1.Introdução
Os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, como aflitivamente percebido por milhares de aposentados, não podem ultrapassar o teto definido no texto constitucional. Este marco limítrofe superior, por sua vez, é reajustado, periodicamente, a fim de manter o poder aquisitivo da renda dos aposentados e dos pensionistas.
Nos anos de 1998 e de 2003, mediante Emenda Constitucional, os limites foram alterados de forma extraordinária, o que gerou a controvérsia sobre a amplitude da aplicabilidade dos novos tetos. O Instituto Nacional do Seguro Social, logo após a alteração, editou norma interna (artigo 6.º da Portaria 4.883/98) na qual materializava seu entendimento acerca do problema: os novos limites não afetariam benefícios concedidos anteriormente.
Esse posicionamento - ainda que baseado em equação aritmética demonstrada pela autarquia - foi contestado judicialmente em diversas ações que impugnavam a constitucionalidade da norma administrativa. O STF, no princípio do ano de 2011, pronunciou-se, finalmente, sobre a questão. O debate teórico e interpretativo, ocorrido na mais alta Corte do país, é o objeto deste artigo.
2.O conflito doutrinário e hermenêutico
2.1. As ações revisionais, a posição do INSS e o voto dissidente do Ministro Dias Toffoli
Conforme decisão do STF, proferida no Recurso Extraordinário 564.354/SE, os trabalhadores que se aposentaram, entre os anos de 1986 e 2003, podem requerer, por meio de seus advogados, a revisão judicial de suas rendas mensais. Esta deve ser proposta na justiça federal, em razão da natureza jurídica da demandada, e poderá conter os pedidos de aumento do benefício periódico e de pagamento retroativo dos valores não recebidos nos últimos anos.
As ações revisionais previdenciárias, ainda que apresentem aspectos múltiplos, são fundamentadas em direitos individuais não homogêneos (HORVATH JÙNIOR, p.618), originários do princípio constitucional da irredutibilidade das prestações previdenciárias (inciso IV do parágrafo único do art. 194 da CF):
Art. 194 - A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único - Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
(grifos do autor)
Como explica Horvath Júnior, esse princípio concerne ao valor nominal e ao valor real da renda paga pelo INSS (p.94). Ele deve ser observado no momento da concessão do benefício e por ocasião de seus reajustes. Os valores recebidos pelos aposentados, por isso, não podem sofrer qualquer depreciação, ainda que esta seja indireta, relativa e superveniente, como no caso da instituição discriminatória de novos tetos para renda de alguns segurados.
Embora a doutrina classifique as ações revisionais em apenas duas espécies: revisional da renda mensal inicial e revisional dos reajustes dos benefícios (HORVATH JÚNIOR, p. 618), o objeto deste artigo, como já evidenciado, é diverso, ainda que seja concernente à ação revisional de aposentadoria. Em razão de suas especificidades, a adequação do benefício aos novos tetos constitucionais constitui pedido peculiar, pois não objetiva rever o montante primário que constitui renda mensal inicial. Apesar de se assemelhar à revisão do segundo tipo, não se refere, de igual maneira, ao reajuste da renda mensal do aposentado, mesmo que esta seja, reflexivamente, modificada. Essa mudança é causada pela simples declaração de vigência de novo limite constitucional. Por isso, não ocorre, como se verifica nas revisionais ordinárias de reajuste dos benefícios, o pedido de aplicação de índice corretivo da renda. Se esta é aumentada, a causa do incremento é o mero deslocamento do limite superior de renda que reduzia o montante do benefício.
A possibilidade de revisão, em conformidade com os tetos constitucionais, decorre dos aumentos extraordinários dos valores máximos da renda mensal dos aposentados. Segundo decisão do STF, os novos tetos, estabelecidos nas Emendas Constitucionais 20/98 (art. 14) e 41/03 (art. 5.º), devem ser imediatamente aplicados, inclusive àqueles que recebiam benefícios reduzidos por regra anterior. A decisão da Corte Constitucional pacifica o debate acerca da natureza jurídica do ato de concessão do benefício. Ainda que, durante o julgamento, os componentes do Tribunal tenham-se dividido, de maneira desigual, em duas posições divergentes, houve a prevalência da concepção segundo a qual os tetos constitucionais são imediatamente aplicáveis.
A posição defendida pelo INSS e pelo Ministro Dias Toffoli deve ser compreendida com fulcro no critério específico de cálculo do benefício, adotado pela entidade autárquica. Deve-se, além disso, considerar a controvérsia acerca da natureza jurídica da aposentadoria, o que é fundamental para o desenvolvimento da tese do ato jurídico perfeito, defendida pelos procuradores do Instituto.
A renda atual do aposentado é calculada mediante procedimento aritmético simples, no qual os índices de reajuste, posteriores à Data de Início do Benefício (DIB), são multiplicados, de forma cumulativa, pela Renda Mensal Inicial (RMI). Após a primeira determinação da RMI, a evolução do benefício pode ser inferida com base na observância de dois critérios distintos cujos resultados deveriam, em teoria, ser idênticos: a) no primeiro, os índices de reajuste são aplicados à renda limitada pelo teto, b) no segundo, inversamente, após reajuste da renda real, o produto é reduzido conforme o teto.
Por causa dos novos limites constitucionais, a aplicação do duplo critério no cálculo do benefício passou a resultar em valores diferentes, discrepância que não ocorria antes das Emendas. O uso do duplo critério, conseqüentemente, não acarretava prejuízos aos beneficiários e, por isso, não afrontava o parágrafo primeiro do art. 201 da CF.
A diferença entre os critérios, como é perceptível, está no momento em que se deve aplicar o redutor normativo. Por meio do primeiro critério, o índice de reajuste é multiplicado pelo valor do benefício apenas depois da limitação pelo teto; o multiplicador, por isso, incide sobre quantia previamente reduzida, conforme disposição contida no art. 33 da Lei 8.213/91. Mediante o segundo critério, por sua vez, os reajustes são aplicados à renda real, montante que seria pago se não houvesse o limite máximo previsto no dispositivo da Lei 8.213/91; o limitador incide, por conseqüência, somente em fase posterior da operação. O redutor, assim, é aplicado apenas após o recálculo da renda.
Como é possível deduzir, o INSS adota o primeiro critério, prática que, além de ser prejudicial à parcela significativa dos segurados, afronta a jurisprudência predominante nos tribunais. No procedimento decorrente do primeiro critério, a renda real, depois de limitada uma vez pelo teto, é desprezada para cálculos futuros, pois a operação redutora e seu valor resultante constituiriam ato jurídico perfeito, cujo desfazimento é legalmente inadmissível.
No julgamento do Recurso Extraordinário 564.354/SE, essa teoria foi adotada, isoladamente, pelo Ministro Dias Toffoli, posição divergente que gerou discussão acerca da natureza jurídica e da amplitude real do ato de concessão do benefício. No raciocínio desenvolvido por Toffoli, a concessão de aposentadoria - ato que abarcaria o cálculo do valor primário e do montante resultante da aplicação do redutor – seria ato juridicamente perfeito, ainda que originasse prestações continuadas e reajustáveis no tempo.
Dias Toffoli, com fundamento na decisão de primeiro grau, explica sua posição da seguinte maneira: "a premissa da minha solução para o caso concreto é dar provimento ao recurso na parte da ofensa ao inciso XXXVI do art. 5.º, porque, no meu entender, há ofensa ao ato juridicamente perfeito que foi a fórmula de cálculo". No entendimento do Ministro, dessa forma, o fato jurídico sob análise é a concessão do benefício, ato administrativo único e vinculado que fixa, por meio de fórmula imutável, o valor inicial da remuneração do aposentado. Sobre esta, a qual não ultrapassa o teto constitucional, incidem os índices de reajuste, multiplicadores que não alteram o cálculo primário, mediante o qual foi quantificado o benefício original. O magistrado acrescenta ainda que "a concessão do benefício não é ato continuado. A continuidade está presente apenas no pagamento mensal, mas o valor do pagamento foi definido em ato único e não continuado. Uma lei posterior só o altera (a fórmula de cálculo do valor à época da concessão do benefício) caso contenha previsão expressa de aplicação a situações fáticas pretéritas, circunstância inocorrente na hipótese".
Se a fixação do valor inicial do benefício constitui ato jurídico perfeito, a renda reduzida, por sua vez, torna-se único parâmetro para futuros reajustes e para eventuais majorações extraordinárias do limite máximo. No entendimento do Instituto, por conseqüência, no momento das alterações constitucionais, a renda vigente de nenhum aposentado poderia ser afetada, porque nenhum deles auferia renda superior ao novo teto. Em 1998, por exemplo, o aposentado recebia, no máximo, R$ 1.081,50, quantia inferior aos R$ 1.200,00, previstos no incipiente dispositivo limitante. Na perspectiva do INSS, portanto, o conteúdo quantitativo da norma constitucional, por si só, excluiria todos os aposentados que recebiam benefício no período, pois estes, em razão do teto revogado, percebiam renda aquém do novo limite.
2.3. A posição majoritária do STF
Na concepção da maioria dos Ministros do STF, diferentemente, o pagamento dos benefícios da aposentadoria constitui ato jurídico continuado, efetuado em prestações sucessivas. A perfeição do ato administrativo de concessão, por sua vez, atributo que não é contestado, não é violada pela norma constitucional que estabelece novo teto, uma vez que este é aplicável apenas ao rendimento atual dos segurados. Dessa forma, inexiste retroatividade, porquanto o fato pretérito de concessão do benefício remanesce intocado. Nesse sentido, a Ministra Relatora menciona o princípio suscitado pelos patronos da autarquia: "extrai-se daqueles julgados, citados à guisa de exemplo, afirmar este Supremo Tribunal não ser possível a lei posterior alcançar atos jurídicos efetivados antes de sua vigência, sob pena de ofensa ao princípio do ato jurídico perfeito" e, depois, a julgadora pondera: "todavia, tem-se, na espécie em foco, situação distinta. A pretensão posta na lide respeita à aplicação imediata ou não do novo teto previdenciário trazido pela Emenda Constitucional n.º 20/98, e não sua aplicação retroativa".
A aplicação dos novos limites, além de imediata, deve, por conseqüência lógica, levar em conta os salários de contribuição que foram utilizados para os cálculos iniciais do benefício, o que significa, por conseqüência, considerar os valores que seriam pagos caso não houvesse redução precoce pelo teto. Nas palavras da Ministra Carmen Lúcia: "conheço do presente recurso e nego provimento a ele, por correta a conclusão de ser possível a aplicação imediata do art. 14 da Emenda Constitucional n.º 20/1998 e do art. 5.º da Emenda Constitucional n.º 41/2003 àqueles que percebem seus benefícios com base em limitador anterior, levando-se em conta os salários de contribuição que foram utilizados para os cálculos iniciais". Obviamente, se os salários de contribuição originais serão a base de cálculo, considerar-se-á o valor bruto do benefício, quantia que precede à aplicação do redutor.
O entendimento adotado pelo INSS e corroborado pelo Ministro Dias Toffoli, além de constituir raciocínio bizantino que distorce o conceito de benefício previdenciário, é essencialmente problemático, pois ignora o valor real da renda, o qual seria pago caso não houvesse limitante normativo. O Ministro Cezar Peluso explicou o funcionamento da redução pelo teto, objeto central da controvérsia jurídica, por meio da metáfora do elástico: "Se Vossas Excelências me permitem, vou usar até de uma figura muito apropriada: é como se fosse um elástico, no instante em que o redutor é solto, o elástico vai até onde pode ir". Por isso, segundo o magistrado, a renda do aposentado, se limitada conforme o teto, é, por sua natureza, inercialmente alterável. Na proporção em que se solta o redutor, pode ser distendida até encontrar outro limite. No caso em análise, este seria o novo teto instituído pela Emenda. Os aposentados cujas rendas foram reduzidas com fundamento no marco limitante anterior são, portanto, imediatamente beneficiados pela instituição de novo teto.
Conforme essa interpretação vitoriosa, após a aplicação do redutor, subsiste, ainda que em estado latente, o valor da renda que seria efetivado caso não houvesse limitação legal. Essa quantia, por conseguinte, permanece na forma de renda potencial (existente, porém não auferida); a majoração da barreira restritiva possibilita o desenvolvimento dessa renda artificialmente limitada, o que resulta na conseqüente elevação das prestações efetivas percebidas pelo aposentado.
3.Conclusão
No que concerne ao aspecto prático, infere-se, da decisão paradigmática do STF, que os legitimados à revisão estão em duas situações bastante similares. No primeiro caso, o segurado aposentou-se, entre janeiro de 1986 e dezembro de 1998, com o teto de R$ 1.081,50; no segundo, o segurado aposentou-se, no período entre dezembro de 1998 e novembro de 2003, sob o teto de 1.200,00, valor que foi reajustado, de forma progressiva, até alcançar a quantia de R$ 1.869,34, no período imediatamente anterior à EC 41.
A prática temerária e inconstitucional da autarquia, em evidente desacordo com o Poder Judiciário, possibilita o pedido de correção imediata dos benefícios. A revisão destes pode ser requerida judicial ou administrativamente. A quantia concedida mediante via administrativa, no entanto, não corresponde, em regra, ao valor ao qual o segurado tem direito. Por meio da ação judicial, por sua vez, obtém-se o valor correto, reajustado conforme a inflação, acrescido de juros e pago, no caso do montante pretérito, em parcela única. A decisão exemplar do STF, ainda que tenha efeito inter partes, pode ser usada como reforço qualificado à tese dos advogados que reivindicam a aplicação imediata dos novos tetos.
Bibliografia:
CELSO NETO, João. Detalhes do julgamento sobre a recomposição pelo teto. Para tentar entender melhor a decisão. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2791, 21 fev. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/18547>. Acesso em: 6 nov. 2011.
HORVATH JÚNIOR, Miguel. Direito Previdenciário. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos. Emenda Constitucional nº 20/98: aplicabilidade do novo limitador de pagamento previdenciário aos benefícios concedidos em data anterior a 16/12/1998. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1386, 18 abr. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9753>. Acesso em: 7 nov. 2011.
Documentos:
Acórdão do Recurso Extraordinário 564.354/Sergipe (disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=619004)
Constituição Federal da República Federativa do Brasil (disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm)
Lei 8213/91 (disponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm)
Parecer técnico do Núcleo de Contadoria da Justiça Federal – RS (disponível em http://www.jfrs.jus.br/upload/Contadoria/parecer_acoes_tetos_emendas_versao_19-04.pdf)