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Quem decide o futuro das favelas?

Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ

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Máquinas políticas e a permanência das relações clientelistas no Complexo do Alemão

A quarta questão que debilita o processo de fortalecimento das organizações populares, bem como sua atuação emancipada diante do Estado e das empresas contratadas, se apresenta de maneira permanente nas relações entre os sujeitos na dinâmica política local: o atendimento assistencialista e clientelista das demandas das comunidades.

Hoje no Complexo do Alemão, existem doze (12) associações de moradores, com seus respectivos presidentes eleitos. Até o momento, tive a oportunidade de acompanhar em pesquisa de campo dois (2) desses presidentes. Analisando o comportamento e as relações que estes mantêm com representantes governamentais, ora orientam suas ações numa perspectiva mais individualista – buscando visibilidade e recompensas (materiais e simbólicas) do governo -, ora como representantes dos interesses da comunidade. De um modo geral, tentam conciliar interesses individuais e coletivos, pois, precisam se mostrar competentes na obtenção de recursos e projetos para comunidade – o que traz maior visibilidade e respeito diante dos moradores -, assim como precisam fortalecer as bases eleitorais dos representantes governamentais do momento.

Vale ressaltar que no caso dos dois presidentes acompanhados por mim, um pertence ao quadro de filiados do PMDB do Rio de Janeiro. Seu papel de articulador político torna-se fundamental para o fortalecimento da legenda em uma das comunidades do Complexo, consequentemente, as relações de troca se apresentam bem mais "intensas". O outro ainda busca legitimidade perante os moradores e os representantes governamentais. Tem tentado estabelecer alianças, pois está a pouco tempo na presidência da associação e não possui qualquer vínculo político-partidário. Seu esforço por obtenção de recursos e projetos torna seu trabalho mais "árduo" e com poucas possibilidades de negociação.

Todo esse movimento das associações de moradores acontece em consonância com o trabalho dos "agentes de acesso governamental". Esses "agentes" são figuras políticas que atuam na região como "ponte" entre os interesses do governo, das associações e da comunidade. São pessoas que atuam de maneira informal e estratégica, que conhecem bem a realidade da região e que "falam a língua" dos moradores. Dessa forma, buscam viabilizar junto às instâncias do estado, sempre por meio das relações pessoais alguns projetos, obras, empregos, apartamentos nos conjuntos habitacionais do PAC, vaga nas escolas e nos hospitais, e tudo que possa fortalecer a imagem do governo nas comunidades.

Tanto presidentes de associação, quanto os "agentes", estão dentro do que Kuschnir (1993) define como "acessos": conhecimento que abre os caminhos para o atendimento dos pleitos. "Ter acesso é o que diferencia os parlamentares (no nosso caso, "agentes de acesso governamental") das demais pessoas" (KUSHINIR, 1993). Os acessos são fundamentais para que a política clientelista traga resultados satisfatórios para ambos os lados e estabeleça um grau de importância ao agente político perante a sua comunidade ou base eleitoral. Esses acessos não podem ser comprados, pois os mesmos não têm preço9.

Conversando com um dos "agentes", o mesmo deixa claro que "poder econômico e poder político são de natureza distinta". Os acessos precisam ser conquistados através de alianças que envolvem o trabalho na comunidade. Caso os governantes do momento sejam eleitos (ou reeleitos), o maior benefício obtido pelo político e seus representantes, não é o dinheiro, mas sua posição de intermediário ou "facilitador" 10.

Cabe ressaltar que esse tipo de política não é privilégio dos presidentes de associação e governo. Muitas organizações não-governamentais também compartilham da mesma filosofia de prática política, alegando dificuldades para obtenção de recursos financeiros e a urgência no atendimento de demandas essenciais da população mais vulnerável.

Para NUNES (1999), este comportamento se desenvolve devido a relação patron-cliente 11 estabelecida tanto em sociedades rurais ligadas ao mercado, quanto em centros urbanos capitalistas. O patron é aquele que possui contatos com o mundo exterior e tem comando sobre os recursos políticos externos. Possibilitam a realização de demandas a partir dos recursos que obtém, dos quais dependem os clientes. Logo, dentro desses universos "o mundo econômico e o social se confundem" constituindo assim um "sistema de valores que se sustenta em critérios pessoais e não-universalistas". O clientelismo acaba se configurando como "um sistema caracterizado por situações paradoxais":

(...) primeiro, uma combinação peculiar de desigualdade e assimetria de poder com uma aparente solidariedade mútua, em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigações interpessoais; segundo, uma combinação de exploração e coerção potencial com relações voluntárias e obrigações mútuas imperiosas; terceiro, uma combinação de ênfase nestas obrigações e solidariedade com o aspecto ligeiramente ilegal ou semilegal destas relações (...) O ponto crítico das relações patron-cliente é, de fato, a organização ou regulação da troca ou fluxo de recursos entre atores sociais" (NUNES, 1997: 28)

Assim, "estas redes envolvem uma pirâmide de relações que atravessam a sociedade de alto a baixo. As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até as localidades" (NUNES, 1999), comprometendo qualquer tipo de proposta de organização popular autônoma e emancipada. Consequentemente, uma esfera pública pautada na equidade e nos valores democráticos de participação.


Não há alternativa?

Essa é a primeira pergunta que nos vem à cabeça. Como romper com tais códigos que mantêm relações de assimetria entre os sujeitos e que compromete qualquer tentativa de estabelecimento de uma esfera pública plural e democrática, onde todos possuem as mesmas oportunidades de agir político? Há esperança para efetivação de uma gestão compartilhada da coisa pública?

Para tentar responder essa questão, além das questões apresentadas acima, faz-se necessário também problematizar alguns conceitos (e suas interpretações) que embasam ideologicamente a própria formação dessa esfera pública "democrática". Jürgen Habermas (2007) contribui para essa reflexão quando norteia as discussões sobre participação e deliberação mapeando as duas matrizes do pensamento ocidental sobre os temas. O autor traz-nos o embasamento normativo que possibilita identificar como a perspectiva liberal "entende" o próprio "jogo democrático", diante dos conceitos de "cidadão" e "processo político". Como os papéis individuais ou coletivos se orientam em busca de seus objetivos e demandas.

Para tradição liberal, o conceito de "cidadão" defini-se pelos: 1) Direitos subjetivos que eles têm diante do Estado e dos demais cidadãos. Na condição de portadores de tais direitos, gozam de proteção do Estado na medida em que se orientam em prol de seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos pela lei. Tais direitos são negativos, pois garantem o âmbito da escolha, estando os cidadãos livres de coações externas, e; 2) pelos direitos políticosquese estabelecem da mesma forma. Permitem que interesses privados possam se agregar a outros interesses privados até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma efetiva influência sobre a administração. Exercem influência direta no Estado (através de eleições e da composição do parlamento e do governo), controlando-o na medida em que seus interesses privados podem ser atendidos.

Já o conceito de "processo político", na tradição liberal, se orientará essencialmente: 1) Numa luta por posições que assegurem a capacidade de dispor de poder administrativo. Concorrência entre atores coletivos, que agem estrategicamente com o objetivo de conservar ou adquirir posições de poder; 2) embasado por um conceito de democracia que se desenvolve a partir da idéia de representação da soberania popular através de eleições, onde aqueles que são escolhidos se organizam em seus partidos visando a maximização de seus interesses próprios, pois o modelo está estruturado nas idéias de coordenação, barganha, ofertas de condicionais de serviços e abstenções, e não nos ideais de cooperação, deliberação, argumentos ou reivindicações. Lógica do mercado nas relações político-partidárias.

Se analisarmos a forma como os "agentes" e presidentes de associações (bem como as ONGs), se orientam politicamente, teremos a constatação empírica dessa formulação teórica. As relações entre os sujeitos dentro da esfera pública são o resultado do que Habermas chama de processo de "colonização do mundo da vida pelo sistema", tendência esta observada em sociedades de capitalismo tardio, onde as esferas de reprodução simbólica ("mundo da vida") são invadidas pela lógica instrumental da economia e pelo poder administrativo ("sistema"). Ele apresenta esta invasão utilizando os termos "monetarização" e "burocratização" crescentes da vida social, segundo as quais "as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo entendimento recíproco dos participantes, mas pelos meios padronizantes e linguisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle burocrático" (SILVA, 2008).

Nesse cenário, somente os atores que possuem maior poder e legitimidade perante os sujeitos subalternizados e as instituições políticas, terão possibilidades reais de participar de maneira efetiva da esfera pública. Nesse sentido, Vera Lúcia da Silva Telles (1994), afirma a necessidade de ampliar o conceito de "direito a participação" que está para além dos mecanismos institucionais, e que passa, sem sombra de dúvidas, pela questão do reconhecimento dos atores. O princípio da alteridade que somente se estabelece quando há equidade nos processos de formação política, social e cultural de uma sociedade que busca verdadeiramente o princípio republicano.

Alguns autores vão apontar nessa direção e propor estratégias de resignificação dos espaços de participação e das relações entre os sujeitos, levando em consideração que o processo de inclusão somente acontece por meio da luta política pelo reconhecimento, tanto da identidade quanto da redistribuição material. Nancy Fraser (2007) afirma a necessidade de se construir uma concepção ampliada de justiça onde distribuição e reconhecimento são dimensões distintas de uma única idéia de justiça, numa estrutura mais ampla e abrangente sobre a questão. Neste sentido, o centro normativo de Fraser se sustenta especificamente sobre a noção de paridade da participação.

Para que essa paridade se configure, ela defende duas condições fundamentais: a distribuição dos recursos materiais deve ser tal que assegure a independência e a voz (direito à fala) dos participantes; e a necessidade de que "padrões institucionalizados de valor cultural" expressem respeito igual para com todos os participantes e assegurem oportunidade igual para alcançar estima social. Todos devem ser enxergados como possuidores de qualidades para exercerem suas funções de participação, com o mesmo grau de reconhecimento nas proposições e colocações.

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A primeira seria uma condição objetiva, onde as necessidades de cunho material fossem atendidas a garantir efetividade desta participação, subtraindo qualquer tipo de relação de submissão ou dependência entre os pares. A segunda, condição intersubjetiva, seria a supressão de estigmas – ou a não-aceitação de diferenças e peculiaridades - que impedem a efetividade desta participação. Tanto uma quanto a outra são fundamentais à paridade participativa, onde uma não se realiza independente da outra.

Entretanto, para a superação de visões estereotipadas, dentro do que Souza (2003) define como "subcidadão", e a construção e o fortalecimento dos canais de participação na esfera pública, faz-se necessário estabelecer associações "horizontais e redes de solidariedade" (Putnam,1996: p.17) não hierarquizadas dentro das próprias comunidades, que possibilitem a superação de qualquer sentimento de auto-depreciação do valor social, bem como estabelecer relações de igualdade, gerando confiança mútua entre os pares, com base em normas democráticas. Nesse sentido, é fundamental que os próprios moradores se construam e se reconheçam como "cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração" (Putnam, 1996: p. 31).

No plano local – ou melhor, dentro dos espaços de convivência comunitária -, tal "horizontalização" dos processos decisórios apresenta-se como mecanismo capaz de fortalecer, não só a participação dos que historicamente estiveram alijados dos processos de decisão, mas também o poder de deliberação desses mesmos sujeitos. Mais uma vez Putnam contribui quando traz a idéia de "capital social". Esse seria o resultado das "conexões entre os indivíduos, redes sociais e às normas de reciprocidade e lealdade que nascem dela" (Gohn, 2004:24). Quanto maior o "capital", maior a "virtude cívicos", desde que os sujeitos estejam densamente articulados entre eles, permeados por compromissos mútuos e coletivos.

Contudo, todo esse movimento só terá sentido se os sujeitos estiverem pautados em valores "do mundo da vida". A solidariedade no agir comunicativo poderá levar, segundo Habermas (2007), os interlocutores a uma comunicação sem entraves, onde mesmo as idéias contrárias serão utilizadas como condição necessária para todo entendimento e a aprendizagem social, comunitária, e acima de tudo, coletiva. Dessa forma, fortalecer-se-iam compromissos mútuos que poderiam ser levados a esfera pública, ressignificando seus interlocutores diante das representações governamentais e da iniciativa privada, dando maior poder aos que Fraser (2007) denomina como "públicos subalternizados". A escuta estaria mais "garantida".

Assim, mais importantes que dados quantitativos apresentados à opinião pública pelos meios de comunicação sobre os "sucessos do PAC para as comunidades carentes", faz-se necessário considerar os seus resultados qualitativos – como esta pesquisa procura mostrar. Não basta ser apenas ser um beneficiário da política do programa, mas, sobretudo, participar da elaboração e da implementação da política como sujeito de proposição na transformação de sua própria realidade. Todo o conjunto de fatores que permeiam as relações nessa esfera de consensos e conflitos deve ser trabalhado levando em consideração a multiplicidade e a diversidade dos atores na arena política e os mecanismos de relacionamento entre a sociedade civil e o Estado.

Participar, mais do que estar inserido, é reconhecer no outro as mesmas possibilidades que reconheço em mim. Trata-se do exercício permanente da superação da moral vigente que estigmatiza e fortalece preconceitos que abismam a construção da democracia real neste País.

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Sobre o autor
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Cientista Social (especialização em sociologia política); mestrando em Políticas Sociais - Escola de Serviço Social - Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho Souza. Quem decide o futuro das favelas?: Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2844, 15 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18922. Acesso em: 25 nov. 2024.

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