso de cigarro ajuizada em 2004, já sob a égide do CDC. Nesse contexto, de acidente de consumo perfeitamente tipificado no art. 12 daquele código, tal qual entendeu o Min. Luis Felipe Salomão (convocado da Quarta Turma para desempatar a votação), não se mostra razoável conceder ao autor a disponibilidade sobre o diploma legal que deve ser aplicado à sua pretensão. Prevaleceu o entendimento, antes esposado pelo Min. Massami Uyeda, de que deve incidir, no caso, a prescrição quinquenal do art. 27 do CDC, que não é afastada pelo disposto no art. 7º desse mesmo codex. Apesar de esse artigo prever a abertura do microssistema para outras normas que possam dispor sobre a defesa de consumidores, ainda que insertas em diplomas que não cuidam especificamente da proteção do consumidor, a prescrição vintenária do art. 177 do CC/1916, que se pretendia fazer incidir, caracteriza-se pela generalidade e vai de encontro ao regido especificamente na legislação consumerista. Anotou-se que o disposto no art. 2º, § 2º, da LICC também determina a aplicação do art. 27 do CDC ao caso. Isso posto, mediante a reconsideração dos votos vencidos, com a ressalva da Min. Nancy Andrighi quanto a seu entendimento, a Turma, por unanimidade, acolheu esse entendimento, recentemente consolidado pela Segunda Seção, e extinguiu o feito com a resolução do mérito; pois, afirmado pelo autor que ele tomou conhecimento do dano em meados de 1997, o ajuizamento da ação estaria restrito até 2002 por força da aplicação da prescrição quinquenal. Precedentes citados: REsp 489.895-SP; REsp 304.724-RJ, DJ 22/8/2005; REsp 1.036.230-SP, DJe 12/8/2009, e REsp 810.353-ES, DJe 11/5/2009. REsp 1.009.591-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/4/2010.

Por conseguinte, confira-se os argumentos articulados no REsp. 1.113.804, ao analisar uma ação ajuizada pelos sucessores de um ex fumante que morreu em decorrência de câncer de pulmão provocado pelo uso do cigarro. O STJ levou em consideração diversos fatores para afastar a responsabilidade da indústria tabagista, sendo que o julgado encontra-se no informativo nº 432 do STJ, cuja suma se transcreve:


RESPONSABILIDADE CIVIL. CIGARRO.

O falecido, tabagista desde a adolescência (meados de 1950), foi diagnosticado como portador de doença broncopulmonar obstrutiva crônica e de enfisema pulmonar em 1998. Após anos de tratamento, faleceu em decorrência de adenocarcinoma pulmonar no ano de 2001. Então, seus familiares (a esposa, filhos e netos) ajuizaram ação de reparação dos danos morais contra o fabricante de cigarros, com lastro na suposta informação inadequada prestada por ele durante décadas, que omitia os males possivelmente decorrentes do fumo, e no incentivo a seu consumo mediante a prática de propaganda tida por enganosa, além de enxergar a existência de nexo de causalidade entre a morte decorrente do câncer e os vícios do produto, que alegam ser de conhecimento do fabricante desde muitas décadas. Nesse contexto, há que se esclarecer que a pretensão de ressarcimento dos autores da ação em razão dos danos morais, diferentemente da pretensão do próprio fumante, surgiu com a morte dele, momento a partir do qual eles tinham ação exercitável a ajuizar (actio nata) com o objetivo de compensar o dano que lhes é próprio, daí não se poder falar em prescrição, porque foi respeitado o prazo prescricional de cinco anos do art. 27 do CDC. Note-se que o cigarro classifica-se como produto de periculosidade inerente (art. 9º do CDC) de ser, tal como o álcool, fator de risco de diversas enfermidades. Não se revela como produto defeituoso (art. 12, § 1º, do mesmo código) ou de alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança, esse último de comercialização proibida (art. 10 do mesmo diploma). O art. 220, § 4º, da CF/1988 chancela a comercialização do cigarro, apenas lhe restringe a propaganda, ciente o legislador constituinte dos riscos de seu consumo. Já o CDC considera defeito a falha que se desvia da normalidade, capaz de gerar frustração no consumidor, que passa a não experimentar a segurança que se espera do produto ou serviço. Dessarte, diz respeito a algo que escapa do razoável, que discrepa do padrão do produto ou de congêneres, e não à capacidade inerente a todas as unidades produzidas de o produto gerar danos, tal como no caso do cigarro. Frise-se que, antes da CF/1988 (gênese das limitações impostas ao tabaco) e das legislações restritivas do consumo e publicidade que a seguiram (notadamente, o CDC e a Lei n. 9.294/1996), não existia o dever jurídico de informação que determinasse à indústria do fumo conduta diversa daquela que, por décadas, praticou. Não há como aceitar a tese da existência de anterior dever de informação, mesmo a partir de um ângulo principiológico, visto que a boa-fé (inerente à criação desse dever acessório) não possui conteúdo per se, mas, necessariamente, insere-se em um conteúdo contextual, afeito à carga histórico-social. Ao se considerarem os fatores legais, históricos e culturais vigentes nas décadas de cinquenta a oitenta do século anterior, não há como cogitar o princípio da boa-fé de forma fluida, sem conteúdo substancial e contrário aos usos e costumes por séculos preexistentes, para concluir que era exigível, àquela época, o dever jurídico de informação. De fato, não havia norma advinda de lei, princípio geral de direito ou costume que impusesse tal comportamento. Esses fundamentos, por si sós, seriam suficientes para negar a indenização pleiteada, mas se soma a eles o fato de que, ao considerar a teoria do dano direto e imediato acolhida no direito civil brasileiro (art. 403 do CC/2002 e art. 1.060 do CC/1916), constata-se que ainda não está comprovada pela Medicina a causalidade necessária, direta e exclusiva entre o tabaco e câncer, pois ela se limita a afirmar a existência de fator de risco entre eles, tal como outros fatores, como a alimentação, o álcool e o modo de vida sedentário ou estressante. Se fosse possível, na hipótese, determinar o quanto foi relevante o cigarro para o falecimento (a proporção causal existente entre eles), poder-se-ia cogitar o nexo causal juridicamente satisfatório. Apesar de reconhecidamente robustas, somente as estatísticas não podem dar lastro à responsabilidade civil em casos concretos de morte supostamente associada ao tabagismo, sem que se investigue, episodicamente, o preenchimento dos requisitos legais. Precedentes citados do STF: RE 130.764-PR, DJ 19/5/1995; do STJ: REsp 489.895-SP, DJe 23/4/2010; REsp 967.623-RJ, DJe 29/6/2009; REsp 1.112.796-PR, DJ 5/12/2007, e REsp 719.738-RS, DJe 22/9/2008. REsp 1.113.804-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 27/4/2010.

Finalmente, no REsp 886.347-RS, julgado em 25/05/2010, foi afastada a responsabilidade da empresa demandada por ausência de nexo de causalidade entre sua conduta e o dano experimentado pelo autor da ação – portador de tromboangeíte obliterante – TAO ou doença de Buerger, um mal causado quase exclusivamente pelo fumo. Além de considerar ausente o nexo causal, foi levado em conta que o fumante já conhecia os riscos causados pelo consumo de cigarros, uma vez que começou a fumar em 1988, ou seja, no ano em que as advertências sobre os males causados pelo fumo começaram a ser estampadas explicitamente nos maços de cigarros, tendo o consumidor se valido de seu livre-arbítrio. Confira-se a síntese do acórdão, contida no informativo nº 436 do STJ:


DANO MORAL. FUMANTE.

Mostra-se incontroverso, nos autos, que o recorrido, autor da ação de indenização ajuizada contra a fabricante de cigarros, começou a fumar no mesmo ano em que as advertências sobre os malefícios provocados pelo fumo passaram a ser estampadas, de forma explícita, nos maços de cigarro (1988). Isso, por si só, é suficiente para afastar suas alegações acerca do desconhecimento dos males atribuídos ao fumo; pois, mesmo diante dessas advertências, optou, ao valer-se de seu livre-arbítrio, por adquirir, espontaneamente, o hábito de fumar. Outrossim, nos autos, há laudo pericial conclusivo de que não se pode, no caso, comprovar a relação entre o tabagismo desenvolvido pelo recorrido e o surgimento de sua enfermidade (tromboangeíte obliterante – TAO ou doença de Buerger). Assim, não há falar em direito à indenização por danos morais, pois ausente o nexo de causalidade da obrigação de indenizar. Precedentes citados: REsp 325.622-RJ, DJe 10/11/2008; REsp 719.738-RS, DJe 22/9/2008, e REsp 737.797-RJ, DJ 28/8/2006. REsp 886.347-RS, Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador convocado do TJ-AP), julgado em 25/5/2010 (ver Informativo n. 432).

Destarte, afora a questão da prescrição quinquenal, tratada no REsp 886.347-RS, ao examinar o mérito de duas outras demandas envolvendo a responsabilidade civil da indústria tabagista a jurisprudência do STJ ancora-se, principalmente, nos seguintes argumentos:

1.O cigarro é um produto de periculosidade inerente;

2.A indústria tabagista não deve ser responsabilizada, uma vez que milhares de fumantes adquiriram o hábito de fumar numa época em que os fabricantes não conheciam os efeitos deletérios do tabaco para a saúde humana.

3.A comercialização do cigarro é lícita, somente sendo restringida a propaganda;

4.Não há ofensa à boa-fé objetiva, na medida em que há que se considerar o contexto legal, histórico e cultural vigentes até antes de se conhecer os riscos do consumo de tabaco;

5.A Medicina não comprovou a causalidade necessária, direta e exclusiva entre o consumo de tabaco e o câncer, pois o estilo de vida do fumante deve ser analisado globalmente, uma vez que fatores como stress, sedentarismo, má alimentação, consumo de álcool etc. também contribuem para o desenvolvimento da doença;

6.Há que se considerar o livre arbítrio do indivíduo, que, dentre as opções de não fumar e fumar, escolheu a última, havendo, portanto, sua culpa exclusiva.

Até o momento, essa é a posição do STJ em relação à matéria, ou seja, os fabricantes de cigarros não devem ser responsabilizados pelos danos advindos do consumo das substâncias presentes no tabaco, na medida em que não se lhe pode atribuir culpa exclusiva.

Em sentido contrário, no ano de 2008 o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo examinou a questão na Ap. Cível nº 379.261.4/5-00, oportunidade em que condenou, por maioria, a indústria tabagista pelos danos causados ao consumidor, com destaque para o voto do eminente Des. Caetano Lagrasta. Do julgado pode-se extrair, destacadamente, os seguintes argumentos:

1.O cigarro é um problema de saúde pública, inclusive devendo-se responsabilizar o Estado pelos danos causados pelo fumo, haja vista o dano social que se verifica através do hábito de fumar;

2.A imposição social do fumo no passado;

3.A doença da autora da ação (Doença de Buerger) foi causada pelo consumo de cigarros;

4.No passado, a publicidade do cigarro era enganosa, em razão da omissão intensional de informações relevantes por parte da indústria tabagista, em relação aos males causados pelo cigarro;

5.A licitude da comercialização de cigarros somente está presente em parte da atividade da empresa, mas não no momento em que aquela coloca nos produtos substâncias sabidamente nocivas à saúde;

6.Em relação ao livre arbítrio, sustenta que este não pode conduzir à existência de um dogma ou a uma estranha e impossível religião do vício, ou seja, não se pode transferir ao consumidor todo o peso do consumo de cigarros.

Explicitadas a tese e a antítese, passo agora à síntese, amparado nos argumentos que compõem a tese defendida pelo professor Flávio Tartuce em seu doutorado.

Consoante o trabalho apresentado à banca examinadora, o autor em referência propõe um meio termo entre a total ausência de responsabilidade por parte daquelas empresas e sua responsabilidade integral pelos danos causados pelo cigarro, sendo que a argumentação se desenvolve a partir da chamada concausalidade, entendida como a concorrência de causas que redundam na ocorrência do evento danoso experimentado pelo ofendido.

Em sede normativa, a concausalidade pode ser extraída da leitura dos arts. 944 e 945 do Código Civil, que assim dispõem:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

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Se por um lado não é justo que as empresas fabricantes de cigarros suportem sozinhas a responsabilidade pelos danos causados pelo consumo do tabaco, muito menos justo seria permitir que a indústria tabagista continue seu comércio sem que seja responsabilizada pela propagação de um produto sabidamente nocivo à saúde humana. Da mesma forma, não é justo nem que o consumidor suporte sozinho aqueles danos, e nem que fique totalmente isento de responsabilidade pelos seus atos. É preciso, como foi dito, analisar a realidade fática que cerca os sujeitos envolvidos, de forma a verificar a parcela de culpa de cada um para a materialização do dano.

Consoante a doutrina de Jorge Mosset Iturraspe, citado por Tartuce no vídeo referido no início deste artigo, há que se verificar qual foi a contribuição causal dos sujeitos envolvidos na cadeia de eventos que culminaram no dano experimentado pelo ofendido, pois, segundo o jurista argentino, na responsabilidade civil, raríssimas são as situações em que uma parte é totalmente culpada e a outra é totalmente inocente.

Com vistas nas dificuldades enfrentadas pelos estudiosos do tema, sugere-se como solução para essa celeuma a realização de exame pericial consistente na consecução de cálculos estatísticos, a serem solicitados pelo juiz da causa, sendo que entende-se como justa a proporção de 20% de culpa por parte do consumidor, e os 80% restantes por parte da empresa tabagista.

Mas por que a indústria tabagista deve ser mais responsável pelos danos em discussão? Ora, por serem conhecedoras de todas as informações sobre os malefícios que envolvem o consumo do tabaco, as empresas fabricantes de cigarros agem refletidamente, conscientes, e exclusivamente baseadas no custo-benefício que cerca sua mercância. Aliás, auferindo muito mais benefícios do que custos ao longo de todos os anos durante os quais omitiu, dolosamente, informações relevantes, conhecidas antes do Poder Público em relação à capacidade destruidora das substâncias componentes do cigarro, iniciando e mantendo as pessoas nesse vício nefasto.

Analogicamente, a atividade da empresa tabagista se aproxima da idéia de dolo eventual, estudado no Direito Penal. Essas empresas, mesmo sabendo que seus produtos são potencialmente letais, assumem o risco, in casu um risco proveito, porquanto auferem lucro com sua atividade, preferindo continuar comercializando derivados do tabaco, pois, mesmo que milhares de pessoas sofram danos em razão do consumo de cigarros, e até possam morrer por isso, sua finalidade (lucro) estará satisfeita.

De sua sorte, valendo-se da mesma analogia, o consumidor estaria incorrendo em culpa consciente, na medida em que, embora tenha plena consciência de que o consumo de cigarros pode matar, acredita seriamente que tal resultado não advirá. Certamente, a conduta da empresa é muito mais grave.

Nos parece que a proposta em estudo, dentre todas até então apresentadas pela doutrina e pela jurisprudência, é a mais justa e correta, pois não se pode desprezar que o consumidor, sem dúvida, é quem, em última instância, determina seu comportamento, sendo essa a consequência natural do determinismo inerente ao ser humano.

Mas será que o comportamento do consumidor é refletido, consciente, livre de influências externas?

O consumo é atividade que deve ser refletida, isto é, deve ser desempenhada conscientemente, de maneira livre e espontânea pelo consumidor. Tomando por base essa premissa, não encontramos dificuldades em concluir que o consumidor, em maior ou menor grau, acaba sendo influenciado pela publicidade cotidiana, a qual, se hodiernamente não é explícita, é praticada de forma velada. Se é certo que hoje temos a restrição da propaganda do cigarro, não é por isso que a indústria tabagista deixará de anunciar o cigarro de forma sutil, através do cinema e da TV, por exemplo. A título ilustrativo, quantos de nós não assiste, quase diariamente, a notícias sobre atletas, principalmente do futebol, que são consumidores de cigarros?

Ora, será que a imprensa, ao divulgar esse tipo de informação, seja por qual mídia for, não é capaz de despertar no indivíduo a falsa idéia de que fumar não causa tantos males? Afinal de contas, um atleta profissional, externamente em forma, gera a presunção de que goza de boa saúde, na medida em que um corpo saudável é indispensável para um bom desempenho no esporte.

Sendo assim, a idéia de que o hábito de fumar se relaciona ao livre arbítrio não merece prevalecer, já que somente será legítimo se advier de atividade refletida por parte do consumidor.

O argumento no sentido de que a industrialização e comércio de tabaco são atividades lícitas, autorizadas e regulamentadas pelo Poder Público também não deve prosperar, a teor do que dispõe o art. 187 do Código Civil, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé e pelos bons costumes.

Fim econômico, fim social, boa-fé e bons costumes são conceitos jurídicos indeterminados, isto é, que na análise de um caso concreto dependem de valoração por parte do julgador, a fim de conferir concretude à norma jurídica. Desses quatro elementos, penso que a análise de somente dois deles (fim social e bons costumes) já é suficiente para rechaçar o argumento da comercialização de cigarros como atividade lícita.

Quanto ao fim social, indagamos: Qual é o fim social do cigarro? Esse tipo de produto possui um fim social? É salutar à sociedade? Em que medida? Há quem diga que um cigarrinho acalma, relaxa etc. Com a devida licença dos que entendem o contrário, não consigo visualizar qualquer outro fim social do cigarro que não seja somente a geração de empregos na respectiva indústria. Hodiernamente, fumar é considerado um hábito antissocial.

No tocante aos bons costumes, sem nos estender, estes geralmente são relacionados à idéia de moralidade, isto é, na idéia de atitudes reiteradas e de conteúdo ético que, de um modo geral, facilitam ou tornam agradável a vida em sociedade. No passado, a doutrina aproximava o conceito de bons costumes ao de boa-fé, exatamente em razão da carga ética comum a ambos os institutos. Todavia, consoante lição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva [01], "o que importa contrastar é que os bons costumes referem-se a valores morais indispensáveis ao convívio social, enquanto a boa-fé tem atinência com a conduta concreta dos figurantes na relação jurídica" (COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. São Paulo, 1976, p. 31).

Sendo assim, indagamos: o hábito de fumar é um bom costume? Traz benefícios? É um comportamento desejado? Obviamente, a resposta é negativa, o que é corroborado pelas leis antifumo que vem restringindo o uso do tabaco nos mais diversos locais, em todo o território nacional, sempre em nome da saúde pública referida pelo Desembargador Caetano Lagrasta no julgado mencionado linhas atrás.

Quando contrariados aqueles conceitos presentes no art. 187 do Código Civil, dá-se o nascimento do abuso de direito, o que, nos dizeres de Flávio Tartuce, ocorre "quando a pessoa exceda um direito que possui, atuando em exercício irregular de direito" [02]. Ou seja, em sua conduta inicial, a atividade é lícita, porém, torna-se ilícita em momento posterior, o que, no caso do cigarro, materializa-se no momento em que o fabricante insere no produto substâncias sabidamente tóxicas e potencialmente letais.

Assim, s.m.j., se a indústria tabagista sabe que sua atividade é perniciosa à sociedade, está incorrendo em abuso de direito, pois contraria o fim social e os bons costumes, e daí decorre sua responsabilidade objetiva de reparar os danos sofridos por seus "clientes".

Um breve parêntese: provavelmente alguns leitores irão rechaçar as idéias contidas neste texto, argumentando que, paralelamente ao cigarro, o mercado de consumo possui diversos outros gêneros cujo consumo também provoca danos à saúde humana, tais como as fast-foods, os refrigerantes, o açúcar, o sal, a gordura animal presente nas carnes e derivados do leite, os agrotóxicos presentes nos vegetais etc. Além disso, poderão argumentar que a poluição presente no ar, nas águas e outros infindáveis fatores são capazes de causar danos à saúde, inclusive o câncer.

Para esses leitores, esclareça-se que, certamente, o consumo exagerado daqueles produtos e substâncias é sim capaz de causar danos das mais diversas ordens ao organismo, inclusive desencadear algum tipo de câncer. No entanto, o consumo moderado, dentro dos padrões recomendados pela Medicina, é essencial à sobrevivência humana. O açúcar, a gordura, o sal, os oleaginosos etc., todos tem importância para o correto funcionamento do corpo humano. Em excesso, causam danos; em carência, igualmente. Assim, consumidos em níveis seguros, salvo em casos específicos envolvendo pessoas que já são portadoras de algum mal ou sensíveis a alguma substância, os gêneros animais, vegetais e minerais nos auxiliam.

Mas, e o cigarro? Qual substância presente no cigarro é indispensável à manutenção da vida humana? Ora, sabidamente, nenhuma! Aliás, a informação constante nos maços de cigarro é: "não existem níveis seguros para consumo dessas substâncias".

Nessa era da chamada principialização do Direito, os estudiosos devem voltar os olhos para a Constituição Federal – norma jurídica repleta de princípios que visam orientar o desenvolvimento social em todos os seus níveis e de forma plena, sendo que não é por acaso que o direito à vida se encontra em posição topográfica no texto constitucional. É um direito que não deve ser encarado como mera declaração, mas sim como objeto primordial das ações governamentais e da própria sociedade, com vistas à promoção do pleno desenvolvimento do indivíduo, já que, nos dizeres de Miguel Reale, "o homem é o valor fonte de todos os valores".

Com essas breves considerações, manifesto meu total apoio aos estudiosos que, arduamente, vem se debruçando sobre esse grave problema de saúde pública, torcendo para que aqueles acometidos pelo vício do fumo possam dele se livrar, mas, acima de tudo, para que às próximas gerações seja oportunizado o exercício de uma liberdade legítima, livre da má influência do marketing subliminar e das perniciosidades mercadológicas que acometem o consumo.


Notas

  1. Jornal Carta Forense, segunda-feira, 3 de agosto de 2009. Acesso em: 06/04/2011.
  2. In Manual de Direito Civil: volume único / Flávio Tartuce – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2011.
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Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. A responsabilidade civil da indústria tabagista e a teoria do risco concorrente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2841, 12 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18888. Acesso em: 27 dez. 2024.

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