4. DO ANSEIO LÓGICO-JURÍDICO PELA APLICAÇÃO DE UMA NORMA SUPREMA DA ÁREA DA SAÚDE SUPLEMENTAR
O ensaio que já encaminha para suas conclusões expressou claramente que pretende afastar a lógica empírica de Platão, muito bem esboçada na sua obra prima “A República”[9] e também estampada no ceticismo e na profunda observação da realidade preconizada por René Descartes em seu livro “Discurso do Método”, que se tornou base da filosofia moderna.
O que se busca é resgatar uma lógica classificada como a priori pelo mestre Immanuel Kant em “Crítica da Razão Pura”, cuja plenitude, em nível nacional, encontra-se em Lourival Vilanova[10], que muito bem considera a influência certa e inerente de aspectos sociais e políticos no seio da comunidade jurídica.
A idéia, em apertada síntese, esboça que todo e qualquer elemento que defina o Direito como norma universal deve considerar apenas seu aspecto abstrato, isto é, sem adentrar em casos específicos e por demais esmiuçados. É que, toda vez que o aplicador/criador do Direito tem em sua mente um caso concreto, este inexoravelmente irá levar em consideração fatores morais, sociais, políticos, econômicos e éticos que, em outro momento histórico, estarão ultrapassados.
Por isso que na obra “Escritos jurídicos e filosófico”, Lourival Vilanova (2003, p. 22) enuncia que a lógica seria a única capaz de fornecer ao direito uma permanência no tempo, mesmo diante da multiplicidade dos acontecimentos, e ressalta ainda a necessidade deste conceito trazer apenas seu aspecto formal, abstraindo-se o seu conteúdo e valores, visto que estes carregam em si a contingência variável.
“A Luta pelo Direito”, naquele sentido completo e ideológico de Rudolf Von Inhering, quando almejado com base nas Constituições, fica limitado ao espaço histórico e econômico em que a promulgou. Construída sob bases empíricas, as normas máximes devem ser consideradas com ceticismo e prudência. Aliás, investido no “Discurso do Método” de René Descartes, a Carta Magna deve ser submetida a uma série de questionamentos, inclusive de ordem da efetividade de seus dispositivos.
Isso porque, como muito bem alinhava Miguel Reale (1996), uma norma somente atinge sua plenitude quando adequado ao seu contexto social. Mas se a norma está adequada ao seu contexto social, não estaria ela sempre construída sobre pilares empíricos?
A resposta é negativa. O que se pretende alertar aqui é que uma norma a priori, sem a interferência das cominações diárias do seu contexto, pode ser efetiva em qualquer contexto social. Assim é que surge o cerne deste trabalho: a CF 1988, quando regulou a saúde suplementar, consoante artigo 199 e seguintes, estava restrita ao contexto lá vigente ou teve seu esboço em estruturas superiores e analíticas?
Sem mais rodeios, a resposta é afirmativa. É certo que a Constituição regulou o setor de saúde suplementar de acordo com a realidade vivenciada nos idos de 1980. Lá, naquele setor histórico, estava a saúde pública comprometida pelas décadas de abandono pelo poder público, que exigia que iniciativa particular adentrasse neste caos para fins de suplementar o atendimento à saúde. Como se vê, usa-se o termo suplementar, que possui significado diametralmente oposto a arcar com o ônus estatal de prestar atenção à saúde.
Surgem assim as operadoras de plano de saúde privadas com base em uma norma empírica, adequada ao contexto, mas que passa a regular o setor de saúde suplementar de modo geral e abstrato, a priori: “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, que poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”.
Desta forma, possui sim a saúde de uma premissa lógica geral, inerte, imparcial e abstrata capaz de abranger os casos que o envolvem. A saúde suplementar, nas disposições Constituição, está inculcada de anseios morais e econômicos que permitem que o Judiciário atue com a imparcialidade dos aplicadores do Direito.
Todavia, por que a balança da justiça, neste tópico, pende muito mais em prol dos consumidores, indicando que a lógica está, em muito, distante?
Porque se acrescentou à Constituição de 1988 o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9.656/1998, que regulou o setor da saúde suplementar e criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Estes diplomas infraconstitucionais, forjados sob anseios sociais, atuam de forma imparcial em defesa dos usuários do setor, e ainda criou um ente estatal para fiscalizar e regular o setor. Não exaurientes os direitos do consumidor, bem como a dignidade da pessoa humana, surgiu toda uma onda de proteção ao usuário de plano de saúde suplementar.
Diante do exposto, como retornar a Constituição da República de 1988 efetivamente uma fonte universal do Direito pátrio, sacramentando uma norma geral e imparcial, como determina os pilares do Estado Democrático de Direito?
4.1 – O ARTIGO 199 DA CF COMO NORMA GERAL E ABSTRATA
É impossível dissociar a Constituição de sua realidade social. Aliás, sua validade e eficácia depende desta sincronia. Daí que, após tudo o que já se expôs, é possível concluir que sim, o artigo 199 da Constituição pode ser considerado uma norma geral e abstrata capaz de delinear o setor de saúde suplementar no país.
Expor que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, sendo que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos, preconiza, sem dúvida, consubstancia-se em uma norma geral e abstrata, capaz de prolongar-se a vários ambientes sociais.
Adotado pelo Título VIII, nominado de “Ordem Social”, vem inculcado dentro de diversas premissas que têm como fator fundamental a ordem social com base no primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
Ora, ao ditar-se que a norma geral e abstrata[11] é aquela que regula de forma imparcial, com congruência lógica e ampla uma situação fática, sem influência de matizes sociais ou políticas, em comparação ao fato de que o artigo 199 da CF está adaptado a ordem social vigente, é certo que sua concepção possui raiz analítica, ainda que possa ter origem empírica.
A razoabilidade, no sentido daquilo que decorre da razão, está mantida e bem formulada pela Carta Constitucional Brasileira. Pertinente, para fins contextuais, é expor como o Supremo Tribunal Federal encara o artigo 199 da Constituição. Para tanto, utilizar-se-á como parâmetro o voto do Ministro Maurício Corrêa, no Recurso Extraordinário nº 202.700, com julgamento em 8-11-2001, Plenário, publicado no DJ de 1-3-2002, que se mostra como o mais completo e abrangente dos acórdãos disponíveis naquela Casa. Ipsis Litteris, o Ministro expõe que:
“A CF assegura que a saúde é direito de todos e dever do Estado, facultada à iniciativa privada a participação de forma complementar no sistema único de saúde, por meio de contrato ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos (CF, art. <199>, § 1º). Por outro lado, assentou balizas entre previdência e assistência social, quando dispôs no art. 201, caput e inciso I, que os planos previdenciários, mediante contribuição, atenderão à cobertura dos eventos ali arrolados, e no art. 203, caput, fixou que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, tendo por fim a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; à habilitação e reabilitação das pessoas deficientes e à promoção de sua integração à vida comunitária; à garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, inferindo-se desse conjunto normativo que a assistência social está dirigida à toda coletividade, não se restringindo aos que não podem contribuir. Vê-se, pois, que a assistência à saúde não é ônus da sociedade isoladamente e sim dever do Estado. A iniciativa privada não pode ser compelida a assistir à saúde ou a complementar a previdência social sem a devida contraprestação. Por isso, se as entidades privadas se dispuseram a conferir aos seus filiados benefícios previdenciários complementares e os contratados assumiram a obrigação de pagar por isso, o exercício dessa faculdade não lhes assegura o direito à imunidade tributária constitucional, outorgada pelo legislador apenas às entidades que prestam assistência social, independentemente de contribuição à seguridade social (CF, art. 203), como estímulo ao altruísmo dos seus instituidores."
Como se vê, a preocupação da Corte Suprema ainda não supre o problema atual e destacado ao longo deste trabalho. A síntese jurisprudencial volta-se essencialmente para problemas acerca da subsidiariedade do serviço de saúde, sua privatização e efeitos sobre o Sistema Único de Saúde. Tal discussão, na prática, está superada. O que se concretiza atualmente é novo emblema doutrinário, resumido na parcialidade normativa que regula o setor.
Mas, se a parcialidade e incongruência lógica das decisões judiciais não advêm da Constituição, que já se mostrou como uma norma geral e abstrata, é certo que são as disposições infraconstitucionais que vêm influenciando os tribunais.
Não obstante isso, o que torna o setor desequilibrado e insustentável é a legislação infraconstitucional, que contextualiza e expõe o tema sempre com ênfase em direitos fundamentais, e nunca com observância aos preceitos da ordem econômica, dispostos no artigo 170 e seguintes da CF. É assim que nasce a parcialidade.
E essa visão consumerista, também, encontra respaldo na constituição, agora no seu artigo 5º, XXXII, enunciando que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, repetindo a idéia em vários dispositivos, inclusive no artigo 170, V, cujo caput premia a livre iniciativa e a ordem econômica justa; mas que na CF ainda mostra-se como caracteres gerais, não permitindo tamanha imparcialidade.
Trata-se, assim, de evidente colisão de direitos, cuja resolução está em uma das premissas mais antigas do Direito pátrio, que foi excelentemente resumida e clareada por Hans Kelsen. Sua síntese filosófica resume-se no fato de que uma norma jurídica para ser válida necessita buscar seu fundamento de validade em uma norma superior. Segue citação do mestre austríaco:
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental–pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora (KELSEN, 1996, p. 246).
Como desdobramento lógico da clássica teoria de Montesquieu (1927), sedimentou-se a concepção de que a atividade dos órgãos jurisdicionais deveria assumir contornos essencialmente silogísticos: a premissa maior estaria consubstanciada na norma geral e abstrata, a premissa menor na situação fática e a conclusão na decisão judicial. Em outras palavras, ter-se-ia uma operação mecânica, um exercício de mera subsunção dos fatos à norma, com os efeitos nesta previstos.
Por isso, é com esta acepção que a resolução deste emblema ganha seus primeiros contornos de solução final. Se o hermeneuta isolar a Constituição da República e interpretá-la sem influência do CDC, Lei 9656/1998 ou ANS, certamente que o equilíbrio do setor da saúde suplementar estará garantido. E obviamente que assim deve ser a conduta do magistrado.
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental–pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. E esse papel de norma máxima, no Brasil, está restrito a Constituição da República.
5. A PROPOSTA DE DELIMITAÇÃO DESTA NOÇÃO HOJE VIGENTE
Não há como ignorar, de outro viés, as disposições do Código de Defesa Consumidor. Ele adveio para melhorar em muito uma histórica distorção entre as relações de consumo. No entanto, assim como qualquer elemento, este deve ser utilizado com racionalidade e parcimônia. Tudo em excesso gera conseqüências danosas.
Se o Estado Subsidiário indica que os setores econômicos sabidamente lucrativos, em especial a saúde, são alvos de profundos ataques aos seus direitos de livre iniciativa e concorrência, sob o auspício de uma suposta garantia dos direitos fundamentais, certamente que o Poder Executivo iria regular (e até mesmo estrangular) esta área com múltiplas leis e regulamentos.
Então, há que se considerar tais dispositivos, especialmente pelo Poder Judiciário. O CDC não é o único, mas sim outro fundamento das relações de consumo. Aquilo que a CF previu deve ser observado de forma suprema, mas aquilo que está abaixo da lei (resoluções da ANS) também fazem parte do sistema.
Interpretações sistêmicas e finalísticas abrangem diretrizes infralegais e devem seguir o modelo constitucional. O CDC possui, desta forma, seus limites.
Surgiu no último século um Estado que investe pesado naqueles ramos que crescem economicamente de forma natural. Trata-se, desta forma, de um intervencionismo econômico, no qual há uma participação estatal nos rumos da economia de um país, a intervenção do governo no mercado de trabalho, a burocratização do estado com criação de leis e regras econômicas mais restritas para regular o funcionamento das atividades econômicas. Quanto mais intervencionista, mais poder a autoridade executiva angariará, eis que setores de grande vulto econômico passam a depender dele.
O Poder Judiciário está erigido a categoria máxima como sede da cidadania ativa. Guardião da Constituição, é por ela que o direito faz-se vivo e insuperável pela atuação de quantos pretendam transgredi-lo. É pela provocação da jurisdição que o cidadão faz com que o direito seja universalmente acatado e igualmente imposto.
O status de pedra fundamental do Estado Democrático de Direito elevou o Poder Judiciário a progredir de forma independente, todavia, não se pode desconsiderar os preceitos mais estritos da legalidade.
Pensar de maneira contrária é transgredir uma seqüência lógica, na qual as decisões judiciais cada vez mais afastam-se das diretrizes governamentais, ao mesmo tempo que delimitam um campo de amplo benefício ao consumidor. A força da autoridade pública, no tocante ao seu poder de coercibilidade e auto-executoriedade, quando impõe às empresas limites de atuação visando também beneficiar o consumidor, precisam figurar nas mentes dos magistrados.
A empresas operadoras da saúde suplementar, no meio deste jogo de interesses, não pode arcar com sensíveis prejuízos no seu campo de atuação devido à estas batalhas teóricas. Como bem disposto pelo artigo 170 da CF, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Portanto, essa libertação das amarras do legalismo pelo Judiciário e a aplicação desmedida da legalidade pelo Executivo culminam no sufocamento de um dos setores que mais movimentam recursos financeiros no mercado brasileiro: a saúde suplementar.
No caso concreto trazido à baila no início deste estudo, o que se percebe é a consideração de um único instituto, em desconsideração aos demais. O sistema, ao contrário do que se pensa, não está dirigido unicamente ao consumidor. O que está equivocada é a forma de interpretar.
A Constituição da República é neutra, geral e imparcial, bem como as disposições da ANS são claras e concisas. Mas ignorar estes preceitos, em favor unicamente do CDC, viola corolários igualmente fundamentais à vida e saúde, que é a igualdade.
Excede os limites do presente trabalho uma análise aprofundada da aplicação do princípio da proporcionalidade à regulação da saúde suplementar, apenas cumpre esclarecer que a ponderação entre princípios constitucionalmente garantidos constitui um fator fundamental na busca por um modelo justo de regulação.
Ainda que persista a clássica idéia de que se trataria de mais um caso de colisão de princípios fundamentais, interessante ressaltar as afirmações de Robert Alexy (1996, p. 73), pontuando que “todas as colisões podem somente então ser solucionadas se, ou de um lado ou de ambos, de alguma maneira, limitações são efetuadas ou sacrifícios são feitos”.
Dworkin (1997, p. 77) sinaliza que “los princípios tienen una dimensión que falta em las normas: la dimensión del peso o importancia. Cuando los princípios se interfieren (la politica de protección a los consumidores de automóviles interfiere con los principios de liberdad de contratacion, por exemplo), quien debe resolver el conflito tiene que tener en cuenta el peso relativo de cada uno”.
A solução advém de um esforço doutrinário que deve analisar o outro lado da moeda. As empresas também possuem seus anseios e necessitam ter seus direitos, igualmente fundamentais, devidamente respeitados. Em um esboço de retomada da lógica, os primeiros passos foram dados com a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Os magistrados devem se interar do problema da saúde suplementar, sob pena de continuarem a proferir decisões irrazoáveis.
Felizmente, mudanças começam a resplandecer, consoante imponentes afirmações de Gabriel Schulman (2009, p. 264), que muito bem elucida que “novas luzes atingem à saúde, sob os prismas da renda e do acesso”.
A aplicação cega do CDC vem destruindo toda uma construção histórica de regramentos. É preciso lembrar, como bem afirmado por Antonio Joaquim Fernandes Neto (2002, p. 54), que “a principal justificativa para a intervenção do Estado é a natureza do bem jurídico alcançado pelas atividades de assistência a saúde”.
Claus-Wilhelm Canaris (1996, p. 88), corroborando com tudo o já exposto e diante de suas esplêndidas considerações, merece sacramentar o presente ensaio: “os princípios não valem sem exceção e podem entrar entre si em oposição ou em contradição; eles não têm a pretensão da exclusividade; eles ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas”.