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O preconceito racial no processo de adoção.

Os desafios da adoção interracial em Campo Grande

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5. UMA FAMÍLIA MULTIRRACIAL.

"Bom, falando de adoção inter-racial (quando a criança pertence a uma raça diferente da dos pais adotivos), algo que também vivenciei na minha família, a coisa mais importante é estabelecer entre a família, uma ligação forte e segura, superando as diferenças físicas.

Nós vivemos em um mundo preconceituoso demais... Já escutei tanto absurdo, coisas que não entram na minha cabeça. "Sou racista porque sou antigo", "Sou racista porque tenho descendência européia" (?!), "Sou racista porque foi minha criação"... Bom, com o conhecimento que temos hoje, as justificativas que as pessoas arranjam são cada vez mais esfarrapadas! Já escutei coisas também do tipo "se você pode ter um filho loirinho, porque vai querer um pretinho?" entre outros absurdos, que definitivamente, não entendo. Algumas pessoas em menor intensidade, outras, declaradas, mas a verdade é que estamos em um país muito racista.

Aqui crianças negras ou com traços negróides, têm menos chances de serem adotadas e estão sujeitas a serem institucionalizadas por grande tempo. A maioria prefere menina, de até dois anos, branca.

Meus pais não especificaram a raça, nem a idade. Tenho quatro irmãos negros e dois com traços negróides e índios. No começo, lembro que negavam a própria raça... As meninas queriam alisar os cabelos... Os meninos diziam que não eram negros. Minha irmã Louise trabalhou muito com todos, através da música. Ela gosta muito de Rap, de Black Music e através dos clipes, elogiava muitos artistas, mostrava as cantoras, como cuidavam do cabelo, como eram lindas e os cantores também. Sendo nossas adoções na maioria tardias, foi bem positivo para eles.

No caso de adoções feitas em "último caso", quando os pais não podem procriar biologicamente e não tenham podido elaborar o luto pela sua esterilidade, aparecem alguns problemas em relação à adoção inter-racial. Acontece que esses pais, segundo Freud, revivem suas fantasias narcísicas por meio de seus filhos: seus anseios de perfeição e imortalidade estão concentrados no seu olhar sobre eles. Quando as diferenças físicas são gritantes, a descontinuidade biológica é evocada com freqüência, e pode haver dificuldades em sentir a criança como um filho legítimo.

As diferenças físicas entre pais e filhos evidenciam a percepção da descontinuidade biológica e põe à prova a confiança na estabilidade da relação. A criança pode testar os pais para ver a consistência do vinculo com a família. Isso acontece também pelo medo da criança de ser abandonada novamente... O que acontece em alguns casos... Já escutei delírios absurdos, como: "você não sabe a herança genética dessa criança, ele pode matar todos vocês" (!) "ela será prostituta como a mãe biológica"(!) "ele tem psicopatia (criança de 2 anos, absolutamente normal)". Alguns casos de pais, que não podiam ter filhos, fazem a adoção, conseguem ter filhos e abandonam novamente o adotivo, a criança é abandonada duas vezes.

Algo importante é trabalhar com a criança a questão do racismo existente na nossa sociedade. Não podemos ignorar que convivemos com o racismo. A conscientização dos pais quanto a este tema e seu enfrentamento dentro da realidade são essenciais para que eles possam ajudá-la neste processo.

Quer saber, hoje somos todos aqui em casa tão parecidos. Meus irmãos são lindos demais, cada um com seu jeitinho, sua raça, seu estilo. Como é bom amar! Como é bom não ser racista e encontrar esses grandes amores da minha vida... Eles são parte de mim e hoje não imagino minha vida sem o sorrisão do Alexandre, sem o olhar meigo da Ana Flávia, sem as brincadeiras do Roniel, sem a solicitude e companhia do Diego, sem a amizade da Dania, sem o carinho enorme da Viviane... Sem o amor de todos eles.

Nenhuma adoção é fácil, temos que compreender todo o processo traumático que passaram de rejeição e abandono... Às vezes podem ser agressivos, podem ser hostis, mas só querem testar o amor que temos... Passada essa fase, é só alegria.
Reflitam! Espero que ajude! Beijos para todos!"

(Texto postado por Annalies Chiapetta, às 10h35min no seu blog onze amores.blogspot.com e gentilmente cedido para este artigo).

Como constatamos no depoimento acima, a auto-estima é fundamental para o sucesso de uma adoção inter-racial. Ela baseia-se em reconhecer-se como pertencente a determinado grupo étnico, e identificar-se, mesmo sem levantar bandeiras. Ser negro, sentir-se negro e sentir-se bem assim, em qualquer lugar é o grande desafio, uma questão de atitude, como a de aceitar as pessoas com suas diferenças.

Segundo Souza (2002), os processos de diferenciação que a nossa espécie é capaz de realizar, estabelecem cisões na dimensão complexa da ponte que, ao mesmo tempo em que separa as margens, as reúne: lugares de muitos passantes que pedem pontes para realizar a travessia em direção ao encontro.

Sempre e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens (e mulheres) para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens. A ponte reúne enquanto passagem que atravessa. (FLEURI, 2000, p.109)

A juíza Drª Katy Braun, da Vara da Infância e Juventude de Campo Grande-MS, relata que:

Após tragédias recentes, como a do Haiti, eu chegava a receber um alto número de procura, por telefone, de informações de como fazer para adotar uma criança da Haiti. Com artistas como Angelina Jolie e Madonna adotando crianças negras de países pobres, eu creio que há um desejo de satisfazer mais o ego do que o desejo real de adoção por parte desses pretendentes a pai. Ao dizer que aqui em Campo Grande, nos abrigos, encontrariam crianças à espera de adoção, acabavam desistindo da idéia. Sempre me perguntava: Será que as crianças negras do Haiti são mais bonitas do que as daqui?

É fundamental respeitar o outro, as diferenças, os pontos de vista divergentes do nosso. Não fazê-lo pode acarretar o estabelecimento de barreiras e resistências que dificultarão em muito a realização do objetivo fundamental: assegurar a todas as crianças o direito a ter uma família.

Ir ao encontro da criança, da criança real, daquela que reclama um direito, não menos do que isso, um direito, não um favor, não uma caridade, um direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma experiência de adoção inter-racial pode ser considerada como uma das mais ricas experiências de educação intercultural, abrindo amplas possibilidades de acolhimento das diferenças. Encontrar um lugar onde as diferenças possam ser articuladas e não excluídas: aqui encontramos uma possibilidade de formação de identidades que não se estabelece em polaridades, mas sim em interação.

A relação com o outro pressupõe a existência de reciprocidade, de encontros, sem seleção de qualquer categoria (negro, branco, homem, mulher). As pessoas pesquisadas desmistificaram a idéia de que somente a adoção de bebês ou crianças de até três anos, saudáveis e com características semelhantes às do casal adotante têm mais chances de sucesso na adoção.

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As dificuldades encontradas nas famílias que adotaram crianças negras não são maiores ou mais significativas do que as encontradas no seio de uma família com filhos biológicos, sejam eles brancos ou negros. A desconstrução desses preconceitos fez-se durante todo o processo da pesquisa e do conhecimento das histórias relatadas. A formação de famílias multirraciais pesquisadas demonstra que a constituição de uma família passa pela convivência, diálogo e amor, afinal o que realmente importa para a formação de uma família.

Em Campo Grande, constatamos que o número de crianças negras nos abrigos não é maior do que o número de crianças brancas. Mais um mito desfeito. Começamos a pesquisa achando que encontraríamos um número maior de crianças negras para adoção.

Um fato que, talvez, justifique essa constatação seja o excelente trabalho feito pela Vara de Infância e Juventude de Campo Grande já há algum tempo. Para o processo de adoção há um cuidadoso acompanhamento das famílias pretendentes à adoção por um grupo de profissionais habilitados, como psicólogos e assistentes sociais, que orientam e avaliam se os pretendentes estão aptos para a adoção.

O Projeto Padrinho também estimula a diminuição do preconceito ao aproximar as pessoas daquelas crianças que, a princípio, teriam mais dificuldades em encontrar uma família adotiva. Crianças negras, crianças mais velhas, meninos, enfim, todos aqueles que fogem ao padrão mais procurado: menina, até 3 anos, no máximo, e de cor branca.

Adotar alguém não é resposta às mazelas da sociedade, também não é resposta à necessidade que alguns têm de fazer caridade. A adoção não pode ser movida por sentimentos altruístas ou de pena, de revolta por práticas governamentais equivocadas. Adotar não é sinônimo de generosidade. A adoção é ímpar e deve ser plena, movida por um único desejo: ser mãe ou pai. Compreender o processo da adoção, seu aspecto legal e, principalmente, o interior de cada ser (daquele que adota e daquele que é adotado), suas razões e emoções é fundamental para a estruturação desse instituto (adoção) que representa, sim, indiretamente, apenas uma pequena contribuição às mazelas da sociedade. Apenas isso e não por isso.

O exercício da paternagem e da maternagem compreende muito mais do que o cuidado objetivo da criança, compreende a sua construção como ser humano, a sua estruturação psicoemocional e física. A educação do filho é igual para o biológico e para o adotado, seja ele branco ou negro, índio ou mulato. Filho é filho e não se pode negligenciar os valores, encontrar desculpas, tais como "porque ele é adotado..."

É imprescindível que ao filho, adotado ou não, branco ou negro, seja conferido amor, responsabilidades e limites educacionais, sabendo-se que todos, inclusive as crianças, possuem direitos e deveres. Já se perguntou: "Que mundo deixarei para meu filho?" E que tal se perguntar: "Que filho deixarei para este mundo?"


REFERÊNCIAS

AYRES, L. S. M., CARVALHO, M.S., e SILVA, M.M. Olhares sobre a Instituição Adoção: Família e Pobreza em Questão. In: NASCIMENTO, M.L., 9ORG0. Pivets: A Produção de Infâncias Desiguais. Niterói: Intertexto: Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2002.

AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. Coordenação e edição: Margarida dos Anjos e Marina Baird Ferreira. Brasil: Editora positivo, 2004.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. 1999.

_______. Lei nº 12.010(nova lei da adoção), 2009.

CUNHA, E.P., & CUNHA, E.S.M. Políticas Públicas Sociais. In CARVALHO, A & COLS. (Orgs), Políticas Públicas. Belo horizonte: editora UFMG; Proex, 2002.

GOMIDE, P. I. C. Prefácio. In L. N. D. Weber, Laços de Ternura:Pesquisas e histórias de adoção(2ª ed). Curitiba: Juruá. 1999.

FLEURI. Educação nos limiares entre culturas. Revista Marco Social: educação para valores. Instituto Souza Cruz, janeiro, 2003.

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

SILVA, Érica Sarmiento da. O Mito da Democracia Racial:o racismo cordial no Brasil – a visão mitológica, antropológica e jornalística. Rio de Janeiro, 1999. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo), Universidade Estácio de Sá.

SILVEIRA, Ana Maria. Particularidades da Adoção:a questão da etnia. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

SOUZA, Maria Isabel Porto de. Construtores de Pontes: explorando limiares de experiências em educação intercultural.Florianópolis, 2002. (Dissertação de Mestrado em Educação). Centro de Ciências da Educação, Programa da Pós Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina.

WEBER, L. N. D. Laços de Ternura:Pesquisas e histórias de adoção(2ª ed.). Curitiba: Juruá, 1999.

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Sobre os autores
Rogéria Fonseca da Victória

Bacharelanda do curso de DIREITO da Universidade Católica Dom Bosco-UCDB, voluntária no Programa de Iniciação Científica - PIBIC, integrante do Grupo de Diversidade Cultural e Grupos em Processo de Inclusão Social no MS: análise sócio-jurídica interdisciplinar (DCGIS), coordenado pelo Professor Dr. José Manfroi. Possui graduação em LETRAS - FACULDADES UNIDAS CATÓLICAS DE MATO GROSSO (1991) e graduação em EDUCAÇÃO FÍSICA pela Universidade Católica Dom Bosco (2001). Possui Especialização em Atividade Física Adaptada à Saúde, pela Universidade Gama Filho (RJ) e Especialização em Língua Portuguesa pela Universidade Salgado de Oliveira (RJ). Atualmente é Servidora do Procon e trabalha no Setor de Projetos Especiais.

José Manfroi

Graduado em Filosofia (FUCMT/MS); Mestre em Educação (UFMS);Doutor em Educação (UNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VICTÓRIA, Rogéria Fonseca ; MANFROI, José. O preconceito racial no processo de adoção.: Os desafios da adoção interracial em Campo Grande. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2924, 4 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19463. Acesso em: 5 nov. 2024.

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