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Artigo 89 da Lei nº 8.666/93: crime material ou formal?

Necessidade de se observar a orientação traçada pelas Turmas de Direito Penal do Superior Tribunal de Justiça

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RESUMO

Este estudo aborda a divergência existente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sobre o caráter material ou formal do crime de dispensa ou inexigibilidade indevida de licitação, inscrito no art. 89, da Lei de Licitações (Lei n° 8.666/93). Defende a natureza formal, dispensando a ocorrência de resultado naturalístico (dano) para consumação do ilícito, pela própria essência do delito, que tutela o arcabouço principiológico da Administração Pública. Ademais, salienta a necessidade de, principalmente, nas hipóteses em que não se está diante de réu com foro por prerrogativa de função, ser observada a jurisprudência da 5ª e 6ª Turmas do STJ, ao invés da que é ostentada pela Corte Especial, pois aquelas são os órgãos competentes para apreciar eventuais habeas corpus e Recursos Especiais.

Palavras-chave: Lei de licitações. Artigo 89. Crime formal.


1 INTRODUÇÃO

O presente estudo visa à abordagem de diretrizes gerais sobre a natureza formal do crime previsto no art. 89 da Lei de Licitação Pública (Lei n° 8.666/93), que elenca tipo penal de comum ocorrência no âmbito da Administração Pública brasileira, em especial nos pequenos municípios brasileiros, incriminando a conduta de "Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade".

Muito se debate no âmbito jurisprudencial sobre o caráter formal ou material do referido crime, ou seja, se é exigida ou não a ocorrência de dano específico ao erário público. [01] No âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, já se decidiu pelo segundo posicionamento, consoante a ementa transcrita a seguir:

PROCESSO PENAL. DISPENSA DE LICITAÇÃO. CRIME TIPIFICADO NO ART. 89, CAPUT, DA LEI 8.666/93. AUSÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO PÚBLICO E DE DOLO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. O entendimento dominante no Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o crime tipificado no art. 89, caput, da Lei nº 8.666, de 1993, somente é punível quando produz resultado danoso ao erário (TJRN, APO n° 2006.004967-7, Rel. Juiz Convocado Nilson Cavalcanti, Tribunal Pleno, julgamento 20/08/2008). [02] (Grifo nosso).

O posicionamento sustentado pelo precedente com ementa supracitada baseou-se na jurisprudência construída por meio de uma série de decisões da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), contudo, constitui óbice deveras danoso à atuação do Ministério Público na seara criminal, em especial, no concernente ao combate à corrupção.

Conforme será demonstrado, esse entendimento não deve prevalecer.


2 A PRESCINDIBILIDADE DE OCORRÊNCIA DO DANO PARA CONFIGURAÇÃO DO ILÍCITO PREVISTO NO ART. 89 DA LEI 8.666/93

Alguns juízos de primeiro e segundo grau costumam absolver os acusados do ilícito tipificado no art. 89 da Lei de Licitações sob a fundamentação que este se trata de crime material, cuja verificação de efetivo dano aos cofres públicos é essencial para consumação.

As decisões absolutórias, geralmente, fundamentam-se em precedentes emanados da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que, conforme será exposto, não devem ser aplicados ao presente contexto, principalmente, em se tratando de acusados que não detêm foro por prerrogativa de função.

Exemplifique-se com a Apn nº 261/PB, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 05.12.2005, muito invocada nas decisões absolutórias. Trata-se de Ação Penal Originária ajuizada no Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista a prerrogativa de foro por parte de alguns acusados (Desembargadores de Tribunal de Justiça). O feito foi julgado pela Corte Especial daquele Tribunal, por tratar-se do órgão responsável pelo julgamento das ações penais originárias, conforme art. 11, I, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça (RISTJ). Na ocasião, consignou-se expressamente que "É penalmente irrelevante a conduta formal de alguém que desatende as [sic] formalidades da licitação, quando não há conseqüência patrimonial para o órgão público", reputando cogente, portanto, a existência de efeitos materiais da conduta para a consumação do delito inscrito no art. 89 da Lei n° 8.666/93.

No mesmo sentido, a Apn n° 330/SP, entendendo que "As ações criminais, que envolvem o cometimento de crimes previstos na Lei de Licitações, exigem, para a configuração do delito, a evidenciação do dolo específico e do dano ao erário, para que consubstanciem a justa causa para a condenação penal".

Inobstante a jurisprudência firmada na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, a e Turmas do mesmo sodalício, responsáveis pela apreciação dos feitos criminais, em posicionamento mais recente, passaram a entender de forma diversa. Sustentam os referidos órgãos que, o crime previsto no art. 89 da Lei n° 8.666/93, trata-se de um ilícito de mera conduta, não exigindo qualquer resultado naturalístico para a consumação (como a lesão ao erário).

Nesse sentido, pontua a 5ª Turma do STJ, em feitos decididos à unanimidade:

[...]

2. O tipo penal descrito no art. 89 da Lei de Licitações busca proteger uma série variada de bens jurídicos além do patrimônio público, tais como a moralidade administrativa, a legalidade, a impessoalidade e, também, o respeito ao direito subjetivo dos licitantes ao procedimento formal previsto em lei.

3. Já decidiu a 3a. Seção desta Corte que o crime se perfaz com a mera dispensa ou afirmação de que a licitação é inexigível fora das hipóteses previstas em lei, tendo o agente a consciência dessa circunstância; isto é não se exige qualquer resultado naturalístico para a sua consumação (efetivo prejuízo ao erário, por exemplo) (HC 94.720/PE, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 18.08.2008 e 113.067/PE, Rel. Min. OG FERNANDES, Dje 10.11.2008).

[...]

(REsp 1073676/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 12/04/2010) [03]

Igualmente, a 6ª Turma do STJ, também, por unanimidade:

[...]

3. O tipo previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93 é delito de mera conduta, não exige dolo específico, mas apenas o genérico, representado, portanto, pela vontade de contratar sem licitação, quando a lei expressamente prevê a realização do certame. Independe, assim, de qualquer resultado naturalístico, como por exemplo, prejuízo ao erário.

[...]

(HC 113067/PE, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 10/11/2008) [04]

Observa-se que, pelos excertos supra, ambas as turmas de direito penal do Superior Tribunal de Justiça reconhecem ser penalmente relevante a conduta de alguém que desatende às formalidades da licitação, mesmo quando não há consequência patrimonial para o órgão público.

Diante da patente divergência no Tribunal Superior, qual o entendimento a ser seguido pelas instâncias inferiores?

Destaque-se que o ilícito do art. 89 da Lei nº 8.666/93, ao incriminar a conduta do administrador público que se utiliza de dispensa ou inexigibilidade em desobediência às hipóteses permissivas ou ao procedimento pertinente, não faz qualquer alusão à necessidade de dano para a consumação do ilícito.

Ademais, a distinção entre crimes formais e materiais tem uma razão de ser lógica: a caracterização de um ou outro se dará se a conduta for, por si só, plenamente capaz de produzir lesão ao bem jurídico tutelado pelo tipo, ou se depende do resultado naturalístico para que haja uma ofensa ao bem jurídico protegido e que seja tutelável pelo direito penal.

O art. 89, caput, da Lei de Licitações direciona sua proteção às regras e aos princípios inerentes à Administração Pública, como a legalidade, supremacia do interesse público, moralidade e eficiência. A desobediência a tais preceitos pode, decerto, não implicar em um prejuízo financeiro, economicamente mensurável. Inegável, em outra face, o prejuízo aos bons valores da atuação administrativa. A incriminação prevista nesse artigo, suso, não consubstancia norma que visa a proteger o erário estatal, mas abrangente da tutela a um bem maior: a probidade do administrador. [05]

Por tais motivos, descabida a afirmação de que a ausência de resultado naturalístico descaracterizaria o ilícito, sob a ótica da diferenciação proposta pela doutrina para os conceitos formal e material do crime. [06] Deveras, apesar de inexistente o resultado naturalístico do crime, pode-se afirmar que a mera prática da conduta tipificada art. 89, caput, da Lei n° 8.666/93 é apta a violar todos os valores referidos no parágrafo anterior, tão caros à Administração Pública e, portanto, ao corpo social. [07]

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Tão insustentável é o posicionamento contrário que basta observar a grande dificuldade em aferir um possível prejuízo econômico de uma dispensa ou inexigibilidade indevida. Nessa situação, como se procederia?

Em não tendo o subsídio técnico necessário para tal análise, o magistrado, a requerimento do parquet, nomearia um perito. Este deveria, em sua análise para aferir o prejuízo ocorrido, fazer uma projeção de qual seria o valor do contrato para a Administração Pública, caso tivesse sido observado todo o procedimento de dispensa e inexigibilidade como proposto por lei.

Na maioria das vezes, principalmente nos pequenos municípios, o ilícito se dá pelo uso de uma das hipóteses previstas nos artigos 24 ou 25, quando não ocorrentes de fato, significando a inexistência de competição no certame. Dessarte, nessas situações, terá o perito que supor quais as empresas participariam do certame, quais seriam desabilitadas, qual o valor das propostas, bem como qual sairia vencedora e firmaria o contrato. Desde logo, observa-se que se trata de uma prova de difícil (se não impossível) produção para a acusação.

Não bastasse toda essa argumentação proposta, há ainda uma questão jurisprudencial prática a ser observada. Na hipótese de feitos nos quais os agentes não possuam foro por prerrogativa de função, caso haja possível provocação do STJ, não seria o feito julgado pela Corte Especial. Os possíveis habeas corpus e Recursos Especiais manejados serão julgados pela 5ª ou 6ª Turma. O possível Embargo de Divergência entre as turmas seria encaminhado para a Terceira Seção. Tudo isso conforme as regras de competências insculpidas nos artigos 9, §3°, I; 12, VII e IX; 13, I, a, IV, todos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

Portanto, descabe acolher o posicionamento perfilhado pela Corte Especial, principalmente, quando se tratar de feitos nos quais aquele órgão sequer se manifestará. Deve-se observar, sim, a jurisprudência da 5ª e 6ª Turmas, pois essas é que serão eventualmente provocadas para possível reforma da decisão. Ou seja: deve-se reconhecer que o ilícito do art. 89, caput, independe de resultado naturalístico (lesão ao erário). Para maior aprofundamento sobre o tema, conferir julgados proferidos por diversos Tribunais de Justiça, dentre os quais: TJPR, Apel. Crim. 0539062-5, Rel.: Juíza Lilian Romero, 2ª Câmara Criminal, julg. 03/09/2009; TJSP, Apel. Crim. 0009092-30.2004.8.26.0400, Rel. Des. Adriane Bandeira Pereira, 15ª Câmara Criminal, julg. 20/01/2011.


3 CONCLUSÃO

Diante dos argumentos traçados sobre a natureza formal do ilícito previsto no art. 89, da Lei 8.666/93, que dispensa a ocorrência de dano ao erário para a sua consumação, cremos ser esse o melhor posicionamento, haja vista ser mais consentâneo com a natureza do tipo, que visa a tutelar, em última instância, a obediência à probidade e aos princípios da Administração Pública.

Esse não é, contudo, o único motivo para que os magistrados deixem de exigir a comprovação efetiva do dano à configuração do ato delitivo, pois que há de se considerar que tal prova é de quase impossível produção, o que, de certa forma, inviabiliza o mister do parquet.

Dessarte, considerar o crime sub oculi de mera conduta é julgar conforme o entendimento da 5ª e 6ª Turmas do Tribunal da Cidadania. Não devendo, por isso, prevalecer a jurisprudência da Corte Especial desse Tribunal como guia absoluto para tais casos, vez que não se trata de órgão que não apreciará o ilícito em estudo, quando praticado por agentes sem foro por prerrogativas de função.


REFERÊNCIAS

BENTHIEN, Cleverson Tuoto. O poder punitivo frente ao estado democrático de direito. 2008. 63 f. Dissertação (Especialista) - Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná - Fempar, Curitiba, 2009. Disponível em: <http://www.femparpr.org.br/monografias/upload_monografias/CLEVERSON%20TUOTO%20BENTHIEN.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2011.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal das licitações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação. 6. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010.

LOPES, Cláudio Ribeiro. Notas sobre o conceito de delito na doutrina brasileira. Revista Discurso Jurídico, Campo Mourão, v. 4, n. 2, p.72-90, ago./dez. 2008. Disponível em: <http://revista.grupointegrado.br/revista/index.php/discursojuridico/article/download/282/134>. Acesso em: 17 mar. 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Especiais. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006.


Notas

  1. Crimes formais, também chamados delitos de atividade, são aqueles que se contentam com a mera ação humana, esgotando a figura do tipo, para consumação, ainda que não ocorra nenhum dano. Por outro lado, denominam-se materiais, causais, ou de resultado, os ilícitos que necessariamente demandam para consumação um resultado naturalístico (NUCCI, 2006).
  2. Decidindo no mesmo sentido, em outros Tribunais: TJGO, AC 200903931502, Rel. Des. Huygens Bandeira De Melo, julg. 13/05/2010; TJMS, Apel. Crim. 2009.016893-8, Rel. Des. João Carlos Brandes Garcia, julg. 26/11/2009.
  3. No mesmo sentido, na 5ª Turma: REsp 1058261/RS, DJe 01/02/2011; HC 118.292/DF, DJe 06/12/2010; REsp 1185750/MG, DJe 22/11/2010; HC 122011/PR, DJe 28/06/2010.
  4. No mesmo sentido, na 6ª Turma: HC 171.152/SP, DJe 11/10/2010
  5. Em sentido parecido, as palavras de Costa Júnior (2004, p. 20), ao asseverar que o ilícito em análise é crime "é de perigo abstrato. Para aperfeiçoar-se, não se faz necessário que a Administração Pública venha a padecer algum prejuízo concreto. Se este advier, sobrevirá a sanção civil prevista no art. 25, §2º".
  6. O conceito formal do crime, segundo dispõe Aníbal Bruno, é "todo fato que a lei proíbe sob a ameaça de uma pena", enquanto o conceito material do crime seria "um ato que ofende ou ameaça um bem ou interesse jurídico julgado fundamental para a coexistência social e por isso protegido pelo Estado sob a ameaça de uma pena" (apud LOPES, 2008, p. 76). Não se deve confundir tais conceitos com a classificação referente aos crimes formais e materiais, concernente à produção de resultado naturalístico pela conduta criminosa.
  7. Verifica-se, ademais, suficiente a criminalização da conduta, se considerada a concepção de Crime Natural, proposta por Garofalo, consubstanciada "na violação daquela parte do senso moral que consiste nos sentimentos altruístas de piedade e probidade, na medida média em que existem na comunidade" (FRAGOSO apud BETHIEN, 2008, p. 26).
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Sobre o autor
Paulo Henrique Figueredo de Araújo

Bacharel e Pós-Graduando em Direito Tributário (latu sensu) pela UFRN. Assistente Ministerial responsável pelo assessoramento do Centro de Apoio às Promotoria do Patrimônio Público, Sonegação Fiscal e Fundações do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Paulo Henrique Figueredo. Artigo 89 da Lei nº 8.666/93: crime material ou formal?: Necessidade de se observar a orientação traçada pelas Turmas de Direito Penal do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2968, 17 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19776. Acesso em: 22 dez. 2024.

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