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Orientação sexual e direitos humanos

02/04/2012 às 17:07

Resumo:

- O Deputado Federal Antônio Bulhões questionou a conceituação de orientação sexual e identidade no Estatuto da Diversidade Sexual.
- Ele argumentou que a proposta do Estatuto poderia causar instabilidade social, prometendo analisar a questão sob a ótica de jurista constitucionalista.
- O texto aborda a evolução dos estudos científicos sobre a bissexualidade e a construção social da sexualidade, defendendo a não patologização de diferentes orientações sexuais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

No Brasil, as lutas pelos direitos civis e humanos emergiram entre fins dos anos 70 e início dos 80. Delas faziam parte negros, povos nativos, prostitutas e mulheres, além de homossexuais. De todas essas categorias, a única que permanece excluída da plena cidadania são os homossexuais, travestis e transexuais.

O Deputado Federal Antônio Bulhões, do PRB-SP, em texto publicado em 27/02/2012 sobre o Estatuto da Diversidade Sexual, posicionando-se enquanto “jurista constitucional”, afirma uma suposta imprecisão quanto a conceituação do que seja orientação sexual e manifesta dúvidas a respeito do processo de constituição da identidade.

Movido por tais dúvidas, o deputado assevera que o Estatuto proposto pela OAB - uma proposta de legislação capaz de garantir a efetividade dos Direitos Humanos Universais ao segmento da sociedade usualmente referido como “LGBT” (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) – criaria “um clima de instabilidade e incerteza social”.

Com base nessa suposição, promete que tratará o assunto “na condição de jurista constitucionalista”, colocando-se à margem de qualquer posicionamento de cunho religioso. Porém antecipa-se e garante que “com certeza constataremos juntos que estamos diante de uma aberração jurídica que nos obriga não a rasgar a Bíblia, mas a Constituição”.   


Confusões conceituais

As dúvidas que o deputado expressa são partilhadas por grande contingente da população. Por muito tempo se acreditou – as ciências inclusive – que havia somente uma modalidade de erotismo (desejo sexual) e que este seria o único “natural”: aquele voltado para pessoa de outro sexo; heterossexual. Com o desenvolvimento do conhecimento científico (antropologia, psicologia, sociologia), pode-se compreender que a natureza humana e animal são essencialmente bissexuais – termo oriundo da embriologia e do darwinismo, adotado pela sexologia em fins do século XIX. A bissexualidade significa a predisposição biológica presente entre humanos e demais animais para o desejo sexual ora por seres do mesmo, ora do outro sexo (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 71 e 350-351).

Freud e todos os que lhe seguiram retomaram a noção de bissexualidade como um conceito central para a compreensão da sexualidade. Na psicanálise, a bissexualidade passou a expressar a disposição psíquica inconsciente inerente a toda subjetividade humana. Compelido pela cultura, o sujeito há que realizar uma “escolha” (inconsciente e não fruto de uma vontade autônoma, deliberada) em relação a essa propensão bissexual que lhe é inerente. Dessa forma, no processo de construção da própria subjetividade, ele terminará por apresentar o seu desejo dirigido (orientado) ou para pessoas de seu próprio sexo biológico, ou para aquelas do outro sexo, ou para ambos os sexos.

Essa “escolha” (ou recalque, como chamam os psicanalistas) de uma das direções do desejo terminou por ser compreendida pelo público leigo como se fora uma “opção” livre e não como um trabalho inconsciente. Por força da desqualificação historicamente desferida sobre a homossexualidade em nossa cultura, passou-se a atribuir o caráter de “opção” exclusivamente à homossexualidade. Assim, representada como manifestação “imoral”, “pecadora” e “antinatural” da eroticidade, a homossexualidade foi sendo compreendida como expressão de um caráter intrinsecamente desprezível, porque desconforme com o padrão dominante de sexualidade.

Já a heterossexualidade, estabelecida em nossa sociedade de matriz judaico-cristã como paradigmática, ou seja, como a única reconhecida e aprovada, tende a não ser percebida como igualmente fruto daquele mesmo processo inconsciente de “escolha”, ou seja, de recalque. Compreendida a heterossexualidade como “a verdadeira e correta” expressão do desejo, o aspecto de “opção” é atribuído apenas aqueles e aquelas que ousam afastar-se do “bom caminho” – ou seja, da heterossexualidade.

Freud, entretanto, hostilizava fortemente "qualquer forma de diferencialismo e discriminação". Numa nota de 1910 no seu "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", de 1905, afirmou que "a investigação psicanalítica opõe-se com extrema determinação à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como grupo particularizado” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 352). Ele a compreendia enquanto uma das modalidades da sexualidade humana e animal (que é intrinsecamente bissexual), "retirando dela qualquer caráter pejorativo, diferencialista, não igualitário ou, inversamente, valorizador". O aspecto de escolha que lhe atribuía era da ordem do inconsciente, como sempre fez questão de ressaltar. Em uma carta datada de 9 de abril de 1935 escrita em resposta a uma mãe estadunidense cuja homossexualidade do filho se queixara, Freud escreveu: “A homossexualidade não é uma vantagem, evidentemente, mas nada há nela de que se deva ter vergonha; não é um vício nem um aviltamento, nem se pode qualificá-la de doença. [...] É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, além de ser uma crueldade” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 353).

O antropólogo Richard Parker, em artigo revisando o estado da arte da pesquisa antropológica sobre sexualidade e comportamento entre 1980 e 1990, relata a crescente importância das abordagens baseadas na concepção de que não apenas o gênero, mas também a sexualidade é construída socialmente, ou seja, variável de cultura para cultura (Parker, 2001, 127-149).   Entretanto, constatou o estudioso, ainda entre os antropólogos que reconheciam a influência do sistema cultural sobre a estruturação da subjetividade (identidade, orientação, prática sexual), era comum observar-se a presença daqueles que atribuíam à manifestação da sexualidade (a direção do desejo) e à função reprodutiva um suposto “impulso biológico” – o que significaria dizer que tais aspectos seriam a-históricos, isto é, “universalmente consistentes”, à salvo das influências culturais. Esse achado, segundo Parker, expressaria a influência do modelo cultural do pesquisador sobre suas próprias conclusões.

Cardoso, em sucinta e panorâmica revisão bibliográfica sobre orientação sexual, demonstra não haver ainda consenso acerca do que e quanto seria influenciado pela cultura ou determinado por gens, cromossomos e hormônios na orientação sexual (bi, homo ou heterossexual) de humanos (CARDOSO, 1996).

Seja como seja – culturalmente construída ou bioquimicamente determinada –, é consenso nos meios científicos da atualidade de que nenhuma das três direções do desejo sexual (bi, homo ou heterossexualidade) importa patologia.

No que respeita a identidade ser auto ou hetero construída – uma das interrogações trazidas pelo deputado – outro pesquisador, Mario Pecheny, ao refletir sobre a formação da identidade homossexual, nos auxilia na compreensão desse processo. Pecheny observa que o significado dessas identidades historicamente tornadas alvo de desqualificação não foi construído pelos próprios indivíduos; ao contrário. Foram fixados à sua revelia. Assim, gays e lésbicas, travestis e transexuais tem de superar o conflito resultante da definição imposta de fora (pela religião, por uma certa concepção de “moralidade” e de “ciência”) e o direito constitucional à autodeterminação – a autonomia que todo indivíduo possui, sobretudo os historicamente alvo de processos de segregação e estigmatização, para proceder a reapropriação e ressignificação desses conteúdos desqualificados, na legítima busca pelo seu bem-estar (PECHENY, 2004, p. 167; CONSTITUIÇÃO, 1988, arts. 1º; 3º; 5º).

Foi sobretudo no contexto das grandes lutas pelos direitos civis e humanos, vindas a lume em fins da década de 60 do século passado, que homossexuais (gays e lésbicas), travestis e transexuais ocuparam o espaço público para reivindicar que, como humanos, também tinham direito à dignidade e a uma cidadania igualitária, não podendo mais continuar a ser alvo de humilhações e cerceamentos em seus direitos e liberdades fundamentais. No Brasil essas lutas emergiram entre fins dos anos 70 e início dos 80 do século passado. Dela faziam parte os negros, os povos nativos, as prostitutas e as mulheres, além dos homossexuais. De todas essas categorias, a única que permanece excluída da plena cidadania são os/as homossexuais, os/as travestis e os/as transexuais.

Na atualidade, as nações mais culturalmente avançadas e as organizações internacionais de direitos humanos já reconhecem que enquanto universais, os direitos humanos não podem deixar de ser reconhecidos e protegidos quando se trata de pessoas cuja direção do seu desejo erótico encontra-se voltada para pessoa do seu próprio sexo ou de ambos, à exemplo do que se verifica com aquelas cuja direção do desejo está dirigida para alguém de sexo diferente do seu. Essas nações e organismos, ademais do reconhecimento, exortam os demais países a que elevem o patamar sociojurídico de sua nação, garantindo a todos os segmentos da população a garantia da efetividade dos direitos fundamentais – inclusive e sobretudo aos homossexuais, travestis e transexuais, em razão da histórica desqualificação a que são alvo.

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O Brasil, na qualidade de integrante desses organismos internacionais, é signatário de tratados e acordos que o obrigam a promover a superação desse paradigma discriminatório, em busca da construção de uma cultura inclusiva, fraterna e respeitosa. Também a Constituição da República igualmente determina ao Estado brasileiro a observância desses valores – não discriminação, igualdade, dignidade.

Estruturada em torno do conceito axial da dignidade da pessoa humana, a Carta Cidadã possibilita extrair de seu conjunto a concepção do direito à orientação sexual como parte integrante dos direitos humanos – constituídos que estão pelas liberdades fundamentais, dentre elas, a de viver livre do medo e da indignidade (BELLI, 2009, p. 31). Esse é um entendimento cuja construção igualmente se processa de forma mundial e cujos marcos são a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, em 1994 e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, ocorrida em Pequim, em 1995 (VIANNA; LACERDA, 2004; BIGLIONE apud VIANNA; LACERDA, 2004; BUGLIONE, 2004; CARRARA, 2004; BARSTED, 2005).

Com vistas à efetividade de tais normativas jurídicas – os acordos e tratados internacionais e a nossa própria Constituição –, a Ordem dos Advogados do Brasil, como tem feito ao longo da história, veio trazer a sua contribuição no esforço comum de tornar o nosso Brasil um país verdadeiramente fraterno, democrático, respeitoso das dignidades individuais.

Como Jurista Constitucionalista, o deputado Antonio Bulhões há de conhecer a luta internacional pelos Direitos Humanos e as recomendações emanadas dos organismos e acordos e tratados internacionais e de nossa Lei Maior, compreendendo o contexto jurídico no qual se insere o Estatuto da Diversidade Sexual.

Quanto à Bíblia, é de se supor a capacidade do parlamentar – se não pela sua formação jurídica, ao menos pelo juramento que fez por ocasião de sua posse – em proceder ao discernimento quanto a esfera de competência do livro sagrado dos cristãos – somente dos que lhe cultuam, é bom que se recorde – em relação à vida civil de todos os brasileiros e brasileiras e à laicidade do estado constitucional.


Referências:

BARSTED, Leila Linhares. Novas legalidades e novos sujeitos de direitos. In: ÁVILA, Maria Betânia; PORTELLA, Ana Paula; FERREIRA, Verônica (orgs.). Novas legalidades e democratização da vida social: família, sexualidade e aborto. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 29-37.

BELLI, Benoni. A politização dos direitos humanos: o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e as resoluções sobre países. São Paulo: Perspectiva, 2009.

BUGLIONE, Samantha. Direitos sexuais, direitos civis e direitos humanos: convergêngias, divergências e humanidades. In: RIOS, Luís Felipe et al (orgs.). Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Abia, 2004. p. 146-153.

BULHÕES, Antônio. Estatuto da Diversidade Sexual – I. Publicado no Boletim 002/2012 do Gabinete do Deputado. Disponível em: http://www.vaiarrebentar.com.br/deputado-antnio-bulhes-estatuto-da-diversidade-sexual-i/#axzz1oGe0Of9y

CARDOSO, Fernando Luiz. O que é Orientação Sexual. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CARRARA, Sérgio. Uma reflexão sobre direito sexual. In: RIOS, Luís Felipe et al (orgs.). Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: Abia, 2004. p. 154-155.

CONSTITUIÇÃO Federal. Código Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2007.

PARKER, Richard. Cultura, economia política e construção social da sexualidade. In: LOURO. LOPES, Guacira (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

PECHENY, Mario. Identidades discretas. In: RIOS, Luís Felipe et all (orgs.). Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: ABIA, 2004. p. 17–33.

ROUDINESCO, Elizabeth e PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

VIANNA, Adriana; LACERDA, Paula. Direitos e políticas sexuais no Brasil: o panorama atual. Rio de Janeiro: CLAM/IMS/UERJ, 2004.

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Sobre a autora
Rita C. C. Rodrigues

Graduada em Direito pela UFRJ. Doutoranda em História Social pela UFF. Mestre em Política Social (Proteção Social) pela UFF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Rita C. C.. Orientação sexual e direitos humanos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3197, 2 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21417. Acesso em: 22 dez. 2024.

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