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Polícia de Sergipe foi “generosa” com Rita Lee.

Reflexões sobre conveniência do momento da prisão em flagrante e fixação da competência dos Juizados Especiais Criminais pela dosimetria antecipada da pena.

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Essa bondade ocorreu por conta de dois erros na operação policial. Deveriam prendê-la durante o show, e não ao término do evento. E deveriam efetuar o auto da prisão em flagrante, e a cantora só seria liberada imediatamente caso pagasse fiança.

Essa bondade ocorreu por conta de dois erros na operação policial.

Primeiro erro: deveriam prendê-la durante o show, e não ao término do evento.

Isso porque:  “qualquer um do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”  (art. 301, I, do CPP). Se o crime é praticado no momento da ação, conforme prescreve o código penal (art. 7 do CP), a cantora estava em flagrante delito, e poderia ser presa, no primeiro palavrão que proferiu contra os policiais.

O que fez a polícia? Esperou a cantora terminar o show para efetuar a detenção. Não precisava! No entanto, o fato de prender a cantora depois do show não implica considerar a prisão ilegal, pois a lei também considera flagrante (próprio), e permite a prisão, de quem acaba de cometer a infração penal (art. 301, II, do CPP). Então, de duas, uma: ou a policia deu uma canja pra Rita Lee ou ficaram com medo da reação do público contra a detenção imediata da cantora.

A segunda opção parece a mais provável. Quem não se lembra do caso do grupo “Planet Hemp”?  O grupo foi preso em Brasília, após um show, por apologia ao crime. Durante a operação, os fãs quebraram uma das viaturas, numa tentativa frustrada de evitar a prisão[1]. No final, o grupo foi liberado e a justiça concedeu salvo-conduto para outra apresentação na Capital. No entanto, as críticas contra o desrespeito à liberdade de expressão[2], bem como a reação truculenta dos fãs no momento da operação marcaram esse evento. Isso demonstra a dificuldade de cumprir a lei em seu rigorismo nos casos envolvendo “autoridades musicais”.

 Portanto, o comandante da operação poderia, logo após o primeiro xingamento, subir ao palco, tomar o microfone da cantora e anunciar a prisão ao público! Sem rancor, sem vingança, apenas aplicando a lei ao caso!


Segundo erro: deveriam efetuar o auto da prisão em flagrante, e a cantora só seria liberada imediatamente caso pagasse fiança.

O crime de desacato é crime de menor potencial ofensivo. Nesses casos, como prescreve a lei 9.099/95, deve haver a captura e o encaminhamento de quem pratica o crime à Delegacia, mas não haverá o encarceramento, tampouco o auto da prisão em flagrante. Como afirma Luís Flávio Gomes, nessas infrações:

“[...]poderá ocorrer a prisão em flagrante, como realidade prática, ou seja, a captura e a apresentação ao Delegado de Polícia de alguém que está cometendo ou acaba de cometer uma infração penal. Mas não poderá haver a prisão em flagrante como realidade formal, ou seja, apresentado o autor do fato, não será lavrado o auto de prisão em flagrante, mas apenas o termo circunstanciado de ocorrência e o termo de compromisso. No entanto, caso não assuma o compromisso de comparecer ao Juizado, o auto de prisão em flagrante será lavrado nos termos do artigo 304 do Código de Processo Penal”[3]

No entanto, a cantora praticou, além do desacato, apologia ao crime. Embora haja opinião respeitável afirmando que a conduta do usuário de drogas estaria descriminalizada formalmente, pois não prevê pena de reclusão ou detenção[4], o STF entende que houve mera despenalização com a nova lei de drogas, o abrandamento da punição com a previsão de pernas alternativas[5]. Isso permite considerar criminosa a conduta de quem faz apologia ao fato de usar drogas (apologia a fato criminoso, nos termos do art. 287, do CP).

No caso da cantora Rita Lee, ainda houve incitação ao crime de prevaricação (art. 286, do CP), quando provocou os policiais a deixar de prender os jovens por uso de drogas. Isso, para satisfazer o interesse da cantora, que afirmou ser o fumo da droga fonte de alegria e felicidade. No entanto, isso foi desprezado pela Polícia de Sergipe.

No entanto, mesmo desconsiderando o crime de incitação, deveria ser feito o auto da prisão em flagrante. Isso porque a soma das penas máximas previstas para os crimes de desacato e apologia ao crime excedem 2 anos. Isso impediria a aplicação ao caso da Lei 9099/95, a Lei dos Juizados Especiais (art. 61).  Por conta disso, não poderia ser lavrado termo circunstanciado, e a cantora não poderia ser liberada apenas sob o compromisso de comparecer ao Juizado.

A soma das penas ainda durante a fase policial, para efeito de competência dos Juizados ou da Justiça Comum, é admitida pela doutrina e pela jurisprudência. Heráclito Mossim afirma que: “tanto o concurso material, como o formal e a continuidade delitiva, ao aumentarem o patamar mínimo acima de dois anos, impedem a concessão de fiança”[6]. No STJ há inclusive o enunciado de Súmula n. 81, que afirma:Não se concede fiança quando, em concurso material, a soma das penas mínimas cominadas for superior a dois anos de reclusão”. No STF há a súmula 723, que considera não ser aplicável a suspensão do processo quando o aumento mínimo da pena exceder a pena mínima em um ano. Por maior razão, não se aplica a suspensão do processo quando o aumento de pena decorrer de concurso material. Também fica claro, pelo enunciado, que o STF admite a soma de penas fora do processo, já que a suspensão do processo ocorre antes do recebimento da denúncia. Portanto, antes do início do processo. É o que a doutrina denomina de dosimetria extraprocessual[7].

A não aplicação da Lei dos Juizados Especiais ao caso implicaria a aplicação do Código de Processo Penal. Em vez do simples termo circunstanciado, deveria ser lavrado auto de prisão em flagrante. Além disso, o Delegado de Polícia deveria arbitrar no exato momento do encarceramento a fiança, pois as penas somadas dos crimes de desacato e apologia ao crime não excedem 4 anos (art. 325, I, do CPP). O valor: 1 a 100 salários mínimos, podendo elevar até 1000 vezes o valor, levando em consideração, segundo o art. 326 do CPP: a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento. Veja que o valor da fiança poderia ultrapassar R$ 500.000 em caso de ser aplicado o limite máximo e a causa de aumento.

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Caso a cantora negasse a pagar a quantia, seria concedida liberdade provisória sem fiança posteriormente pelo juiz, já que os crimes cometidos pela cantora não autorizam prisão preventiva ou temporária (art. 310 c/c 312, II, do CPP). No entanto, isso demandaria um tempo, já que a liberdade provisória sem fiança só pode ser decretada pela Autoridade Judiciária. Enquanto isso ficaria no xadrez!  

Seria – por que não? – um bom prêmio para a cantora que tanto adora o Sergipe!


Notas

[1] Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fol/cult/cu13111.htm>, acesso em 30.01.2012.

[2] No salvo conduto, está claro que a ilegalidade está na censura prévia contra a apresentação do grupo. Tanto que o julgador permitiu expressamente a prisão do grupo no caso de os impretantes se excederem no verbo e fizerem apologia a droga. Cf. decisão na íntegra em <http://www.georgemlima.xpg.com.br/legalize.pdf >, acesso em 30.01.2012.

[3] GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal e Processo Penal. São Paulo: Premier, 2008, p. 240.

[4] GOMES, Luiz Flávio (org.). Legislação criminal especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 169.

[5] RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.2007.

[6] MOSSIM, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005, p. 651.

[7] GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal e Processo Penal. São Paulo: Premier, 2008, p. 340.

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Sobre o autor
João Paulo Rodrigues de Castro

Defensor Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, João Paulo Rodrigues. Polícia de Sergipe foi “generosa” com Rita Lee.: Reflexões sobre conveniência do momento da prisão em flagrante e fixação da competência dos Juizados Especiais Criminais pela dosimetria antecipada da pena. . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3197, 2 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21405. Acesso em: 19 abr. 2024.

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