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O princípio do contraditório no inquérito policial

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10/04/2012 às 18:03
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CAPÍTULO 2: SISTEMAS PROCESSUAIS

Antes de analisarmos propriamente a incidência ou não do princípio do contraditório no inquérito policial, devemos conhecer os sistemas processuais penais existentes, assim como suas características e qual o modelo é adotado no Brasil.

Este estudo dos modelos acusatório, inquisitivo e misto se mostra de grande valia para podermos entender se no curso da fase pré-processual ocorre a garantia do contraditório ao investigado.

Mais adiante passaremos a estudar cada sistema de maneira separada, mostrando as principais características de cada um deles.

2.1 Sistema inquisitivo

No sistema inquisitivo não é conferida ao acusado a garantia do contraditório, inexistindo no curso da lide processual igualdade entre as partes. O processo começa por iniciativa do juiz que age de ofício, não necessitando de provocação de provocação das partes.

O juiz é o responsável pela acusação, defesa e julgamento. O acusado não é considerado sujeito de direitos, mero objeto da relação processual. O magistrado atua de forma discricionária, sendo um processo escrito e secreto, em que a simples confissão do acusado já serve para a aplicação de uma condenação.

Neste modelo processual contrariamente ao modelo acusatório o juiz não fica inerte às investigações necessárias para a determinação da materialidade e autoria do crime, não atua como um mero espectador participa ativamente da instrução, tomando iniciativa na produção de provas, determinando buscas e apreensões, inquirindo testemunhas, determinando perícias, age com a finalidade de zelar pelo bom andamento das investigações.

Tourinho filho descreve os traços básicos do sistema inquisitivo, vejamos:

O processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório. Não há o contraditório, e por isso mesmo inexistem as regras da igualdade e liberdades processuais. As funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfeixadas numa só pessoa: o Juiz. É ele quem inicia, de ofício, o processo, quem recolhe as provas e, a final, profere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão. O processo é secreto e escrito. Nenhuma garantia se confere ao acusado. Este aparece em uma situação de tal subordinação que se transfigura e se transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito.[18]

Esta modalidade de processo surgiu em Roma e na Idade Média por influência da Igreja se expandiu por toda a Europa, sendo dominante em quase todos os países. Foi uma criação do Direito Canônico, mas ganhou a confiança dos soberanos que o viram como uma importante para imporem seus poderes.

Sobre a origem deste modelo Mirabete afirma o seguinte:

No sistema inquisitivo encontra-se mais uma forma auto-defensiva de administração da justiça do que um genuíno processo de apuração da verdade. Tem suas raízes no Direito Romano, quando, por influência da organização política do Império se permitiu ao juiz iniciar o processo de ofício. Revigorou-se na Idade continente Média diante da necessidade de afastar a repressão criminal dos acusadores privados e alastrou-se por todo o continente europeu a partir do século XV diante da influência do Direito Penal da Igreja e só entrou em declínio com a Revolução Francesa.[19]

O processo inquisitivo com estas características apresentadas era um grande perigo a segurança dos indivíduos, servindo de instrumento para validar muitas injustiças e arbitrariedades. Assim, o processo inquisitivo, que surgiu para evitar injustiças notadas no processo acusatório, tornou-se um verdadeiro instrumento de tortura e opressão.[20]

É válido observar que neste sistema ocorre uma disputa desigual entre o acusado e o juiz-inquisidor, o magistrado abandona sua função de julgador imparcial e passa a exercer a função de inquisidor, atuando desde o princípio também como acusador. O acusado não é considerado sujeito de uma relação processual, se torna apenas um mero objeto.

O sistema inquisitivo não confere nenhuma garantia individual ao acusado, a confissão é a principal prova e pode ser obtida por todos os meios possíveis, inclusive tortura.

Devemos fazer uma reflexão acerca deste sistema processual, devemos observar suas características com a visão da época onde a tortura era plenamente cabível para descobrir a autoria do delito, pois se analisarmos com a cultura atual, vamos considerá-lo uma verdadeira barbárie.

2.2 Sistema misto

Após o fim da Revolução Francesa o processo penal passou por grandes transformações, é então que surge o sistema misto que apresenta características do sistema inquisitivo e do acusatório.

O processo é dividido em três fases: a investigação preliminar desenvolvida pela Polícia Judiciária e sem a participação da defesa, a instrução realizada por um juiz instrutor e sem a presença da defesa e o julgamento realizado pelo magistrado com ampla participação da defesa que pode contraditar a acusação.

Podemos observar que as características do sistema inquisitivo estão presentes na fase da investigação onde se procura a apuração do fato e sua autoria, este trabalho é elaborado pela polícia judiciária e não sujeito a intervenção da defesa. Também presente na fase instrutória preparatória que é dirigida por magistrado, o processo é escrito, sigiloso e não contraditório.

Já na fase do julgamento são observadas características do processo acusatório como a oralidade, publicidade e a possibilidade da defesa contraditar as provas produzidas pela defesa.

Galdino Siqueira sintetiza este sistema da seguinte maneira:

I- a acusação é confiada a funcionários especiais, que exercem assim um ministério público, e dos quais as partes privadas não devem ser, em princípio, senão auxiliares; II- o processo se desdobra em duas fases: a instrução preparatória, escrita e secreta; a instrução definitiva, oral, pública, contraditória; III- ao julgamento concorrem magistrados permanentes e experimentados e juízes populares; IV- ao sistema da provas legais, substitui-se o do critério moral nos limites das provas obtidas.[21]

As atividades de acusação, defesa e julgamento são distribuídas a pessoas diferentes, ocorre uma combinação entre o sistema acusatório e o inquisitivo para o surgimento do sistema misto.

2.3 Sistema acusatório

No sistema acusatório o processo começava pela acusação, que era feita pelo próprio ofendido ou por algum parente seu nos crimes de ação privada. Com a evolução e o aprimoramento técnico do homem observou-se que o crime ofendia toda a coletividade e não somente à vitima, assim a ação penal poderia ser proposta por qualquer membro do povo.

Uma vez feita a acusação é que ocorria a pesquisa acerca da autoria e da materialidade do delito. Assim, surgiu a figura do inquérito policial que tinha início somente depois de feita a acusação.

O magistrado conferia ao acusador uma espécie de mandado para que o mesmo efetuasse a colheita de todos os elementos que pudessem servir de prova, como a oitiva de testemunhas, exame de documentos, etc.

Hélio Tornagui cita as principais características deste modelo, vejamos:

1. A prova dos fatos competia às partes. O juiz não tomava a iniciativa de apurar coisa alguma, até porque os fatos não controvertidos não precisam ser provados;

2. As partes tinham disponibilidade do conteúdo do processo;

3. Se o réu se confessava culpado, era condenado sem mais indagações;

4. Dominava a publicidade e a oralidade;

5. O réu aguardava a sentença em liberdade.[22]

A principal característica do sistema acusatório é a separação das funções de acusar e julgar, o juiz é inerte preservando sua imparcialidade, assim depende de iniciativa das partes a imputação do fato delituoso. O acusado faz parte da relação processual em situação de igualdade com a acusação.

Nucci descreve as características do sistema acusatório da seguinte forma:

[...] nítida separação entre o órgão acusador e o julgador; há liberdade de acusação, reconhecido o direito ao ofendido e a qualquer cidadão; predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes no processo; vigora a publicidade do procedimento; o contraditório está presente; existe a possibilidade de recusa do julgador; há livre sistema de produção de provas; predomina maior participação popular na justiça penal e a liberdade do réu é regra.[23]

No processo acusatório são traços profundamente marcantes: a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público fiscalizável pelo olho do povo (excepcionalmente se permite um publicidade restrita ou especial); d) as funções de acusar, defender, e julgar são atribuídas a pessoas distintas,e, logicamente, não é dado ao Juiz iniciar o processo sem provocação da parte (ne procedat judex ex officio – o Juiz não pode dar início ao processo por sua própria vontade); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois “non debet licere actori, quod reo non permittitur” (não deve ser lícito ao autor o que não é permitido ao réu); g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou órgão do Estado.[24]

Neste sistema é assegurada a segurança jurídica da coisa julgada, havendo a possibilidade de impugnar as decisões e duplo grau de jurisdição, possibilitando a utilização de todos os recursos disponibilizados pelo ordenamento jurídico.

Aury Lopes Junior cita as principais características deste sistema na atualidade:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;

b) a iniciativa probatória deve ser das partes;

c) mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio a labor de investigação e passivo no que se refere à colheita da prova, tanto de imputação como de descargo;

d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo);

e) procedimento em regra é oral (ou predominantemente);

f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte);

g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa);

h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional;

i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa julgada;

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j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.[25]

O próprio Aury Lopes Junior faz uma crítica a este modelo, considerando que a inércia do juiz (garantia de imparcialidade) gera uma prestação jurisdicional incompleta, tendo o magistrado que decidir muitas vezes com base em material probatório insuficiente produzido pelas partes.

Mas também ressalta em outra obra que este sistema é o que no transcorrer do tempo mais avançou em relação aos direitos e garantias conferidas ao réu. Este sistema é o que mais se enquadra ao modelo de Estado Democrático de Direito, neste sentido Aury Lopes Junior afirma: “o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado”.[26]

O sistema acusatório é o sistema adotado no Brasil, neste sentido alguns autores se manifestam vejamos:

O processo é eminentemente contraditório. Não temos figura de juiz instrutor. A fase processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a Autoridade Policial procede investigação não contraditória, colhendo, à maneira do Juiz instrutor, as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma e da respectiva autoria. Com base nessa investigação preparatória, o acusador, seja órgão do Ministério Público, seja a vítima, instaura o processo por meio de denúncia ou queixa. Já agora, em juízo, nascida a relação processual, o processo torna-se eminentemente contraditório, público e escrito (sendo que alguns atos são praticados oralmente, tais como debates em audiências ou sessão). O ônus da prova incube às partes, mas o Juiz não é um espectador inerte na sua produção, podendo, a qualquer instante, determinar de ofício, quaisquer diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.[27]

Mirabete também compartilha do mesmo entendimento e diz:

No Brasil a Constituição Federal assegura o sistema acusatório no processo penal. Estabelece "o contraditório e a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º, LV); a ação penal pública é promovida, privativamente, pelo Ministério Público (art. 129, I), embora assegure ao ofendido o direito a ação privada subsidiária (art. 5º, LIX); a autoridade julgadora é a autoridade competente – juiz constitucional ou juiz natural (arts. 5º, LIII, 92 a 126); há publicidade dos atos processuais, podendo a lei restringi-la apenas quando a defesa da intimidade ou do interesse social o exigirem (arts. 5º, LX, e 93, IX).[28]

Ocorre que, após as recentes alterações ocorridas no Código de Processo Penal, principalmente com o advento da Lei nº 11.690/08 que deu nova redação ao art. 156 do CPP, passou a gerar críticas por parte da doutrina que entendeu haver uma violação do sistema acusatório.

De acordo com a nova lei o referido art. do CPP passou a vigorar da seguinte maneira:Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”

Assim, esta alteração legislativa conferiu poderes instrutórios ao magistrado, que passa a ser atuante na atividade probatória. Neste contexto há uma violação dos princípios basilares do sistema acusatório vigente em nosso país, que estabelece uma clara divisão das funções de acusação, defesa e julgamento.

Esta parte da doutrina que critica a recente reforma do art. 156 do CPP, entende que esta lei confere um caráter inquisitivo ao processo penal brasileiro, uma vez que autoriza que o juiz a ordenar a produção de provas antecipadas, mesmo sem pretensão do titular da ação penal ou ainda durante a fase pré-processual. Assim, o magistrado deixa de ser imparcial e passa a atuar como parte no processo.

Nereu José Giacomolli entende que esta reforma traz grandes prejuízos à defesa, vejamos:

Enfim, o que já era ruim ficou ainda pior, pois com a recente reforma ocorrida no Código de Processo Penal brasileiro, se perdeu grande oportunidade de afastar a atuação do juiz, sem a provocação das partes, na fase probatória. As diligências ex officio não encontram sustentação num processo penal acusatório, pois na dúvida sobre ponto relevante aplica-se o in dubio pro reo, com solução absolutória. Determinar diligências de ofício, nessas hipóteses, significa produzir prova acusatória em detrimento do acusado.[29]

Assim, ao analisarmos o modelo de sistema processual penal adotado no Brasil devemos observar as recentes alterações do CPP, que geram questionamentos sobre o sistema acusatório brasileiro.

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Sobre o autor
Rodolfo Silveira Rodrigues

Bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil ULBRA- TORRES - RS, oficial do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Rodolfo Silveira. O princípio do contraditório no inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3205, 10 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21482. Acesso em: 23 abr. 2024.

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