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Quem decide o futuro das favelas?

Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ

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Não há alternativa?

Essa é a primeira pergunta que nos vem à cabeça. Como romper com tais códigos que mantêm relações de assimetria entre os sujeitos e que compromete qualquer tentativa de estabelecimento de uma esfera pública plural e democrática, onde todos possuem as mesmas oportunidades de agir político? Há esperança para efetivação de uma gestão compartilhada da coisa pública?

Para tentar responder essa questão, além das questões apresentadas acima, faz-se necessário também problematizar alguns conceitos (e suas interpretações) que embasam ideologicamente a própria formação dessa esfera pública "democrática". Jürgen Habermas (2007) contribui para essa reflexão quando norteia as discussões sobre participação e deliberação mapeando as duas matrizes do pensamento ocidental sobre os temas. O autor traz-nos o embasamento normativo que possibilita identificar como a perspectiva liberal "entende" o próprio "jogo democrático", diante dos conceitos de "cidadão" e "processo político". Como os papéis individuais ou coletivos se orientam em busca de seus objetivos e demandas.

Para tradição liberal, o conceito de "cidadão" defini-se pelos: 1) Direitos subjetivos que eles têm diante do Estado e dos demais cidadãos. Na condição de portadores de tais direitos, gozam de proteção do Estado na medida em que se orientam em prol de seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos pela lei. Tais direitos são negativos, pois garantem o âmbito da escolha, estando os cidadãos livres de coações externas, e; 2) pelos direitos políticosquese estabelecem da mesma forma. Permitem que interesses privados possam se agregar a outros interesses privados até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma efetiva influência sobre a administração. Exercem influência direta no Estado (através de eleições e da composição do parlamento e do governo), controlando-o na medida em que seus interesses privados podem ser atendidos.

Já o conceito de "processo político", na tradição liberal, se orientará essencialmente: 1) Numa luta por posições que assegurem a capacidade de dispor de poder administrativo. Concorrência entre atores coletivos, que agem estrategicamente com o objetivo de conservar ou adquirir posições de poder; 2) embasado por um conceito de democracia que se desenvolve a partir da idéia de representação da soberania popular através de eleições, onde aqueles que são escolhidos se organizam em seus partidos visando a maximização de seus interesses próprios, pois o modelo está estruturado nas idéias de coordenação, barganha, ofertas de condicionais de serviços e abstenções, e não nos ideais de cooperação, deliberação, argumentos ou reivindicações. Lógica do mercado nas relações político-partidárias.

Se analisarmos a forma como os "agentes" e presidentes de associações (bem como as ONGs), se orientam politicamente, teremos a constatação empírica dessa formulação teórica. As relações entre os sujeitos dentro da esfera pública são o resultado do que Habermas chama de processo de "colonização do mundo da vida pelo sistema", tendência esta observada em sociedades de capitalismo tardio, onde as esferas de reprodução simbólica ("mundo da vida") são invadidas pela lógica instrumental da economia e pelo poder administrativo ("sistema"). Ele apresenta esta invasão utilizando os termos "monetarização" e "burocratização" crescentes da vida social, segundo as quais "as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo entendimento recíproco dos participantes, mas pelos meios padronizantes e linguisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle burocrático" (SILVA, 2008).

Nesse cenário, somente os atores que possuem maior poder e legitimidade perante os sujeitos subalternizados e as instituições políticas, terão possibilidades reais de participar de maneira efetiva da esfera pública. Nesse sentido, Vera Lúcia da Silva Telles (1994), afirma a necessidade de ampliar o conceito de "direito a participação" que está para além dos mecanismos institucionais, e que passa, sem sombra de dúvidas, pela questão do reconhecimento dos atores. O princípio da alteridade que somente se estabelece quando há equidade nos processos de formação política, social e cultural de uma sociedade que busca verdadeiramente o princípio republicano.

Alguns autores vão apontar nessa direção e propor estratégias de resignificação dos espaços de participação e das relações entre os sujeitos, levando em consideração que o processo de inclusão somente acontece por meio da luta política pelo reconhecimento, tanto da identidade quanto da redistribuição material. Nancy Fraser (2007) afirma a necessidade de se construir uma concepção ampliada de justiça onde distribuição e reconhecimento são dimensões distintas de uma única idéia de justiça, numa estrutura mais ampla e abrangente sobre a questão. Neste sentido, o centro normativo de Fraser se sustenta especificamente sobre a noção de paridade da participação.

Para que essa paridade se configure, ela defende duas condições fundamentais: a distribuição dos recursos materiais deve ser tal que assegure a independência e a voz (direito à fala) dos participantes; e a necessidade de que "padrões institucionalizados de valor cultural" expressem respeito igual para com todos os participantes e assegurem oportunidade igual para alcançar estima social. Todos devem ser enxergados como possuidores de qualidades para exercerem suas funções de participação, com o mesmo grau de reconhecimento nas proposições e colocações.

A primeira seria uma condição objetiva, onde as necessidades de cunho material fossem atendidas a garantir efetividade desta participação, subtraindo qualquer tipo de relação de submissão ou dependência entre os pares. A segunda, condição intersubjetiva, seria a supressão de estigmas – ou a não-aceitação de diferenças e peculiaridades - que impedem a efetividade desta participação. Tanto uma quanto a outra são fundamentais à paridade participativa, onde uma não se realiza independente da outra.

Entretanto, para a superação de visões estereotipadas, dentro do que Souza (2003) define como "subcidadão", e a construção e o fortalecimento dos canais de participação na esfera pública, faz-se necessário estabelecer associações "horizontais e redes de solidariedade" (Putnam,1996: p.17) não hierarquizadas dentro das próprias comunidades, que possibilitem a superação de qualquer sentimento de auto-depreciação do valor social, bem como estabelecer relações de igualdade, gerando confiança mútua entre os pares, com base em normas democráticas. Nesse sentido, é fundamental que os próprios moradores se construam e se reconheçam como "cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração" (Putnam, 1996: p. 31).

No plano local – ou melhor, dentro dos espaços de convivência comunitária -, tal "horizontalização" dos processos decisórios apresenta-se como mecanismo capaz de fortalecer, não só a participação dos que historicamente estiveram alijados dos processos de decisão, mas também o poder de deliberação desses mesmos sujeitos. Mais uma vez Putnam contribui quando traz a idéia de "capital social". Esse seria o resultado das "conexões entre os indivíduos, redes sociais e às normas de reciprocidade e lealdade que nascem dela" (Gohn, 2004:24). Quanto maior o "capital", maior a "virtude cívicos", desde que os sujeitos estejam densamente articulados entre eles, permeados por compromissos mútuos e coletivos.

Contudo, todo esse movimento só terá sentido se os sujeitos estiverem pautados em valores "do mundo da vida". A solidariedade no agir comunicativo poderá levar, segundo Habermas (2007), os interlocutores a uma comunicação sem entraves, onde mesmo as idéias contrárias serão utilizadas como condição necessária para todo entendimento e a aprendizagem social, comunitária, e acima de tudo, coletiva. Dessa forma, fortalecer-se-iam compromissos mútuos que poderiam ser levados a esfera pública, ressignificando seus interlocutores diante das representações governamentais e da iniciativa privada, dando maior poder aos que Fraser (2007) denomina como "públicos subalternizados". A escuta estaria mais "garantida".

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Assim, mais importantes que dados quantitativos apresentados à opinião pública pelos meios de comunicação sobre os "sucessos do PAC para as comunidades carentes", faz-se necessário considerar os seus resultados qualitativos – como esta pesquisa procura mostrar. Não basta ser apenas ser um beneficiário da política do programa, mas, sobretudo, participar da elaboração e da implementação da política como sujeito de proposição na transformação de sua própria realidade. Todo o conjunto de fatores que permeiam as relações nessa esfera de consensos e conflitos deve ser trabalhado levando em consideração a multiplicidade e a diversidade dos atores na arena política e os mecanismos de relacionamento entre a sociedade civil e o Estado.

Participar, mais do que estar inserido, é reconhecer no outro as mesmas possibilidades que reconheço em mim. Trata-se do exercício permanente da superação da moral vigente que estigmatiza e fortalece preconceitos que abismam a construção da democracia real neste País.


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Sítios de consulta

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Notas

  1. Um bom exemplo neste sentido é o Conselho Municipal de Assistência Social embasado pela Lei 8.742 de 07/12/93 como instância local de formulação de estratégias e de controle da execução da política de assistência social, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros.
  2. Teóricos como Sergio Buarque de Holanda e Roberto Da Matta atribuirão ao subdesenvolvimento e a desigualdade brasileiras a permanência de relações personalistas e patrimonialistas no Estado moderno brasileiro, o que contribuiu para permanente "confusão" entre esfera pública e privada. Dessa forma, os "jeitinhos" se tornariam a alternativa viável aos que estiveram fora do processo de desenvolvimento da chamada "sociedade burguesa" brasileira.
  3. O PAC estadual está na região exceto na Vila Cruzeiro, Grota e Nova Brasília, que estão sob responsabilidade do PAC municipal.
  4. A história sobre a origem do nome do Complexo remonta a década de 20 (Século XX), no período do pós-Guerra, quando um imigrande de origem polonesa, Leonard Kaczmarkiewicz, chegou ao Rio de Janeiro e adquiriu terras na Serra da Misericórdia, que correspondia à região rural da Zona da Leopoldina. Devido as suas características físicas, branco e alto, assim como o seu sotaque estrangeiro, os moradores da região passaram a se referir ao proprietário da fazenda como o "alemão". Logo depois, a própria localidade passou a ser denominada como o "Morro do Alemão".
  5. Para John Locke (1632-1704), teórico e contratualista inglês, sendo a sociedade o resultado da reunião de indivíduos, que visam garantir suas vidas, sua liberdade e sua propriedade, faz-se fundamental que cada indivíduo instrumentalize sua razão em prol do governo coletivo. O self pontual seria justamente a capacidade que o indivíduo tem de suspender seus desejos e sentimentos, na busca por objetivos e resultados calculados e pré-estabelecidos. Nesse sentido, há necessidade do sujeito se comportar e se colocar no mundo de maneira disciplinada, autocontrolada e prospectiva. Max Weber (1864-1920), atribui a formação desse self pontual, em sua obra clássica "A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo", a própria revolução cultural empreendida pela reforma protestante.
  6. Até o momento, cerca de 1813 pessoas foram realocadas de suas moradias, conseqüência dos impactos das obras do PAC. Dessas, 735 receberam indenização para compra assistida de outra moradia, 648 receberam somente indenização e 430 foram remanejadas para unidades habitacionais.
  7. De acordo com o estudo inédito da Fundação Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro (CIDE), o Estado do Rio de Janeiro tem hoje um exército de sem-teto e um déficit habitacional que alcança 293.848 moradias. Esse número equivaleria à necessidade habitacional de quase 1,2 milhão de pessoas e corresponde a 6,89% das 4,2 milhões de residências fluminenses. Em números absolutos, o déficit aumentou em 12.032 residências entre 1991 e 2000, diz a pesquisa, que teve como base de dados o Censo do IBGE.
  8. Inspirado no modelo da cidade de Medellín, na Colômbia, onde os teleféricos funcionam desde 2004, ligando a periferia ao centro da cidade, o governo do estado do Rio de Janeiro iniciou as obras do teleférico do Complexo do Alemão em outubro de 2007. Segundo o governo, o teleférico terá capacidade para transportar 30 mil pessoas por dia. Ao longo de um percurso de 2,9 quilômetros. O percurso terá seis estações: começando na Fazendinha, passará por Itararé/Alvorada, Morro do Alemão, Morro da Baiana, Morro do Adeus e chegará à estação de trem de Bonsucesso.
  9. KUSCHNIR (1993)
  10. KUSCHNIR (1993:88)
  11. Edson Nunes mantém a expressão patron na tradução em português. O termo abrange o que no Brasil é compreendido nas expressões "coronel", chefe de máquinas políticas urbanas, pequenos chefes locais ou mesmo líderes que controlam máquinas sindicais. O importante é observar que a relação patron-cliente define um tipo especial de relação de troca assimétrica.
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Sobre o autor
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Cientista Social (especialização em sociologia política); mestrando em Políticas Sociais - Escola de Serviço Social - Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho Souza. Quem decide o futuro das favelas?: Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2844, 15 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18922. Acesso em: 23 abr. 2024.

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