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Quem decide o futuro das favelas?

Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ

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PAC nas favelas: quem decide o futuro das comunidades?

Como proposta de mudança e transformação de áreas como a do Complexo do Alemão, desde o início de 2007, o Governo Federal tem implantado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em todo Brasil. No Complexo, essa intervenção vem acontecendo, em parceria com o Governo do Estado, desde 2008. Aliado às ações que buscam a reestruturação física das favelas (construção de conjuntos habitacionais, transporte público, saneamento básico, escolas, postos de saúde, centros poliesportivos etc.), o governo federal – por meio do Ministério das Cidades - propôs como metodologia de trabalho, ações que priorizam o "lado social" das intervenções urbanísticas através do Trabalho Técnico Social (TTS).

Nas comunidades do Complexo, todo o TTS está sob responsabilidade da Agência 21, empresa terceirizada pelo Consórcio Rio Melhor, grupo de empreiteiras responsáveis pela execução das obras. Essa empresa apresenta-se como o "braço social e humanizado" do PAC tendo como princípio orientador três eixos básicos de atuação para intervenção técnico-social: apoio à mobilização e organização comunitária/condominial, capacitação profissional/geração de trabalho e renda, e educação sanitária/ambiental/patrimonial. Cabe ressaltar que todo o trabalho está fundamentado pelo Caderno de Orientação Técnico Social (COTS), elaborado pela Caixa Econômica Federal, entidade que disponibiliza os recursos para execução do PAC, e está sob acompanhamento e fiscalização de técnicos da equipe do trabalho social da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos.

Dessa forma, o Trabalho Técnico Social visa potencializar a capacidade de mobilização dos moradores, "capacitá-los" para a vida em condomínios, bem como estabelecer diálogos permanentes com organizações que já atuam nas 9 comunidades contempladas pelo PAC do estado. O objetivo maior desse trabalho social, segundo seus formuladores, é criar condições para que os moradores atuem de forma emancipada, junto com as ONGs, o governo e a iniciativa privada, numa gestão compartilhada que busque atender as demandas locais, sempre levando em consideração as potencialidades – como de trabalho e renda - já existentes na comunidade.

A proposta de gestão compartilhada se apresenta como uma alternativa fundamental para que sujeitos historicamente subalternizados tenham a possibilidade de atuar sobre suas próprias necessidades. Contudo, alguns problemas são centrais para efetivação da proposta: 1) o baixo nível de participação popular; 2) o grau de relevância que espaços como fóruns populares, conselhos gestores ou grupos de trabalho comunitários possuem diante das representações governamentais; 3) a forma como os moradores são vistos pelos gestores públicos e atores da iniciativa privada; 4) o processo de mercantilização das relações entre lideranças comunitárias, governo e moradores.

Segundo Bourdieu(1989), no caso do primeiro problema, esse fato pode ser explicado pela forma como alguns grupos e/ou sujeitos são reconhecidos diante de seus pares. Sujeitos que possuem maior poder e legitimidade para determinar quais crenças devem ser compartilhadas, quais modelos devem ser reproduzidos, como também quais propostas políticas devem ser acatadas pela maioria, contribuem para a descrença de sujeitos com menores possibilidades de atuação. As decisões ficam restritas a atores que atuam nas instâncias mais altas de representação, tanto do Estado, quanto da iniciativa privada. Assim, a suposta falta de participação da população nas decisões não necessariamente significa desinteresse, mas uma apatia do público subalternizado, uma vez que tal público compreende que somente alguns sujeitos e/ou grupos possuem a palavra final e o poder de decisão.

Dessa forma, entrando no segundo problema, ainda com base na teoria bourdiesiana, a própria legitimação dos espaços criados para a construção de consensos fica comprometida. Entendendo o próprio conceito de esfera pública como espaço que possibilita a construção de redes de categorias, pensamentos e significados intersubjetivos, o meio de se criar mecanismos de auto-reconhecimento, levando em consideração a realidade vivida pelos agentes, tendo nela o "espaço insubstituível de constituição democrática da opinião e da vontade coletivas, a mediação necessária entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema político, de outro" (Avritzer, 2004:708), tendo em vista as assimetrias das relações que marcam e determinam quem possui a palavra final, qualquer idéia de esfera pública plural, democrática e participativa apresenta-se, de saída, comprometida.

As hierarquias e as relações de poder determinam onde e quais as propostas serão formuladas e executadas. São os sujeitos políticos de instâncias superiores de representação – tanto do Estado quanto da iniciativa privada, e até mesmo da própria sociedade civil organizada –, em salas fechadas, com acesso restrito, que colocarão suas prioridades, formas de atuação, atribuições e urgências no processo. Dessa forma, as decisões mais importantes não passam pelos conselhos ou fóruns de debate. Foram pré-determinadas e chegam muitas vezes para ser referendadas.

Para entrarmos no terceiro problema, tentando complementar as duas primeiras questões, pergunto: por que somente alguns sujeitos participam e decidem de fato como as políticas deverão ser empreendidas? Por que aqueles que serão atingidos pelas políticas, não são vistos pelos gestores públicos como sujeitos capazes de contribuir, e até mesmo (re)construir e (re)significar suas próprias realidades?

De acordo com Jessé Souza (2003), vigora em nossa sociedade certa perversidade social provocada pelos efeitos "da ideologia espontânea" fundamentada pela modernidade capitalista, sobre tudo em razão de tornarem opacos os critérios da hierarquia valorativa – consequentemente de reconhecimento – de quem é ou não capaz de exercer sua cidadania. Para Souza, há um pano de fundo moral nas sociedades modernas que mantém "cada um no seu lugar". Consequentemente, constroem-se entendimentos carregados de conteúdo valorativo depreciativo, aprofundando preconceitos e discriminações sociais.

Para Souza, a fonte dessa interpretação negativa de grande parte da população – em especial sujeitos moradores de periferias ou favelas – fazendo com que desempenhem papéis secundários e passivos com relação a formulação e implementação das políticas públicas -, está no próprio entendimento sobre o que é o sujeito moderno. Segundo Taylor (1989), esse sujeito moderno se constitui pautado numa "topografia moral", resultado do "processo de expansão do racionalismo ocidental do centro para periferia". Para que esse sujeito seja visto (e reconhecido) como apto a tomar decisões, opinar e deliberar, precisa estar imbuído de um conjunto de atributos que constituem o que poderia se definir como self moderno.

Tal self moderno está pautado em exigências comportamentais e visões sobre o papel do ser humano no mundo. Constitui-se a partir de alguns pressupostos como: o princípio da interioridadevalorização da nossa capacidade de racionalizar a busca pelo conhecimento; a hierarquia valorativa - os que existem (os viventes) e os inteligentes. Os últimos se sentem capazes de julgar os primeiros; a visão cartesiana do sujeito moderno– ação metódica e disciplinadora. Instrumentalização da vida e da vontade; e o poder de suspender e dirigir desejos e sentimentos – treinamento do self pontual [05](Autocontrole, auto-responsabilidade, raciocínio prospectivo).

Contudo, o que torna evidente a desigualdade de oportunidades de participação é justamente quando se "desmascara",o que Souza chama de"ideologia espontânea e da igualdade de oportunidades", pedra angular do processo de dominação simbólica entre os sujeitos. Essa ideologia, segundo o autor, estabelece-se de forma opaca, invisível, fazendo com que naturalizemos as desigualdades de oportunidade, pois tal "ideologia espontânea" está fundamentada sob dois pilares: valores meritocráticos e o juízo sobre o gosto e a "boa estética". Com relação ao primeiro, a esfera meritocrática estaria no âmbito dos pressupostos fundamentais para constituição plena de uma cidadania jurídica e social, ligada à noção de Reinhardt Kreckel (apud. Souza, 2003) sobre a "ideologia do desempenho". Para este autor esta "ideologia" se baseia na "tríade meritocrática" formada pelos seguintes quesitos: qualificação, posição e salário. Somente a partir do atendimento destes requisitos o indivíduo se torna um "cidadão completo", do contrário, se constitui como "subcidadão".

Consequentemente, partindo do pressuposto que aqueles que possuem melhor qualificação, posicionamento e renda, terão mais possibilidades de colocar quais crenças e gostos devem ser valorizados e compartilhados pela maioria (Bourdieu, 1989), a forma como os sujeitos se apresentarão nos espaços de debates e discussões – em sua forma estética e comunicativa - também influenciará a maneira como esses sujeitos serão lidos, interpretados e reconhecidos perante o grupo, principalmente, pelos que detêm maior capital político, econômico e social.

Desse modo, considerando as relações assimétricas de poder que marcam, historicamente, os processos de constituição das esferas públicas contemporâneas, é necessária a problematização da própria dinâmica de participação que se constitui no PAC do Complexo do Alemão. É importante chamar a atenção para o grau de reconhecimento que cada sujeito ou grupo tem nos espaços disponíveis para o livre agir político (Arendt, 2003). As relações entre os sujeitos na arena implicam na definição de quem serão os atores ouvidos e quais os temas que, efetivamente, serão tratados como públicos (Fraser, 2007). O tipo da ação ou política empreendida acaba por ser o resultado da legitimidade que determinado grupo e/ou sujeito tem diante dos outros atores envolvidos no processo.

Um caso que demonstra bem a questão debatida é a visão dos moradores do Complexo sobre a implantação do teleférico nas comunidades. Grande parte dos moradores das comunidades que possuirão as estações, que conversei em trabalho de campo, demonstrou descontentamento com a obra, considerando-a pouca útil para reais necessidades de transporte público. Muitos alegaram que não foram consultados em momento algum sobre a implantação do serviço, e ainda tiveram que sair das suas casas por conta das obras [06]. Nesse sentido, é interessante pensar que toda a política de habitação empreendida na região – levando em consideração o grande déficit habitacional que o município possui [07] -, foi conseqüência exclusiva dos avanços das obras do teleférico [08]. Todas as pessoas que tiveram que desocupar suas casas, sendo obrigadas a optarem por uma forma de compensação material, saíram ou porque tiveram suas casas impactadas, ou porque estavam na impedindo o avanço das retroescavadeiras.

Dessa forma, fica evidente que somente alguns atores terão o privilégio de decidir que rumo o processo de desenvolvimento tomará nas comunidades do Complexo do Alemão. A proposta de gestão compartilhada ganhará maior efetividade somente em questões "menores", naquelas que servem para o exercício do convívio coletivo. Até o presente momento, dos eixos apresentados para o desenvolvimento do Trabalho Técnico Social, somente as mobilizações e organização comunitária/condominial merecem destaque. Moradores que passaram a ocupar as unidades habitacionais construídas pelo governo – são duas: Itaóca 1174 e 1833 – em um primeiro momento participam de oficinas de integração, para que "entendam" como deve se viver em conjuntos habitacionais. Em um outro momento, já morando nos apartamentos, após a formação de comissões gestoras condominiais, moradores que ocupam cargos de síndicos realizam reuniões periódicas, junto com técnicos do trabalho social da empresa terceirizada, expondo seus problemas e dificuldades. Contudo, reclamam permanentemente da ausência de retorno das instâncias governamentais e do Consórcio sobre os problemas apresentados.

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Para os eixos capacitação profissional/geração de trabalho e renda, e educação sanitária/ambiental/patrimonial, foram realizados 9 encontros chamados "Fóruns populares" em que estiveram presentes representantes da sociedade civil (ONGs, microempresários locais e lideranças comunitárias), representantes do governo estadual e técnicos da Agência 21. Desse encontro saiu o "Relatório do Plano de Desenvolvimento Sustentável", que teria como função relacionar todas as proposições colocadas, debatidas e encaminhadas no fórum pelos participantes. Contudo, o resultado final se limitou a uma apresentação do histórico do Complexo do Alemão e um conjunto de intenções para as comunidades. Nenhuma proposta efetiva foi apresentada.


Máquinas políticas e a permanência das relações clientelistas no Complexo do Alemão

A quarta questão que debilita o processo de fortalecimento das organizações populares, bem como sua atuação emancipada diante do Estado e das empresas contratadas, se apresenta de maneira permanente nas relações entre os sujeitos na dinâmica política local: o atendimento assistencialista e clientelista das demandas das comunidades.

Hoje no Complexo do Alemão, existem doze (12) associações de moradores, com seus respectivos presidentes eleitos. Até o momento, tive a oportunidade de acompanhar em pesquisa de campo dois (2) desses presidentes. Analisando o comportamento e as relações que estes mantêm com representantes governamentais, ora orientam suas ações numa perspectiva mais individualista – buscando visibilidade e recompensas (materiais e simbólicas) do governo -, ora como representantes dos interesses da comunidade. De um modo geral, tentam conciliar interesses individuais e coletivos, pois, precisam se mostrar competentes na obtenção de recursos e projetos para comunidade – o que traz maior visibilidade e respeito diante dos moradores -, assim como precisam fortalecer as bases eleitorais dos representantes governamentais do momento.

Vale ressaltar que no caso dos dois presidentes acompanhados por mim, um pertence ao quadro de filiados do PMDB do Rio de Janeiro. Seu papel de articulador político torna-se fundamental para o fortalecimento da legenda em uma das comunidades do Complexo, consequentemente, as relações de troca se apresentam bem mais "intensas". O outro ainda busca legitimidade perante os moradores e os representantes governamentais. Tem tentado estabelecer alianças, pois está a pouco tempo na presidência da associação e não possui qualquer vínculo político-partidário. Seu esforço por obtenção de recursos e projetos torna seu trabalho mais "árduo" e com poucas possibilidades de negociação.

Todo esse movimento das associações de moradores acontece em consonância com o trabalho dos "agentes de acesso governamental". Esses "agentes" são figuras políticas que atuam na região como "ponte" entre os interesses do governo, das associações e da comunidade. São pessoas que atuam de maneira informal e estratégica, que conhecem bem a realidade da região e que "falam a língua" dos moradores. Dessa forma, buscam viabilizar junto às instâncias do estado, sempre por meio das relações pessoais alguns projetos, obras, empregos, apartamentos nos conjuntos habitacionais do PAC, vaga nas escolas e nos hospitais, e tudo que possa fortalecer a imagem do governo nas comunidades.

Tanto presidentes de associação, quanto os "agentes", estão dentro do que Kuschnir (1993) define como "acessos": conhecimento que abre os caminhos para o atendimento dos pleitos. "Ter acesso é o que diferencia os parlamentares (no nosso caso, "agentes de acesso governamental") das demais pessoas" (KUSHINIR, 1993). Os acessos são fundamentais para que a política clientelista traga resultados satisfatórios para ambos os lados e estabeleça um grau de importância ao agente político perante a sua comunidade ou base eleitoral. Esses acessos não podem ser comprados, pois os mesmos não têm preço [09].

Conversando com um dos "agentes", o mesmo deixa claro que "poder econômico e poder político são de natureza distinta". Os acessos precisam ser conquistados através de alianças que envolvem o trabalho na comunidade. Caso os governantes do momento sejam eleitos (ou reeleitos), o maior benefício obtido pelo político e seus representantes, não é o dinheiro, mas sua posição de intermediário ou "facilitador" [10].

Cabe ressaltar que esse tipo de política não é privilégio dos presidentes de associação e governo. Muitas organizações não-governamentais também compartilham da mesma filosofia de prática política, alegando dificuldades para obtenção de recursos financeiros e a urgência no atendimento de demandas essenciais da população mais vulnerável.

Para NUNES (1999), este comportamento se desenvolve devido a relação patron-cliente [11] estabelecida tanto em sociedades rurais ligadas ao mercado, quanto em centros urbanos capitalistas. O patron é aquele que possui contatos com o mundo exterior e tem comando sobre os recursos políticos externos. Possibilitam a realização de demandas a partir dos recursos que obtém, dos quais dependem os clientes. Logo, dentro desses universos "o mundo econômico e o social se confundem" constituindo assim um "sistema de valores que se sustenta em critérios pessoais e não-universalistas". O clientelismo acaba se configurando como "um sistema caracterizado por situações paradoxais":

(...) primeiro, uma combinação peculiar de desigualdade e assimetria de poder com uma aparente solidariedade mútua, em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigações interpessoais; segundo, uma combinação de exploração e coerção potencial com relações voluntárias e obrigações mútuas imperiosas; terceiro, uma combinação de ênfase nestas obrigações e solidariedade com o aspecto ligeiramente ilegal ou semilegal destas relações (...) O ponto crítico das relações patron-cliente é, de fato, a organização ou regulação da troca ou fluxo de recursos entre atores sociais" (NUNES, 1997: 28)

Assim, "estas redes envolvem uma pirâmide de relações que atravessam a sociedade de alto a baixo. As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até as localidades" (NUNES, 1999), comprometendo qualquer tipo de proposta de organização popular autônoma e emancipada. Consequentemente, uma esfera pública pautada na equidade e nos valores democráticos de participação.

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Sobre o autor
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Cientista Social (especialização em sociologia política); mestrando em Políticas Sociais - Escola de Serviço Social - Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho Souza. Quem decide o futuro das favelas?: Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2844, 15 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18922. Acesso em: 25 abr. 2024.

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