SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Abordagem histórica: o surgimento das sociedades cooperativas e os princípios de Rochdale; 3. Conceito de cooperativa e os requisitos para sua configuração; 4. Legislação brasileira sobre o tema; 5. Histórico das cooperativas habitacionais no Brasil; 6. O tema das cooperativas habitacionais sob a ótica da jurisprudência; 7. Conclusões e sugestões para solução do tema.
1. Introdução
Tema recorrente em milhares de demandas judiciais despejadas anualmente no Poder Judiciário brasileiro é o dos prejuízos decorrentes da aquisição da casa própria por meio da adesão aos sistemas de cooperativas criadas e desenvolvidas para a realização de empreendimentos habitacionais. Sobre este assunto, o Desembargador Ênio Santerelli Zuliani, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, já afirmou em julgado destinado a solucionar controvérsia entre cooperativa habitacional e ex-associado que, "ressalvadas situações especialíssimas, observa-se que a criação de cooperativas para implementação de empreendimentos imobiliários revelou-se uma mal sucedida experiência, que reclama alteração legislativa capaz de proibir o indiscriminado uso das prerrogativas conferidas pela Lei 5764/71" [01].
Um pouco da história do cooperativismo no mundo, englobando a experiência brasileira no plano habitacional, serve para apontar que o referido Desembargador está correto ao afirmar que as cooperativas habitacionais no Brasil revelam uma mal sucedida experiência, salvo raríssimas exceções.
2. Abordagem histórica: o surgimento das sociedades cooperativas e os princípios de Rochdale
A primeira sociedade cooperativa formal de que se tem notícia foi constituída na Inglaterra, em 1844, mais exatamente no bairro de Rochdale, cidade de Manchester, para fins de consumo. Na época, 28 (vinte e oito) tecelões se reuniram e formataram um capital único com o intuito de adquirir as mercadorias necessárias para sua sobrevivência em grande escala, barateando, consequentemente, os preços dos insumos. O sucesso da empreitada foi tão grande que o capital inicial de 1 (uma) libra saltou, em um ano de funcionamento da cooperativa, para 180 (cento e oitenta) libras. E aqueles 28 (vinte e oito) cooperados fundadores passaram a ser 1.400 (mil e quatrocentos) no mesmo período.
Os princípios que inspiraram a criação daquela entidade no distante Século XIX foram rediscutidos em dois congressos internacionais no Século XX, promovidos pela ACI – Associação Cooperativa Internacional e foram universalmente adotados como princípios cooperativistas. A consolidação destes princípios se deu, mais recentemente, no Congresso de Manchester, em 1995, e são: (a) adesão livre e voluntária; (b) controle democrático pelos sócios; (c) participação econômica dos sócios; (d) autonomia e independência; (e) educação, treinamento e informação; (f) cooperação entre cooperativas e (g) preocupação com a comunidade.
A correta compreensão acerca dos princípios acima elencados aponta para a completa diferenciação da cooperativa frente a qualquer sociedade mercantil. Destacamos neste capítulo os ensinamentos de Waldirio Bulgarelli em relação a alguns destes princípios, de modo a evidenciar as peculiaridades da sociedade cooperativista. Sobre o princípio da adesão livre, assim expõe o doutrinador: "cooperativas são organizações voluntárias abertas a todas as pessoas aptas a usar seus serviços e dispostas a aceitar as responsabilidades de sócios, sem discriminação social, racial, política ou religiosa e de gênero" [02].
Aduz, ainda, Bulgarelli que "as cooperativas são organizações democráticas controladas por seus sócios os quais participam ativamente no estabelecimento de suas políticas e na tomada de decisões" (princípio do controle democrático pelos sócios), e que "a cooperativa distribui equitativamente qualquer sobra apurada em suas operações, sem qualquer distinção em razão do capital, mas em função exclusivamente do montante operacional de cada associado" (princípio da participação econômica dos sócios) [03].
3. Conceito de cooperativas e os requisitos para sua configuração
No Congresso de Manchester, no ano de 1995, consolidou-se o seguinte conceito de cooperativa: "é uma associação autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de uma empresa de propriedade coletiva e democraticamente gerida". Para Bulgarelli "será considerada sociedade cooperativa, qualquer que seja a sua conceituação legal, toda a associação de pessoas que tenha por fim a melhoria econômica e social de seus membros, através da exploração de uma empresa sobre a base da ajuda mútua e que observe os princípios de Rochdale" [04].
O fator prepoderante, portanto, na criação de qualquer cooperativa é o da melhoria das condições de vida de seus associados. Trata-se da personificação dos anseios de um grupo de pessoas com o objetivo de direcionamento de esforços comuns, para o alcance de benefícios sociais e econômicos. Tudo isso por meio de uma gestão democrática, calcada na máxima de que para cada associado, um voto, independentemente do capital aportado na entidade.
A motivação para que pessoas se unam em torno de uma cooperativa vem do senso ético da solidariedade e da ajuda mútua. Trata-se de uma affectio societatis peculiar, não percebida em qualquer sociedade empresarial, que, invarialmente, une pessoas que estudaram o mercado desejado de atuação, os seu concorrentes, passando a oferecer uma gama de produtos com os quais esperam auferir lucro. Ao contrário disso, na cooperativa pouco se olha para o mercado, pois sua organização é feita para atender aos próprios associados, seja por meio da organização de grupos de produção, de consumo ou mesmo para fins de concessão de crédito para os próprios cooperados. Assim, quando se formata uma cooperativa de crédito, não se faz pensando em competir com as taxas de juros praticadas pelas várias entidades financeiras existentes no mercado. A ideia é simplesmente permitir o acesso a crédito mais barato àqueles que se dispõem a comungar dos esforços e do sentido ético que inspiraram a criação da Cooperativa de Rochdale, no século XIX.
Outro aspecto que diferencia as cooperativas de toda e qualquer sociedade empresária está ligado à democratização do poder de direção das entidades, máxima garantida pela singularidade do voto, a despeito da quantidade de capital aportado na sociedade. Mesmo porque o que importa para fins de benefícios pessoais decorrentes da associação à cooperativa é o volume de operações realizadas pelo indivíduo com a cooperativa. E este volume de operações não torna o indivíduo detentor de maior poder de direção em relação a outro associado que tenha aportado menos recursos ou esforços pessoais.
Do mesmo modo, nos termos dos princípios basilares da doutrina cooperativista, o ingresso na cooperativa deve ser franqueado a qualquer pessoa, sendo descabida a cobrança de qualquer valor de entrada. Este princípio é inaplicável a qualquer sociedade comercial. Afinal, quando se fala em sociedade limitada, por exemplo, a affectio societatis é fator de fundamental importância, além da necessidade de aporte para cumprimento do objetivo social.
4. Legislação brasileira sobre o tema
O histórico da legislação que versa sobre a atividade cooperativa no país teve início com a edição da Lei orgânica de 1907 (Decreto 1.637, de 5 de janeiro). Desde então, sucederam-se inúmeros Decretos e Leis que, segundo Waldírio Bulgarelli, poderiam ser compreendidos em cinco grandes períodos do cooperativismo no Brasil, a saber: "(a) o período da implantação; (b) o da consolidação parcial; (c) o do centralismo estatal; (d) o da renovação das estruturas e, por fim, (e) o período da liberalização" [05].
A narrativa feita por Bulgarelli, em sua obra, bem demonstra como a implantação do modelo cooperativista no país sofreu avanços e retrocessos nestes pouco mais de cem anos de legislação, culminando com a edição da Lei n. 5.764/71, até hoje vigente e que disciplina a criação e funcionamento de tais entidades.
Os doutrinadores especializados são praticamente unânimes em afirmar que a Lei n. 5.764/71 representou grande avanço na implantação do cooperativismo no Brasil, exatamente porque acolheu quase todos os pleitos das lideranças cooperativistas da época. Entretanto, deixou-se de introduzir na referida norma a possibilidade de imediato funcionamento das cooperativas, independentemente de autorização, liberando-as das amarras do controle estatal.
Somente com o advento da Constituição Federal de 1988 é que a criação e o funcionamento das cooperativas passaram a ser livre de autorização estatal (art. 5º, inc. XVIII). Além disso, a Carta Magna impõe que o legislador infraconstitucional apóie e estimule o cooperativismo no país (art. 174, § 2º).
No mais, importante dissecar os principais aspectos da Lei das Cooperativas. O art. 3º da Lei n. 5.764/71 determina que "celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro" (os princípios universais de Rochdale já podem ser percebidos na conceituação da lei brasileira).
O art. 4º determina a forma e natureza da sociedade cooperativa, consignando que "as cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados". A confusão e redundância de tal dispositivo são clamorosas. Primeiramente, diz a Lei que a cooperativa é uma sociedade de natureza jurídica própria, para depois afirmar que ela tem natureza civil. Ora, ou tem natureza civil ou tem natureza própria. E afirma que ela não é passível de falência quando não precisava, na medida em que afirmou anteriormente que a sociedade cooperativa tem natureza civil. O mais correto, em minha visão, é considerar que a cooperativa é uma associação e, portanto, uma sociedade de natureza civil, com requisitos especiais de constituição e funcionamento.
Destaca-se, ainda, da Lei n. 5.764/71 a necessidade de o estatuto social da cooperativa prever a administração democrática da entidade, com as consequentes previsões relativas à convocação e decisões a serem adotadas em Assembleia Geral, órgão máximo e supremo das sociedades cooperativas. Do mesmo modo, tem-se a destacar a obrigatoriedade de remessa de 5,0% (cinco por cento) das sobras líquidas apuradas no exercício para o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social.
Muitos outros são os pontos da Lei n. 5.764/71 que poderiam ser destacados neste trabalho para apontar as peculiaridade das sociedades cooperativas. Estes aspectos, como será visto mais adiante pelo resultado do trabalho de pesquisa jurisprudencial elaborado, não são observados pela vasta maioria das cooperativas habitacionais do país. Estas cooperativas, como exaustivamente tem declarado o Poder Judiciário de vários Estados, nada mais são do que incorporadoras travestidas de cooperativas. Recebem a denominação de sociedades cooperativas apenas com o intuito de redução dos custos inerentes à atividade de incorporação, assim como para receberem tratamento fiscal diferenciado.
5. Histórico das cooperativas habitacionais no Brasil
As cooperativas habitacionais, ao contrário das cooperativas agrícolas e de consumo, somente surgiram no país em razão de motivação e intervenção estatal. Não se trata, portanto, de fenômeno marcado pela mobilização de parte da sociedade e, posteriormente, regulada pelo Estado. O marco do surgimento das cooperativas de habitação é a Lei n. 4.380/64, que criou o chamado Sistema Financeiro Habitacional (SFH), o qual atribuiu às cooperativas o papel de agentes promotores. Os agentes promotores do SFH seriam "entidades públicas ou particulares que associam a execução de programas setoriais de construção de habitações às atividades financeiras referentes à sua comercialização. Estão nessa categoria as companhias de habitação, as cooperativas habitacionais e outras entidades" [06].
Fala-se habitualmente em Sistema Financeiro da Habitação, quando na verdade o que a Lei n. 4.380/64 criou foi o chamado Plano Nacional de Habitação, com o escopo precípuo de erradicar o já vergonhoso, naquela época, déficit habitacional brasileiro, por meio de grande oferta de financiamento imobiliário equacionado à sociedade. Acabou ganhando o nome popular de SFH, exatamente porque o agente centralizar do plano foi o recém criado Banco Nacional de Habitação, sendo certo que o plano, criado inicialmente por motivação social, transformou-se em um bem sucedido plano de fomento da indústria da construção civil brasileira.
A cooperativa habitacional foi, durante certo tempo, um veículo importante de destino de boa parte dos recursos do SFH, notadamente para promoção de empreendimentos habitacionais populares. Entretanto, esta situação de importância das cooperativas para solução do déficit habitacional foi bastante breve.
No início do Plano Nacional de Habitação, as cooperativas habitacionais recebiam os recursos diretamente do BNH, sendo elas próprias responsáveis pela captação de associados, elaboração do projeto construtivo e orçamento das obras. Ocorre que, com vistas a tornar a equação financeira mais rentável para o BNH, esta entidade passou a dificultar, cada vez mais, o acesso ao crédito pelas cooperativas.
O Decreto n. 58.377/66 restringiu o crédito do BNH somente às chamadas cooperativas operárias, cujo funcionamento dependia de autorização governamental ("organizações mutualistas, do tipo fechado, sem fins de lucro, com número pré-fixado de associados, constituída apenas de trabalhadores sindicalizados (ou filiados às associações de classe definidas na Lei n. 1.134/50), tendo como objetivo exclusivo a realização de um plano habitacional para atendimento de seus associados, através de um sistema de poupança e amortização"). O mesmo Decreto criou os chamados INOCOOPs – Institutos de Orientação de Cooperativas, em âmbitos estaduais, que passaram a figurar como um ente intermediador na relação entre cooperativas e BNH. Tudo isso como forma de tornar mais eficiente a engenharia financeira dos investimentos, evitando-se prejuízos ao Sistema Financeiro Habitacional.
Os INOCOOPs foram minguando, progressivamente, o poder das cooperativas sobre a própria decisão dos projetos a serem desenvolvidos, o custo envolvido nas obras e a taxa de administração a elas devida. A doutrina descreveu assim a situação das cooperativas habitacionais por conta das diversas modificações nas regras do SFH: "os cooperativados, e os próprios órgãos deliberativos das cooperativas, ficavam reduzidos, simplesmente, a executar os planos e decisões tomados à sua revelia, a pretexto da falta de competência técnica dos principais interessados" [07]. Dessa forma, a real demanda e necessidade dos cooperados foram deixadas de lado, passando o BNH a oferecer financiamento somente a obras de larga escala e de péssima qualidade, numa matemática que favorecia unicamente o alcance do maior número possível de unidades por projetos os quais, na maior parte dos casos, não guardavam qualquer preocupação com questões arquitetônicas e de qualidade dos insumos utilizados.
Assim poderia ser resumido o panorama do sistema cooperativa habitacional no final da década de 70: "a Cooperativa, nesse caso, está passando à condição de mero instrumento da construtora-imobiliária, que ‘provoca’ a demanda, capta inscrições, dispõe de local para a sede da Cooperativa, elabora projetos, incumbe-se de todas as providências administrativas, não mede esforços para que a Cooperativa ‘vingue’. Ou seja, já que a Cooperativa é condição sine qua non para a obtenção de financiamento, então forma-se a Cooperativa" [08].
Como se vê, o sucesso da experiência do sistema de cooperativas habitacionais no Brasil foi bastante breve, tendo-se perdido excelente oportunidade de, ao menos, aliviar o absurdo déficit habitacional que ainda hoje alcança patamares vexatórios. A extinção do BNH e a completa ausência de incentivos à criação das cooperativas, desde a experiência do Plano Nacional de Habitação, redundaram no completo ostracismo do instituto cooperativo até os dias atuais.
Atualmente, não se consegue citar nenhum caso marcante e recente de bem sucedida experiência no campo das cooperativas habitacionais. Não somente porque inexiste linha de crédito especial para tais entidades, mas principalmente porque a atual política habitacional, representada pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, privilegia a concessão de financiamento direto ao mutuário, ou ainda as parcerias diretas com os próprios Municípios aderentes do programa e empresas incorporadoras.
Ou seja, a tendência é que o sistema cooperativista no plano habitacional permaneça esquecido, em razão de o legislador infraconstitucional não seguir a determinação da Carta Magna no sentido de promover o cooperativismo (CF, art. 174, § 2º, que assim dispõe: "a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo").
Isso não significa que inexistam cooperativas de habitação no país. Elas existem sim, e como se fez menção anteriormente, elas são rés em diversas demandas propostas por cooperados, que, na vasta maioria dos casos, são equiparados a consumidores.
6. O tema das cooperativas habitacionais no Brasil sob a ótica da jurisprudência
Como visto ao longo da exposição acima, uma cooperativa típica reúne pessoas que mantém relação perene com a entidade, sendo que em muitos casos a adesão à entidade é o próprio modo de sobrevivência do associado. Exemplos assim não faltam, podendo ser citados, apenas a título exemplificativo, as cooperativas de pescadores ou de produtores rurais. Estas cooperativas são revestidas do princípio basilar Rochdaleano da "educação, treinamento e informação", de modo que, no caso dos produtores rurais, as cooperativas ensinam aos produtores as melhores técnicas de produção, o manejo com os pesticidas, além de negociar com o mercado a aquisição da colheita.
No caso das cooperativas habitacionais, o que se observa é uma relação contratual com data marcada para acabar. O associado adere a um determinado grupo formatado para construção de um condomínio, dele se desassociando tão logo tenha efetuado o pagamento do preço total avençado e recebido as chaves de sua unidade imobiliária. Sobre este cenário, o Desembargador Olavo Silveira do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já pronunciou que a cooperativa habitacional é um "tipo de associação que muito mais se aproxima dos consórcios do que propriamente de cooperativa, até porque, via de regra, nem sempre é o efetivo espírito cooperativo que predomina nessas entidades (...) o associado que a ela adere apenas para o efeito de conseguir a aquisição de casa própria, dela se desliga e se desvincula uma vez consumada a construção" [09].
No mesmo sentido, outro julgado proferido pelo mesmo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo simplesmente declara a impossibilidade de uma cooperativa tradicional se dedicar à construção e venda de imóveis na planta. Extrai-se do acórdão o seguinte trecho: "não se trata, portanto, de relação de cooperativismo propriamente dita, mas de incorporação e construção de empreendimento imobiliário sob a constituição de cooperativa com o fim de evitar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e demais disposições que regem a matéria ligada à rescisão do contrato imobiliário e suas consequências. O regime jurídico das cooperativas tradicionais, tal como o seu modo de operar, foge por completo das características formadas para a construção e venda de imóveis em construção" [10].
Portanto, via de regra, pode-se afirmar que as cooperativas atuam como verdadeiras sociedades empresárias, que comercializam unidades imobiliárias no mercado, assemelhando-se a qualquer empresa incorporadora e, portanto, passíveis de terem suas controvérsias com os ditos associados resolvidas por meio da aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor.
O Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, Dr. Luciano de Faria Brasil, em artigo dedicado ao estudo das cooperativas habitacionais no país, classifica a distorção no funcionamento de tais entidades como desvio de finalidade, subdividindo-a em duas modalidades: "(a) o desvio de finalidade ocorrido em uma cooperativa habitacional regularmente constituída, que ocorre em razão da atuação ilícita ou imprópria de seus dirigentes (e.g., práticas criminosas, como a promoção de loteamentos irregulares ou clandestinos; ou práticas político-eleitorais, como a organização de invasões de terras; (b) o desvio de finalidade inscrito no próprio estatuto social, que define objetivos societários estranhos à própria noção de cooperativa habitacional – como, por exemplo, objetivos empresariais, voltados à obtenção de lucro pela produção e circulação de bens ligados ao setor habitacional" [11].
Para este estudo nos importa a análise das cooperativas cujos objetivos sociais desvirtuam a própria natureza jurídica da cooperativa, na medida em que sua finalidade precípua nada mais é do que a obtenção de lucro com a atividade de incorporação. Modificações drásticas na atual Lei das Cooperativas, ou mesmo a adoção de uma legislação específica poderiam coibir a criação deste tipo de sociedade.
Interessante observar que os julgados envolvendo as cooperativas habitacionais revelam o caráter abusivo das contratações impostas por tais entidades e a forma injusta como estas associações são dirigidas, apenas no interesse de uma pequena minoria que absorve o lucro da atividade empresarial, em total colisão com todos os princípios que norteiam a atividade cooperativista. Nesse sentido, a maioria dos julgados versa sobre os seguintes temas: (a) retenção de grande parte dos valores pagos pelo associado, na hipótese de desistência na compra do imóvel; (b) imposição de devolução dos valores pagos pelo cooperado de forma diluída e extremamente penosa para os mesmos casos de desistência; (c) devolução dos valores pagos por ex-associado condicionada ao ingresso de outro associado; (d) cobrança de resíduo após a entrega da unidade, para supostamente cobrir saldo de obra, ainda que os valores cobrados não tenham sequer sido objeto de deliberação em assembleia geral; (e) devolução de quantias pagas pelos cooperados desistentes apenas após aprovação assemblear, dentre outras inúmeras discussões que põem em evidência o caráter abusivo da contração imposta pela grande maioria das cooperativas habitacionais.
Em resumo, a jurisprudência relativa ao tema da compra e venda de imóvel por meio de cooperativa habitacional é uníssona no seguinte sentido: aplica-se o Código de Defesa do Consumidor a tal relação, na medida em que o modelo de cooperativismo tradicional não se coaduna com a atividade de construção e venda de imóvel na planta. Desse modo, são nulas as previsões que retém mais do que o patamar estabelecido entre 10% (dez por cento) a 20% (vinte por cento) dos valores pagos pelo associado que desiste da compra, sendo certo que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já declarou legítima a pretensão do adquirente de imóvel de desistir do negócio, caso não tenha mais condições econômicas de arcar com os custos da contratação [12].
Além disso, as somas pagas pelo cooperado desistente, tal como numa relação consumerista tradicional, devem ser restituídas de uma só vez e jamais poderiam estar condicionadas ao ingresso de um novo associado [13]. Mas não é só: a cobrança de resíduo após a entrega das chaves é indevida, notadamente quando esta cobrança sequer foi discutida em assembleia geral convocada para tal finalidade, sendo irrelevante tratar-se de regime de construção "a preço de custo" [14].
A percepção de inúmeras e repetitivas demandas sobre o mesmo tema, sempre com exposição das mesmas práticas descabidas por sociedades empresariais que se denominam cooperativas, é que conduziram o Desembargador paulista Ênio Santerelli Zuliani a declarar que, salvo raríssimas exceções, a experiência das cooperativas habitacionais no Brasil é uma "mal sucedida experiência".