“Os princípios tendem a tiranizar, justificar, honrar, injuriar ou esconder os hábitos. Dois homens com princípios iguais querem, verdadeiramente, atingir algo de fundamentalmente diferente, com base nestes princípios”.
Friedrich Wilhelm Nietzsche
RESUMO
A Lei nº. 8.009/90 regulamenta a instituição do bem de família, que visa preservar o imóvel da entidade familiar de execuções por dívidas. Prevê, porém, essa lei, exceções à essa proteção. Uma dessas exceções, incluída em 1990 pela Lei nº. 8.245 (Lei do Inquilinato), trata do fiador no contrato de locação. Segundo essa exceção, aquele que celebrar contrato de fiança garantindo o adimplemento do contrato de locação pelo devedor, pode ter seu bem excutido em processo de execução. Em contraponto a esse dispositivo, tem o fiador argüido em via de exceção que existe nesse dispositivo uma afronta ao princípio da isonomia por tratar diferenciadamente fiador e locador, e ainda uma agressão ao direito fundamental social à moradia. Pelo princípio da igualdade, infere-se que deva existir um tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. O contrato de locação diverge do contrato de fiança no que tange ao seu objeto. Estando, então, cada um em uma situação jurídica diversa, não há afronta ao princípio, uma vez que tal diferenciação não é arbitrária. Em relação à inconstitucionalidade por agressão ao direito fundamental à moradia, verifica-se uma colisão entre direitos fundamentais, não de direitos diversos, mas de um mesmo direito fundamental, porém garantido a duas classes: locatário e fiador. Para a verificação dessa antinomia, há que se fazer uma interpretação à luz do princípio da proporcionalidade, que requer um juízo de ponderação axiológica em verificar qual das classes deve ter maior proteção pela legislação.
Palavras-chave: direito constitucional; bem de família; princípio da isonomia; direitos fundamentais; moradia; proporcionalidade; ponderação de bens.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por objetivo verificar a constitucionalidade do artigo 3º, inciso VII da Lei nº. 8.009 de 29 de março de 1990, que permite a penhora do imóvel do fiador no contrato de locação.
A referida Lei regulamenta o instituto do bem de família, e visa proporcionar à entidade familiar a segurança de que seu imóvel residencial não seja excutido por força de ação executiva.
Foi a Lei nº. 8.425 de 18 de outubro de 1991 (Lei do Inquilinato) que incluiu dentre as exceções já previstas à impenhorabilidade do bem de família, a dívida decorrente de obrigação assumida na forma de fiança em contrato de locação.
Com a constitucionalização da moradia como direito fundamental pela Emenda Constitucional nº. 26 de 14 de fevereiro de 2000, surgiu o questionamento se esse dispositivo teria sido ou não recepcionado pela nova redação do artigo 6º da Constituição Federal de 1988, em virtude de uma possível afronta a direito fundamental, por violar o direito à moradia do fiador.
Outro aspecto controvertido do dispositivo reside em se verificar o atendimento ao princípio constitucional da igualdade, uma vez que não obstante haja a possibilidade da penhora do bem do fiador, este, no seu direito de regresso, não possui o mesmo benefício processual contra o devedor principal.
A justificativa para a escolha do tema se dá pelo fato de estarem envolvidos na controvérsia valores primordiais cultivados pela Constituição Federal, quais sejam, os princípios constitucionais e os direitos fundamentais. Trata-se de questão de interesse amplo e irrestrito, e que merece ser analisada de forma criteriosa.
Para tanto, iniciar-se-á o estudo fazendo-se uma abordagem, na primeira unidade, acerca dos aspectos históricos e conceituais do instituto do bem de família e da própria entidade familiar, destinatária da norma jurídica. Ainda nessa primeira unidade, far-se-á a verificação de alguns elementos da teoria geral dos contratos e sua classificação, e posterior correlação com os contratos de locação e fiança e seus aspectos específicos.
Na segunda unidade far-se-á uma breve análise dos princípios constitucionais, com ênfase ao princípio da isonomia e suas implicações. Também nessa unidade será dedicado estudo aos direitos fundamentais, de forma especial ao direito fundamental à moradia. Tratar-se-á ainda da eficácia jurídica dos direitos fundamentais sociais.
Na última unidade, após a conceituação do termo inconstitucionalidade, far-se-á uma verificação da jurisprudência produzida nos nossos tribunais versando sobre as controvérsias apresentadas. Estabelecer-se-ão também os critérios cabíveis para a interpretação constitucional, e por fim, analisar-se-á o dispositivo frente ao princípio isonômico e o direito fundamental à moradia, com base nos preceitos abordados nas unidades anteriores.
Unidade 1
BEM DE FAMÍLIA E FIANÇA NO CONTRATO DE LOCAÇÃO
Tratando o presente trabalho sobre o bem de família, verifica-se a necessidade de uma análise histórica e conceitual de tal instituto, bem como da entidade familiar, cujo objetivo jurídico é proteger. Tratará essa unidade ainda de alguns conceitos básicos sobre contrato de locação e contrato de fiança.
1.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ENTIDADE FAMILIAR
A entidade familiar teve funções e significados distintos em diferentes épocas e ordenamentos jurídicos. Relevante, portanto, verificar sua origem e evolução histórica, para um bom entendimento de seu atual conceito.
1.1.1 Origem e evolução histórica da entidade familiar
São diversas as correntes que tentam definir a forma primitiva da família. Pode ter ela surgido de uma espécie de promiscuidade, onde “homens e mulheres se inter-relacionavam entre si sem quaisquer proibições”. (GARCIA, 2003, p. 55). Dentro desse aspecto verifica-se também a teoria das uniões transitórias. “De acordo com esta teoria, marido e mulher permaneciam juntos até um período depois do nascimento do filho, assim como fazem os animais”. (GARCIA, 2003, p. 55).
É também sustentada a possibilidade de a família ter surgido de uma forma poligâmica, podendo ser sob a forma de poliandria (matriarcado) ou poliginia (patriarcado). Outra corrente defende uma monogamia originária.
A corrente mais aceita é a de uma sociedade primeiramente poligâmica, e que gradativamente progrediu para a monogamia, provavelmente de forma patriarcal, tendo em vista a própria natureza do homem.
O homem mais forte, na sociedade primitiva, apossando-se de suas mulheres e prole, formou o primeiro grupo familiar patriarcal poligâmico, tendo poderes ilimitados sobre os membros da família. Após esta posição inicial, com o crescente reconhecimento dos direitos da mulher, predominou a organização familiar sob forma monogâmica. (AZEVEDO, 1999, p. 19).
A forma que hoje conhecemos de família recebeu influência da família romana, canônica e germânica.
A família romana era constituída pelas pessoas que viviam sobre o pater familias, cujo significado era de chefe, e não de pai. O pater era o ascendente mais velho, que administrava os bens da família e controlava todos os descendentes não emancipados, sua esposa, e até mesmo as esposas de seus descendentes[1] (LUZ, 2002, p. 22). Isso ocorria porque não era o laço sanguíneo e nem o afetivo que uniam os entes familiares, mas o religioso, de culto aos antepassados. “A mulher, ao se casar, abandonava o culto do lar de seu pai e passava a cultuar os deuses e antepassados do marido, a quem passava a fazer oferendas”. (VENOSA, 2004, p. 18). Tão importante era o culto aos antepassados, que a adoção foi permitida na família romana que não possuía descendentes homens para perpetuar a religião.
A partir do Império, a autoridade do pater foi progressivamente diminuindo, havendo a perda do direito sobre a vida e a morte das pessoas sob seu poder. A autonomia dos filhos e das mulheres aumentou, e os filhos começaram a administrar parte dos bens da família. (WALD, 2004, p. 10-11).
A Igreja Cristã legislou através de cânones, que eram as normas religiosas. Tal normatização exerceu grande influência na história do direito, especialmente quanto à família. O cristianismo instituiu o casamento não apenas como um ato de vontade entre homem e mulher, mas também como um sacramento, não podendo ser dissolvido, conforme o princípio católico quod Deus conjunxit homo nos separet.[2] (WALD, 2004, p. 12).
Após a Reforma Protestante[3], houve conflito em relação à competência para a resolução dos problemas referentes ao casamento entre os tribunais civis e religiosos, conforme descrito por Arnoldo Wald (2004, p. 15):
O grande problema que surge, no fim da Idade Média e especialmente após a Reforma, é o conflito entre os tribunais civis e religiosos, inicialmente quanto a certos aspectos patrimoniais do direito de família e, em seguida, em relação aos seus efeitos pessoais.
O Concílio de Trento[4], ainda segundo o raciocínio de Arnoldo Wald (2004, p. 15), teve grande influência nos países católicos, pois serviu como reafirmação dos seus ideais, e estabeleceu a integral competência da Igreja no que se referia ao casamento. Nos países onde a reforma foi acolhida, as resoluções do Concílio não foram aplicadas, e uma legislação própria foi elaborada.
A família germânica trouxe como colaboração a família do tipo paternal, que ao invés do pater da família patriarcal romana, possuía a figura do pai (LUZ, 2002, p. 23).
Após a miscigenação dessas e de outras culturas, a evolução da família foi inevitável. “Característica marcante dessa evolução é a privatização do conceito de família, com a valorização de cada um dos seus membros, que passaram a ter mais autonomia e mais liberdade de ação”. (SEREJO, 1999, p. 32).
Profundas alterações ocorreram no que se refere a sua finalidade, composição e papel de pais e mães. A educação passou ao estado ou instituições privadas por ele supervisionadas, a religião não mais é ministrada em casa, os ofícios não mais são passados de pai para filho, a mulher é lançada no mercado de trabalho e com isso muitas vezes os filhos são criados por terceiros. As uniões sem casamento passam a ser aceitas pela sociedade e pela legislação, e o divórcio torna-se cada vez mais comum, devido o desgaste das instituições religiosas (VENOSA, 2004, p. 20).
No Brasil, o Código Civil de 1916 trouxe uma concepção canônica da família, embasada na autoridade do marido, e com vários dispositivos discriminatórios à mulher. Muitas mudanças ocorreram ao longo do tempo, alterando o instituto, principalmente pela rápida evolução da sociedade. Em 1977, a Emenda Constitucional nº. 9, de 28 de junho introduziu o divórcio no nosso ordenamento jurídico, e que posteriormente foi regulamentada pela Lei nº. 6.515/77 (LUZ, 2002, p. 25).
Porém, foi com a Constituição Federal de 1988 que a instituição da família obteve seu maior avanço, como o reconhecimento da união estável e da família monoparental[5] como entidades familiares, e a igualdade entre homens e mulheres.
Seguindo as modificações impostas pela Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 adaptou-se à nova realidade, recepcionando as novas regras relativas à sociedade conjugal, da igualdade entre os cônjuges, do reconhecimento da união estável, da adoção e outras conquistas angariadas pela entidade familiar (WALD, 2004, p. 32).
É nesse contexto que a família evoluiu, trazendo consigo elementos fundados no direito romano e canônico, e que hoje continua evoluindo e recebendo influências de todas as formas em virtude de uma sociedade em constante mudança. Diante dessa realidade, passamos a um conceito de família, adequado ao momento fático.
1.1.2 Conceito de família
Na conceituação de Clóvis Beviláqua (1976, p. 15)
Família é o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se, por família, somente os cônjuges e a respectiva.
É no mesmo sentido que Sílvio de Salvo Venosa (2004, p. 16) ensina que o conceito de família pode ser considerado sob dois aspectos: segundo um conceito amplo, como um conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar (parentesco), ou conforme um conceito restrito, onde a família compreende apenas o núcleo formado por pais e filhos vivendo sob o seu pátrio poder. Prevê ainda um conceito sociológico, onde a família pode ser considerada um núcleo “integrado pelas pessoas que vivem sob um mesmo teto, sob a autoridade de um titular”, e que muito lembra o patriarcalismo romano. [6]
Com a Constituição Federal de 1988 o conceito de família torna-se mais flexível, abrangendo também a família constituída pela união estável. Concebeu ainda, para efeitos dos direitos relativos à entidade familiar, a família monoparental e a formada pela adoção.
Para efeitos desse estudo, será considerada a entidade familiar no sentido estrito, seja ela legalmente constituída ou não, e consideradas as forma monoparental e de adoção.
1.1.3 Proteção Constitucional à Entidade Familiar
A Constituição Federal de 1988 prevê no seu artigo 226 que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Trata-se da tutela do “sustentáculo da estabilidade social” (SEREJO, 1999, p. 34), pois a família é o núcleo onde o indivíduo desenvolve seu caráter, onde aprende a conviver em sociedade.
Segundo Celso Ribeiro Bastos (1997, p. 490), “a nossa Constituição vela pela integridade da família na pessoa de cada um dos seus integrantes, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
José Sebastião de Oliveira (2002, p. 273, Apud VENOSA, 2004, p. 31) apresenta um rol de princípios constitucionais do Direito de Família na Constituição Federal:
proteção de todas as espécies de família (art. 226, caput); reconhecimento expresso de outras formas de constituição familiar ao lado do casamento, como as uniões estáveis e as famílias monoparentais (art. 226, §§ 3º e 4º); igualdade entre os cônjuges (art. 5º, caput, I, e art. 226, 5º); dissolubilidade do vínculo conjugal e do matrimônio (art. 226, § 6º); dignidade da pessoa humana e paternidade responsável (art. 226, § 5º); assistência do estado a todas as espécies de família (art. 226, § 8º); dever de a família, a sociedade e o Estado garantirem à criança e ao adolescente direitos inerentes à sua personalidade (art. 227, §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 7º); igualdade entre os filhos havidos ou não do casamento, ou por adoção (art. 227, § 6º); respeito recíproco entre pais e filhos; enquanto menores é dever daqueles assisti-los, criá-los e educá-los, e destes o de ampararem os pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 29); dever da família, sociedade e Estado, em conjunto, ampararem as pessoas idosas, velando para que tenham uma velhice digna e integrada à comunidade.
Para Sílvio de Salvo Venosa (2004, p. 24), é de suma importância a ação estatal perante a família, ressalvando, porém, que “essa intervenção deve ser sempre protetora, nunca invasiva da vida privada”.
Sobre a proteção à família, nos ensina Sílvio Rodrigues (2001, p. 8) que,
Dentro dos quadros de nossa civilização, a família constitui a base de toda a estrutura da sociedade. Nela se assentam não só as colunas econômicas, como se esteiam as raízes morais da organização social. De sorte que o Estado, na preservação de sua própria sobrevivência, tem interesse primário em proteger a família, por meio de leis que lhe assegurem o desenvolvimento estável e a intangibilidade de seus elementos institucionais.
É também nesse sentido que outras normas, infraconstitucionais, têm sido editadas visando garantir a intangibilidade da entidade familiar. O instituto do bem de família é uma delas, seja ele voluntário ou legal, conforme veremos a seguir.
1.2 BEM DE FAMÍLIA
Tal importância tem a entidade familiar, que a legislação tem sempre criado novas formas de protegê-la diante das ingerências do mundo competitivo. O bem de família é uma delas, e será tratado nas próximas seções.
1.2.1 Origem e evolução histórica do instituto do bem de família
A instituição do bem de família, na forma jurídica em que hoje é concebida, surgiu nos Estados Unidos devido à crise econômica por que passou no início do século XX. Nos anos que antecederam a crise, os Estados Unidos viveram um período de grande movimento econômico, atraindo para o local os banqueiros europeus, interessados no giro de capital proporcionado pelos afoitos americanos. Tendo havido certo abuso de empréstimos e do nível de vida, logo a crise se instalou no país.
Centenas de bancos foram fechados, milhares de falências ocorreram e os bens dos devedores foram maciçamente penhorados pelos credores. O reflexo disso tudo foi um imenso abalo na família americana, que se desestruturou diante de tão repentina crise. Diante disso, vários foram os apelos para que se encontrassem formas de proteger a família desse infortúnio. Uma delas foi a revogação da prisão por dívidas, em 1833 (AZEVEDO, 1999, p. 27).
Foi no estado do Texas, enquanto ainda pertencente ao México, que uma lei foi promulgada, em 1839, isentando a residência do devedor da penhora[7] em ações de cobrança. [8] A esse instituto foi dado o nome de homestead, que significa “local do lar” (home = lar; stead = local).
Dizia o § 3.798 da Digest of the Laws of Texas, que regulava o instituto:
De, e após a passagem desta lei, será reservado a todo cidadão ou chefe de família, nesta República, livre e independente do poder de um mandado de fieri facias[9] ou outra execução, emitido de qualquer Corte de jurisdição competente, 50 acres de terra, ou um terreno na cidade, incluindo o bem de família dele ou dela, e melhorias que não excedam a 500 dólares, em valor, todo mobiliário e utensílios domésticos, provendo para que não excedam o valor de 200 dólares, todos os instrumentos (utensílios, ferramentas) de lavoura (providenciando para que não excedam a 50 dólares), todas as ferramentas, aparatos e livros pertencentes ao comércio ou profissão de qualquer cidadão, cinco vacas de leite, uma junta de bois para o trabalho ou um cavalo, 20 porcos e provisões para um ano; e todas as leis ou partes delas que contradigam ou se oponham aos preceitos deste ato são ineficazes perante ele. Que seja providenciado que a edição deste ato não interfira com os contratos entre as partes, feitos até agora. (Apud, AZEVEDO, 1999, p. 29)
Após a anexação do Texas aos EUA, em 1845, incluiu-se na Constituição Texana, que o “legislador deveria proteger, por intermédio de uma lei, determinada porção de terra pertencente ao chefe de uma família contra qualquer execução”. (AZEVEDO, 1999, p. 31).
A partir daí o instituto se alastrou pelo território americano, alcançando praticamente todos os estados, com as devidas adaptações e alterações do legislador local.
No Brasil, verifica-se que o instituto apareceu pela primeira vez inserido no Código Civil de 1916, constando no livro dos bens, nos artigos 70 a 73. O Código Civil de 2002 manteve o instituto, transferindo-o para o livro da família, nos artigos 1.711 a 1.722.
Em 1990, a lei federal 8.009 ampliou a proteção ao bem de família, que difere em alguns aspectos do instituto previsto no Código Civil, porém por ele foi recepcionada. Veremos suas peculiaridades na seqüência.
1.2.2 Bem de Família no Código Civil de 2002
O artigo 1.712 do Código Civil define Bem de Família:
Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
Não é requisito para sua criação que já fosse, anteriormente, habitado pela família. Também não pode ser constituído apenas de um terreno, uma vez que a lei especifica “prédio” (PEREIRA C., 2006b, p. 560).
Determina o artigo 1.711 do mesmo ordenamento que
Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento[10], destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição.
O parágrafo único do referido artigo confere ainda legitimidade a terceiro para constituição do bem de família.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.
É indispensável para a constituição do bem de família que seja feita escritura pública, dando publicidade ao ato, e produzindo efeitos erga omnes.[11]
O bem de família constituído nos moldes do Código Civil torna-se inalienável[12], podendo ser vendido apenas com o consentimento dos interessados e de seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.
Art. 1.711. O prédio e os valores imobiliários, constituídos como bem de família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.
Quanto à sua impenhorabilidade, será oponível quando se tratarem de dívidas posteriores à sua constituição, exceto as que se tratarem de tributos incidentes sobre o próprio imóvel.
Art. 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.
O bem de família disposto no Código Civil, também chamado de voluntário, apesar de seu nobre intuito protetivo, não alcançou seus objetivos com grandes perspectivas, pois com a exigência de requisitos formais para sua constituição, afasta a entidade familiar geralmente avessa à burocracia e formalidades legais. É esse aspecto que a lei 8.009/90, a ser tratada na próxima seção, veio recepcionar.
1.2.3 Bem de Família na Lei 8.009 de 29 de março de 1990
O bem de família definido na Lei 8.009/90, segundo seu artigo 1º, é o “imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar”. O artigo 5º define residência como “um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente”.
Nessa modalidade de bem de família, “o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por norma de ordem pública, em defesa da célula familiar”. (AZEVEDO, 2005, p. 215).
Segundo Caio Mario Pereira (2006b, p. 564), “não há necessidade de estar registrado no registro de imóveis a indicação de se tratar de bem de família para que o devedor possa invocar a proteção da referida lei. O fim social da lei é proteger a vida familiar”.
O art. 1º da lei 8.009/90 define que
Art. 1º. O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Não obstante a lei contenha a expressão “nele residam”, a jurisprudência tem aceitado a impenhorabilidade quando o único bem imóvel da entidade familiar esteja alugada e a família subsista desse provento:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA - PENHORA SOBRE BEM DE FAMÍLIA - IMPENHORABILIDADE REJEITADA, HAJA VISTA RECAIR SOBRE A NUA-PROPRIEDADE - IMPROCEDÊNCIA - DESNECESSIDADE DE RESIDIR O DEVEDOR NO IMÓVEL - MOTIVOS JUSTIFICÁVEIS - REFORMA DA INTERLOCUTÓRIA - RECURSO PROVIDO. O bem de família não pode receber ônus de penhora, sob a alegação de que a mesma recai sobre o nu-proprietário, mesmo que resguarde os direitos do usufrutuário vitalício. A impenhorabilidade de imóvel de família deve ser estendida àqueles casos em que o proprietário não resida no bem, comprovando a inexistência de outro, assim como justificáveis sejam os motivos que o levem a residir em outro local. (Agravo de instrumento nº. 2005.013965-0, Julgado em 20/07/2006, Relator: Des. Edson Ubaldo).
Além do imóvel do devedor, o parágrafo único do artigo 1º, prevê que a impenhorabilidade se estenderá aos bens que guarnecem sua residência:
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Essa forma de bem de família, também chamada de legal, não exige as formalidades previstas no código civil, apenas apresentando algumas exceções à sua aplicabilidade, como as previstas no artigo 3º:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III -- pelo credor de pensão alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº 8.245, de 18/10/91)
Para que seja o credor beneficiado pela impenhorabilidade, não deverá agir com má-fé, transferindo sua residência para imóvel mais valioso:
Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.
O parágrafo segundo desse mesmo artigo determina também que em relação ao imóvel rural, a proteção se limita à sede da moradia:
§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural.
O intuito protetivo da lei nº. 8.009/90 pouco diverge do disposto no Código Civil, porém sua amplitude é inegavelmente maior. Nesse estudo, será levado a efeito o conceito e as características pertinentes ao instituto regulamentado na lei ordinária.
1.3 CONTRATO DE FIANÇA E CONTRATO DE LOCAÇÃO
Antes de adentrarmos ao estudo dos contratos de locação e de fiança propriamente ditos, urge estudar alguns elementos da teoria geral dos contratos relevantes presente trabalho.
1.3.1 Elementos da teoria geral dos contratos
O contrato é uma “convenção surgida do encontro de duas ou mais vontades, que se obrigam entre si, no sentido de dar, fazer ou não fazer alguma coisa”. (RIZZARDO, 2002, p. 5). Para Sílvio Rodrigues (RODRIGUES, 2002b, p. 10), é “o acordo de duas ou mais vontades, em vista de produzir efeitos jurídicos”. Ainda, na definição de Whashington de Barros Monteiro (2003, p. 5), é o “acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir um direito”.
São condições para a validade de um contrato a capacidade das partes, que seu objeto seja lícito, e que exista a manifestação consensual da vontade.
O artigo 1º do Código Civil determina que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, mesmo que não possa exercê-los pessoalmente (RODRIGUES, 2002a, p. 40). A capacidade geral para atos da vida civil difere da capacidade contratual, pois “nem sempre para certos contratos o agente tem capacidade”. A essa capacidade específica denomina-se legitimação. (VENOSA, 2003a, p. 436).
O objeto do contrato[13] deve ser lícito. Para Arnaldo Rizzardo (2002, p. 10), é lícito o objeto que “seja conforme a moral, a ordem pública e os bons costumes”. Necessário também que o objeto seja possível, ou seja, que “gire tem torno de uma operação realizável”. (RIZZARDO, 2002, p. 10).
O consentimento, nos contratos, trata-se da manifestação do próprio núcleo da natureza contratual: o acordo de vontades.
A formação do contrato é regida por alguns princípios orientadores, que não obstante haja divergência doutrinal, elencaremos os principais:
a) Autonomia da vontade: sendo o contrato considerado um “acordo de vontades livre e soberanas, insuscetível de modificações trazidas por qualquer outra força que não derive das partes envolvidas” (RIZZARDO, 2002, p. 12), é assegurado aos contratantes a menor intervenção estatal possível. Para Sílvio Rodrigues (2002b, p. 15), trata-se da “prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam”.
b) Liberdade contratual: decorrente da autonomia da vontade, visa assegurar “ampla liberdade às pessoas para estipular as cláusulas que lhe interessam”. (RIZZARDO, 2002, p. 13). Segundo Silvio de Salvo Venosa (2003a, p. 376), a liberdade contratual “permite que as partes se valham dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos típicos), ou criem uma modalidade de contrato de acordo com suas necessidades (contratos atípicos)”.
c) Supremacia da ordem pública: independente da autonomia de vontade e da ampla liberdade contratual concedida aos contratantes, “há restrições impostas por leis de interesse social, impedindo as estipulações contrárias à moral, à ordem pública e aos bons costumes”. (RIZZARDO, 2002, p. 14).
d) Obrigatoriedade dos contratos: através da máxima pacta sunt servanda, o acordo de vontades faz lei entre as partes. A única exceção feita à obrigatoriedade, é o caso fortuito ou força maior, que se caracterizam por fatos que não possam ser evitados pelo devedor e que não provenham de culpa (RIZZARDO, 2002, p. 19).
e) A boa-fé: pelo princípio da boa-fé, as partes são obrigadas a manifestarem-se dentro dos “interesses que as levaram a se aproximarem, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgios ou intenções outras que não as expressas no instrumento formalizado”. (RIZZARDO, 2002, p. 23). Para Sílvio de Salvo Venosa (2003a, p. 378), esse princípio também é dirigido à interpretação dos contratos, estabelecendo que seja dever das partes “agir de forma correta antes, durante e depois do contrato”.
Os contratos, conforme a natureza e a maneira com que se aperfeiçoam, são classificados em diferentes espécies, descritas a seguir.
1.3.1.1 Classificação dos contratos
Silvio Rodrigues (2002b, p. 27) ensina que
A classificação é um procedimento lógico, por meio do qual, estabelecido um ângulo de observação, o analista encara um fenômeno determinado, agrupando suas várias espécies conforme se aproximem ou se afastem uma das outras. Sua finalidade é acentuar as semelhanças e dessemelhanças entre as múltiplas espécies, de maneira a facilitar a inteligência do problema em estudo.
Para Sílvio de Salvo Venosa (2003a, p. 390), a classificação dos contratos “serve para posicionar corretamente o negócio jurídico no âmbito do exame de seu adimplemento e inadimplemento, questão crucial para o jurista”.
A doutrina elege formas de classificações as mais diversas, porém vamos nos ater às espécies relevantes ao presente estudo.
a) Contratos Unilaterais e Bilaterais: São contratos bilaterais aqueles “que, no momento de sua feitura, atribuem obrigações a ambas as partes, ou para todas as partes intervenientes”. (VENOSA, 2003a, p. 392). Contratos unilaterais, por sua vez, geram obrigação a apenas uma das partes. Alguns contratos são unilaterais ou bilaterais por natureza, outros o são por convenção das partes.
b) Contratos Gratuitos e Onerosos: Contratos gratuitos são aqueles em que “somente uma das partes sofre um sacrifício patrimonial, enquanto a outra apenas obtém um benefício”. (RODRIGUES, 2002b, p. 31). Já no contrato oneroso, “ambos os contratantes têm direitos e deveres, vantagens e obrigações; a carta contratual está repartida entre eles, embora nem sempre em igual nível”. (VENOSA, 2003a, p. 402).
c) Contratos Comutativos e Aleatórios: Sílvio de Salvo Venosa (2003a, p. 403) define como contrato comutativo aquele em que as partes sabem, desde o acordo, qual a prestação cominada; e contrato aleatório aquele em que “ao menos o conteúdo da prestação de uma das partes é desconhecido quando elaboração da avença”.
d) Contratos Típicos (nominados) e Atípicos (inominados): São contratos típicos aqueles aos quais a “lei dá denominação própria e submete a regras que pormenoriza”. Nos contratos atípicos, “a determinação formal é dada pelas partes”. (RODRIGUES, 2002b, p. 36). O Código Civil imprime a legalidade dessas espécie de contrato estabelecendo no artigo 425 que “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”.
e) Contratos Consensuais e Reais: Contratos consensuais são “aqueles que se ultimam pelo mero consentimento das partes, sem necessidade de qualquer outro complemento”. Os contratos reais “dependem, para seu aperfeiçoamento, da entrega da coisa, feita por um contratante ao outro”. (RODRIGUES, 2002b, p. 35).
f) Contratos pessoais e impessoais: nos contratos impessoais independe a pessoa que o irá executar, desde que haja o adimplemento da obrigação. Já nos contratos pessoais (intuitu personae[14]), somente o contraente possui capacidade para a realização da obrigação. (VENOSA, 2003a, p. 419)
Feitas as considerações necessárias ao entendimento das características e espécies de contratos previstas ou permitidas pelo nosso ordenamento jurídico, far-se-á uma breve verificação das principais características de dois tipos de contratos específicos: a locação e a fiança.
1.3.2 Do contrato de locação
Conforme Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 5), “a locação de coisas sé dá quando uma pessoa (o locador) se obriga a entregar o uso e gozo de uma coisa durante certo tempo a outra (o locatário), o qual por sua vez se obriga a pagar um preço”. Esse negócio jurídico aperfeiçoa-se através do contrato de locação.
O contrato de locação de imóveis é um contrato bilateral, oneroso, comutativo, típico, consensual, principal e pessoal, e que tem por objeto a locação de um imóvel mediante prestação de alugueres.
No conceito de Clóvis Beviláqua (Apud Rocha, 2002, p. 197),
Locação é o contrato pelo qual uma das partes, denominada locador, mediante remuneração que a outra parte, denominada locatário, paga, se compromete a fornecer-lhe, durante certo lapso de tempo, ou o uso e gozo de uma coisa infungível (locação de coisa), ou a prestação de um serviço (locação de serviço), ou a execução de algum trabalho determinado (empreitada).
O Código Civil trata da locação de coisas, porém a locação de imóveis urbanos é regulada pela lei nº. 8.245 de 18 de outubro de 1991.
Para a incidência da lei 8.245/91, é necessário que o imóvel seja urbano, servindo como critério para essa verificação a destinação que é dada ao imóvel (VENOSA, 2006, p. 6). Um imóvel pode até mesmo estar localizado em região rural, porém se a destinação será de moradia ou de estabelecimento de comércio, será tido como urbano, e reger-se-á a locação pelas regras da lei especial. No entanto, um imóvel, mesmo que localizado em região urbana, se destinado às práticas agrícolas, a locação obedecerá ao estabelecido no Código Civil quanto à locação de coisas.
A lei estabelece vários direitos e deveres, tanto do locador quanto do locatário, que, porém não importam ao presente estudo. Apenas dois nos são relevantes: o dever do locatário de pagar pontualmente os alugueres, e o direito do locador de exigir garantias para esse pagamento.
“O aluguel é a remuneração ajustada como contraprestação pela cessão do uso e gozo do imóvel, por prazo temporário. [...] Pagar o aluguel com pontualidade significa quitar a dívida no tempo e lugar devidos”. (ROCHA, 2002, p. 210).
As garantias que podem ser exigidas pelo locador estão previstas no artigo 37 da lei 8.245/91, e são a caução, a fiança e o seguro de fiança locatícia. A lei veda, porém, a cumulação das modalidades em um único contrato.
“O termo “garantia” advém do francês garantie, que significa proteger, assegurar. De maneira que toda garantia será uma proteção, que se concede ao credor, aumentando a possibilidade de receber aquilo que lhe é devido”. (DINIZ, 2001, p. 149).
A caução é a garantia real[15] do adimplemento através do patrimônio do devedor, e poderá ser de bens móveis, imóveis, dinheiro ou até mesmo títulos e ações (VENOSA, 2006, p. 167)
O seguro de fiança locatícia “tem por finalidade garantir o segurado dos prejuízos que venha a sofrer, em decorrência do inadimplemento do contrato de locação pelo garantido”, onde o segurado beneficiário é o locador e o garantido é o locatário. (PACHECO, 2000, p. 310)
A fiança é a garantia utilizada com maior freqüência no contrato de locação, e suas características serão verificadas na próxima seção.
1.3.3 Do contrato de Fiança
O contrato de fiança é um contrato unilateral, gratuito, comutativo, típico, consensual, acessório e pessoal, e que tem por objeto garantir o adimplemento da obrigação assumida em outro contrato, dito principal. Segundo o artigo 818 do código Civil, “pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”.
Segundo Sílvio Rodrigues (2002b, p. 355), a fiança, como elemento de garantia,
[...] vem aumentar as possibilidades, com que conta o credor, de receber a dívida. Pois, se o devedor não resgatar o débito e seu patrimônio for escasso para assegurar a execução, pode o credor voltar-se contra o fiador, reclamar-lhe o pagamento e excutir seus bens, para assim se cobrar.
A fiança está limitada ao valor da obrigação principal (VENOSA, 2003b, p. 424), e conforme o art. 822 do Código Civil compreende todos os seus acessórios, inclusive as despesas judiciais.
Determina ainda o Código Civil, que possui o fiador o direito, ao ser demandado em ação judicial, a exigir até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor. Trata-se do benefício de ordem. Utilizando-se de tal benefício, o fiador deverá nomear bens do devedor suficientes para a solução do débito.[16] O artigo 828 do Código Civil determina ainda que somente não poderá fazer uso de tal benefício se o renunciou expressamente, se se obrigou como principal devedor, ou devedor solidário e se o devedor for insolvente ou falido. O benefício de ordem “se funda na idéia de que a obrigação do fiador é subsidiária, pois que não passa de uma garantia da dívida principal”. (RODRIGUES, 2002b, p. 358).
Caso o fiador venha a liquidar a dívida do contrato principal, possui direito de sub-rogação. No conceito de Sílvio de Salvo Venosa (2003b, p.431), “sub-rogação significa substituição de uma coisa por outra, ou de uma pessoa por outra”. Conforme determinado no artigo 831 do Código Civil, “o fiador que pagar integralmente a dívida fica sub-rogado nos direitos do credor”. Isso quer dizer que o fiador tem o direito de mover ação regressiva contra o devedor para reaver o que pagou, acrescido, inclusive, das dívidas acessórias.
Além de previsão legal juntamente aos dispositivos pertinentes à fiança, a sub-rogação é também disciplinada nos artigos 346 a 351 do Código Civil.
O artigo 349 do Código Civil determina que “a sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores”.
A fiança, para que tenha validade jurídica, deverá ter a outorga do cônjuge, conforme determinado pelo artigo 1.647, III do Código Civil:
Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648[17], nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
(...)
III – prestar fiança ou aval;
Dessa forma, vislumbra-se mais uma vez o intuito protetivo à entidade familiar, evitando a dilapidação do patrimônio por apenas um dos integrantes da família.
Nessa unidade estabelecemos alguns conceitos que servirão como as primeiras premissas para análise na terceira unidade. As segundas premissas, oriundas do direito constitucional, serão apreciadas na unidade que segue.