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Um olhar jurídico sobre o papel da universidade na qualificação de populações indígenas como forma de acesso à cidadania e ao desenvolvimento

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04/04/2012 às 15:01
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6. EDUCAÇÃO SUPERIOR COMO FORMA DE ACESSO DOS POVOS INDÍGENAS À CIDADANIA PLENA

A cidadania expressa um conjunto de direitos civis "prerrogativas, atributos, faculdades, ou poder de intervenção dos cidadãos ativos no governo de seu país, intervenção direta ou indireta, mais ou menos ampla, segundo a intensidade do gozo desses direitos. (...) os direitos cívicos, que se referem ao Poder Público, que autorizam o cidadão ativo a participar na formação ou exercício da autoridade nacional, a exercer o direito de vontade ou eleitor, o direito de deputado ou senador, a ocupar cargos políticos e a manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado”. (PIMENTA BUENO, 1958)

Os abusos contra algumas minorias operam para desigualar ainda mais o que já é naturalmente desigual, e isto se dá também pela manutenção de políticas públicas inadequadas e excludentes. Deste modo, é fácil constatar que no Brasil boa parte da população não exerce plenamente a cidadania.

 “Contudo, das Luzes e da modernidade foram excluídos os índios, os escravos e os povos colonizados, que não compartilhavam da natureza humana dos chamados homens, e também as mulheres, supostamente incapazes, assim como as crianças, de fazerem uso da razão nos assuntos públicos. Declarações de direito eram proclamadas ao mesmo tempo em que franceses e norte-americanos escravizavam grande parte da população negra mundial. A abolição da escravidão ocorreu nos Estados Unidos apenas em 1863 e a França manteve suas colônias até 1962.” (MOEHLECKE, 2004)

Modernamente a ideia de um conceito de cidadania que inclua os direitos políticos e subtraia os direitos civis não condiz com a realidade histórica, posto que as grandes declarações de direitos sobre as quais se fundamentam a própria essência do constitucionalismo e da cidadania - Magna Carta inglesa de 1215, a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 – garantiram ao mesmo tempo a conquista de direitos civis e políticos essenciais à dignidade da pessoa humana. (LENZA, 2010)

Entendemos que os direitos civis e políticos seriam de pouca valia se dissociados de capacitação intelectual formadora de uma consciência crítica capaz de possibilitar a mensuração do real valor e utilidade dos direitos e a importância dos deveres em prol do bem comum.

As desigualdades sociais e econômicas no Brasil produzem distorções no que se refere ao acesso à educação. Deste modo, as populações mais abastadas têm acesso à educação básica e média de boa qualidade em escolas particulares, enquanto outra parcela da população se utiliza da deficiente educação pública. Esta situação faz toda a diferença quando do acesso ao ensino superior. Em universidades públicas, as vagas em cursos com maior prestígio social são em sua maioria preenchidas por pessoas com condição econômica de classe média ou alta. Este modelo atenta contra a justiça social e promove ainda mais exclusão e miséria.

Isto dá sentido às palavras do mestre John Rawls segundo as quais “somos levados ao princípio da diferença se desejamos montar o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórios em troca.” (Rawls, 2002)

É incontestável que a educação é um duto que possibilita o pleno acesso à cidadania pelo fato de preparar intelectualmente e capacitar profissionalmente populações indígenas. O preparo intelectual coopera para um exercício consciente dos direitos, sobretudo no que se refere à participação política. Neste sentido, a educação capacita profissionalmente e habilita ao exercício de uma atividade laboral pela qual os indígenas poderão suprir suas necessidades materiais e isto sem dúvida opera em prol de sua dignidade.

Deste modo, o exercício pleno da cidadania passa necessariamente pela educação. Assim sendo, a família e o Estado cooperam para o alcance da civilidade e para a construção de uma consciência crítica, necessários ao desenvolvimento pessoal e ao progresso do País.

Diante disto, é que a atuação da UFRR se mostra extremamente relevante na Região Norte ao propiciar às populações indígenas de Roraima o acesso ao ensino superior como forma de melhorar a sua qualidade de vida e contribuir com o exercício pleno de sua cidadania.

Sabrina Moehlecke, em seu excelente artigo sobre ações afirmativas no ensino superior, citando reportagem do Jornal ‘O Estado de São Paulo’ da lavra de M.Souza, afirma que “(...) Balanços preliminares realizados pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) no início de 2004 mostram que essa escolha pode trazer resultados positivos semelhantes no Brasil. Na UERJ, por exemplo, 49% dos alunos ingressantes pelo sistema de cotas teriam passado de ano sem nenhuma dependência, contra 47% dos alunos escolhidos pelo sistema vestibular. A evasão entre os alunos negros, no primeiro ano, foi de 5% e entre os demais alunos, de 9%. Na UNEB, a evasão entre os alunos negros também foi menor: 1,9% contra 2,7%.” (MOEHLECKE, 2004).

Finalmente, a UFRR precisa estimular a elaboração de pesquisas, a fim de verificar a situação do seu alunado indígena para então concluir sobre os erros e acertos da inserção privilegiada destes alunos na Universidade. A formação de professores indígenas voltada à realidade cultural dos nativos locais é uma iniciativa louvável que merece todo o apoio e estímulo do Poder Público e da sociedade civil, e é claro que muitas destas iniciativas irão prevalecer e se fortalecer independentemente das contingências jurídicas advindas a partir dos juízos de valores estabelecidos pela Justiça, a respeito da constitucionalidade de algumas destas medidas.


7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas:

1.             Dados colhidos a partir de reportagem do ‘Jornal Folha de Boa Vista’ de 22/04/2008 intitulada ‘UFRR tem 237 indígenas matriculados’ produzida pela redação do citado jornal.

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2.             Informações obtidas partir de reportagem do ‘Jornal Folha de Boa Vista’ de 22/04/2008 intitulada ‘UFRR tem 237 indígenas matriculados’ produzida pela redação do citado jornal, a partir de informações prestada pelo Núcleo Insikiran da UFRR.

3.             Informações podem ser encontradas na página da UFRR na Rede Mundial de Computadores: www.ufrr.br

4.             Reportagem do ‘Jornal Folha de Boa Vista’ de 22/04/2008 intitulada ‘UFRR tem 237 indígenas matriculados’ produzida pela redação do citado jornal.

5.             Informação contida na página da UFRR na internet: www.ufrr.br

6.             A CF/88 em seu Art. 205 versa que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

7.             Como exemplo de ações afirmativas em IES é possível citar: UFPR (Res. n. 37/04 do Conselho Universitário), UFSC (Res. N. 008/CUNI/2007), UFRGS (Dec. do CEPE nº 39/2007), UEMG (Lei N. 15.259/2004), UFES (Res. 33/2007 – CEPE), UERJ (Leis Estaduais n. 4.151/2003 e 5.074/2007), USP (Aprovado pelo Conselho Universitário em 23/05/2006), UEA (Lei Estadual n. 2.894/2004), UFPA (Resolução n.3.361/2005 do CONSEPE), UFBA (Resolução n. 01/2004 do CONSEPE), UFMA (Resoluções 568 e 569 – CONSEPE), UFRN (Lei Estadual n. 8.258/2002), UEPB (Res. CONSEPE/018/2007), UFAL (Resoluções n. 01/2007 e 05/2007-CONSUNI), UFPI (Resolução n. 093 /06-CEPEX), UFMT (Resolução CONSEPE n.83/2007), UEMS (Lei estadual nº 2.589/2002 e nº 2.605/2003), etc. Licenciaturas interculturais são ofertadas na UFAM, UFAC, UFRR, UNIFAP, UFG, UNEMAT, UFGD, UFMG, USP, etc.Levantamento sobre ações afirmativas voltadas aos povos indígenas em universidades públicas federais e estaduais no Brasil constante na página: www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/educacao_superior_indigena/index.htm


ABSTRACT

This article discusses the importance of higher education as a means of social integration and development for indigenous people on a legal approach, based on the principle of equal access to opportunities, among which includes free public education. In this sense it is worth stressing that the actions of the University in favor of the inclusion of Indians in graduate courses with the aim of contributing to the material and intellectual development of those communities.

KEY WORDS: University, Amazonia, Indigenous Education, Citizenship, Development.

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Sobre o autor
Emanoel Maciel da Silva

Mestre em Direito UGF/RJ, Doutorando em Direito PUC/SP, Professor da UFRR e Faculdade Cathedral, Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Emanoel Maciel. Um olhar jurídico sobre o papel da universidade na qualificação de populações indígenas como forma de acesso à cidadania e ao desenvolvimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3199, 4 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21435. Acesso em: 24 abr. 2024.

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