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A sociologia presente no caso concreto: Marx, Foucault e Beck

15/04/2012 às 09:10
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O TST assume uma importante postura humanista ao levar em consideração, ainda que não explicitamente, concepções sociológicas que visam a além da aplicação da lei e estabelecimento de uma punição.

RESUMO

O trabalho a seguir analisa um processo trabalhista de exploração de trabalho análogo ao escravo sob diferentes vieses sociológicos, nomeadamente utilizando textos de Karl Marx, Michel Foucault e Ulrich Beck. Através da aproximação entre o direito e a sociologia, busca-se comprovar o ponto de vista dos autores na prática social e na aplicação da teoria ao caso concreto, acabando por corroborar o acerto do Tribunal Superior do Trabalho que, em uma abordagem antropossociológica – tão necessária hodiernamente –, manteve uma alta indenização como forma de punição e de responsabilização social para a empresa condenada.

Palavras-chave: direito, escravo, sociologia, trabalho.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O caso; 3. O viés marxista; 4. A disciplina de Foucault; 5. A modernização reflexiva; 6. Conclusão.


1. Introdução

Faz-se interessante uma breve explanação, em tom introdutório, acerca do histórico e da importância da abordagem antropossociológica do direito. Em linhas gerais, a sociologia jurídica possui raízes ainda com pensadores como Tocqueville, através de sua análise do sistema prisional americano, e MONTESQUIEU, que em sua obra-prima, O espírito das leis, afirma que as leis não são fruto do capricho ou do arbítrio de quem legisla, mas decorrência da realidade social e da história concreta própria ao povo considerado.

Durante sua principal fase, a sociologia jurídica teve em nomes como Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber, H. J. S. Maine, Leon Petrazycki e Eugen Ehrlich uma base fundamentadora. Para Ehrlich, um dos fundadores da disciplina, a sociologia jurídica complementaria os conhecimentos dogmáticos da Jurisprudência, gerando um “direito vivo”, originado não do Estado, mas da ordem interna das organizações sociais. No direito, podem-se destacar os pensamentos de figuras como F. C. Savigny (o direito emanado do volksgeist, “espírito do povo”) e Hermann Kantarowicz (escola do direito livre). Na antropologia, ganha brilho Bronis?aw Malinowski. Mais tarde, uma nova geração de sociólogos, notadamente Niklas Luhmann, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu e Michel Foucault, atualiza a sociologia jurídica e inicia novos debates sobre temas pertinentes à modernidade sócio-jurídica.

Ao tratar do assunto, Miguel Reale vai além da sociologia jurídica e invoca um sociologismo jurídico globalizante, a saber:

Sob a rubrica de sociologismo jurídico – expressão que preferimos a realismo jurídico, empirismo jurídico etc. – reunimos todas as teorias que consideram o Direito sob o prisma predominante, quando não exclusivo, do fato social, apresentando-o como simples componente dos fenômenos sociais e suscetível de ser estudado segundo nexos de causalidade não diversos dos que ordenam os fatos do mundo físico. (REALE, 1999, p. 434)

Ao enxergá-lo, antes de qualquer outra coisa, como um fato social, a sociologia fornece ao direito as chaves para uma compreensão mais real de suas próprias raízes, finalidade e aplicação. Em uma sociedade ainda em fase de ampliação da justiça social tal como é a brasileira, é de grande valia o método sociológico de interpretação legal que não se restringe à literalidade da norma, mas a adequa aos contornos dessas relações sociais notoriamente injustas, como demonstra o caso a ser analisado.


2. O caso

O caso em questão foca na ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho contra uma empresa proprietária de fazendas exploradoras de trabalho análogo ao escravo. As fazendas foram alvo de fiscalização do órgão entre 1998 e 2002, período durante o qual foram gerados 55 autos de infração pelas más condições de trabalho de 180 trabalhadores, incluindo nove adolescentes e uma criança menor de 14 anos.

Entre as inúmeras infrações identificadas, estão: não fornecer água potável; manter empregados em condições subumanas e precárias de alojamento, em barracos de lona e sem instalações sanitárias; não fornecimento de materiais de primeiros socorros; manter empregado com idade inferior a quatorze anos; existência de trabalhadores doentes sem assistência médica; limitação da liberdade para dispor de salários; ausência de normas básicas de segurança e higiene; não efetuar o pagamento dos salários até o quinto dia útil do mês; deixar de conceder o descanso semanal remunerado de 24 horas consecutivas; e venda de equipamentos de proteção individual.

No dia 13 de maio de 2005, a empresa foi condenada, em primeira instância, a pagar três milhões de reais e a adotar uma série de medidas para se ajustar à legislação trabalhista. Houve quebra do sigilo bancário e fiscal da empresa, assim como a decretação da indisponibilidade de bens e deferimento do bloqueio imediato e preventivo no valor de três milhões de reais que fossem encontrados em contas bancárias dos réus. O Ministério Público recorreu contra a decisão – foram pedidos quase 86 milhões de reais de indenização, o que corresponde a 40% do patrimônio estimado das duas propriedades envolvidas no caso –, e no dia 21 de fevereiro de 2006, o Tribunal Regional do Trabalho do Pará elevou a punição para cinco milhões de reais. No dia 20 de agosto de 2010, o valor foi mantido pela Primeira Turma do Tribunal Superior do Trabalho. A empresa em questão se constituía reincidente: já havia sido ré em outras três ações trabalhistas, sendo condenada a 30 mil reais que aparentemente não foram suficientes para coibir sua reprovável conduta.

Na fundamentação da sentença, o presidente da sessão foi enfático ao comparar o trabalho escravo a crimes contra a humanidade, tais como tortura e genocídio. O relator do caso tocou, em seu discurso, no ponto da afronta à dignidade e honra humana, o que demonstra um olhar coevo que vai além da norma, trazendo consigo definições morais, sociais e histórico-culturais.


3. O viés marxista

Karl Marx é particularmente conhecido por sua visão materialista e dialética, que enxerga a história através do processo real de produção enquanto sucessão de gerações que se organizam socialmente e exploram os materiais, os capitais e as forças produtivas legadas. Na sua obra A ideologia alemã, escrita em parceria com Friedrich Engels, Marx inicia a consolidação de suas bases – que acabariam por desembocar na construção do marxismo – através da crítica ao idealismo de autores em voga na época, conhecidos por “jovens hegelianos”, como Ludwig Feuerbach.

Quando MARX fala que (2005, p. 51) “ao contrário do que se sucede na filosofia alemã, que desceu do céu para terra, aqui se ascende da terra ao céu” e que (p. 52) “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”, promove uma radical desautonomização de ideologias e formas de consciência vinculadas a elas. Tudo passa agora a ser resultado da atividade material (destacadamente industrial) e do intercâmbio entre os homens. A teoria “sem prática” dos jovens hegelianos, as representações e os pensamentos são provenientes diretamente do comportamento social – e não o contrário –, passando de objetos independentes para objetos que os homens, a partir de sua realidade, podem transformar.

Desse modo, formas de consciência como metafísica, moral e religião fincam-se no solo real da história e não podem ser entendidas senão como produtos teóricos dela. Na seção de A ideologia alemã destinada à análise da relação do Estado e do direito com a sociedade, Marx situa o direito no mesmo patamar destas formas de consciência. O direito se desenvolve ao lado da propriedade privada, ao mesmo tempo em que se vê reduzido, por intermédio da classe dominante que busca a garantia de seus privilégios, puramente à lei.

A ação civil pública descrita representa com precisão o esforço marxista de adequar conceitos antes abstratos, como o direito, à realidade social. O direito visto apenas como lei ou norma positivada – que Marx caracteriza como uma mera ilusão da vontade geral e que na verdade é uma das instituições políticas do Estado moderno, este organizado pela burguesia e utilizado por ela como forma de garantir a propriedade –, é de interesse apenas à classe dominante, que lança mão de um mecanismo jurídico a cada vez que se torna necessário legitimar uma de suas vontades. A contribuição de Marx, neste aspecto, é a tentativa de aproximar o direito, fruto do desenrolar histórico de uma sociedade real, a essa mesma sociedade, relegada a estruturas positivistas vazias de conteúdo que acabam apenas por dar suporte aos que têm acesso panorâmico a ela. Portanto, o Ministério Público acerta ao utilizar de meios jurídicos como instrumento de resolução de conflitos entre realidades tão diferentes (os trabalhadores explorados e a rica empresa) e promoção de justiça social.

Outro aspecto em que o caso se relaciona com a filosofia social marxista reside na teoria da luta de classes. Segundo Marx (p. 94-95), foi a concentração do comércio e da manufatura na Inglaterra do século XVII que possibilitou progressivamente o surgimento da grande indústria, devido à sobrecarga das forças produtivas. Sobre a grande indústria, diz ele:

Subordinou a ciência da natureza ao capital e retirou da divisão do trabalho sua derradeira Naturwüschsigkeit [aparência natural]. Destruiu de modo geral todo elemento natural, tanto quanto foi possível, no interior do trabalho, e dissolveu todas as relações naturais em relações monetárias. (p. 95)

Quando se analisa o trabalho análogo ao escravo, o que se pode notar é exatamente a substituição do trabalho “natural”, tal como Marx observa nas etapas anteriores à grande indústria. A relação entre trabalhador e patrão é simplificada à moeda, o que explica a falta de humanidade presente nas fazendas investigadas pelo Ministério Público. A burguesia, formada ainda Idade Média, consegue firmar-se englobando todas as classes proprietárias já existentes, ao mesmo tempo em que gera, com o advento do capital comercial ou industrial, uma massa excluída de despossuídos. São as duas classes essenciais delineadas por Marx: a burguesia (o capital, representado aqui pela empresa exploradora) e o proletariado (a mão-de-obra, os trabalhadores explorados).

A divisão do trabalho, para Marx, estrutura-se então em um aparato de troca que seria o sustentáculo do capitalismo. De um lado, têm-se os trabalhadores que vendem sua força de trabalho pelo preço vil da subsistência. Do outro, há a classe dominante que compra essa força de trabalho; por ser a única possuidora dos meios de trabalho (instrumentos, instalações, máquinas e ferramentas necessárias para a exploração dos objetos de trabalho, como matérias-primas e recursos naturais), a burguesia não deixa escolha ou margem de negociação para os proletários, que são obrigados pelo sistema a vender sua mão-de-obra, gerando lucro para o explorador.

O que gera a perda da dignidade humana, relevante na fundamentação teórica da sentença proferida pelo TST, nesse aparato é a alienação do trabalhador, que ao se alienar em relação ao trabalho é também alienado por ele, acabando por alienar a si mesmo: “[...] as forças produtivas aparecem como totalmente independentes e separadas dos indivíduos, como um mundo apartado deles” (p. 102). Marx, através da sua análise verdadeiramente realista da sociedade, transforma a relação entre sociologia e direito, tornando o último muito mais palpável e humano.

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4. A disciplina de Foucault

Michel Foucault, numa singular concepção de história, baseia-se em diversos conceitos facilmente aplicáveis e reconhecíveis em diversos feitios do direito moderno. Um dos principais é a disciplina, que alicerça boa parte da teoria foucaultiana sobre a sociedade disciplinar, exposta principalmente no seu livro Vigiar e punir. Segundo ele, o poder disciplinar

é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo. Em vez de dobrar uniformemente e por massa tudo o que lhe está submetido, separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. “Adestra” as multidões confusas, móveis, inúteis de corpos e forças para uma multiplicidade de elementos individuais. (FOUCAULT, 2010, p. 164)

É evidente o sentido que Foucault pretende dar à disciplina. Ela é, antes de algo repressor ou flagrantemente abusivo, um mecanismo de docilização social. É um processo minucioso e singular, que molda o indivíduo da maneira mais conveniente pelo dominador a fim de extrair progressivamente dele o máximo possível, extirpando suas forças. Foucault identifica diversas instituições de controle disciplinar, como escolas, presídios, quartéis, conventos, hospitais e hospícios, mas pode-se ir além.

Com a promoção desse novo modo de enxergar as relações de poder na sociedade, Foucault questiona o nosso agir cotidiano, muitas vezes mascarado pelas disciplinas, silenciosamente impostas aos cidadãos. De forma contínua, as pessoas ajustam-se às instituições “acima” delas: o aluno à escola, o presidiário à prisão, o empregado à empresa. A violência sequer é necessária. Segundo Foucault, a disciplina é exercida por instrumentos simples: “o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (p. 164). O exame, presente em praticamente todas as instituições disciplinares, é sutil ao unir mecanismos de vigilância, classificação, controle (de finanças, de tempo, de espaço...) e punição, “fabricando” o indivíduo de forma discreta, mas exitosa.

O trabalho análogo ao escravo é um exemplo que segue à risca as definições de Foucault. A empresa exploradora exerce seu poder não só através da evidente opressão: o que é possível perceber é a exata dimensão de “domesticação” e amestramento dos trabalhadores, que passam a submeter-se conscientemente e de forma irracional ao degrau hierárquico superior, como demonstram algumas das infrações cometidas pela empresa. As táticas de controle através da violência, como no escravismo histórico, foram substituídas pela sutileza do exame, que promove um controle social mais efetivo e menos sujeito a questionamentos.

Segundo Foucault, há uma tendência de “panoptismo” na sociedade disciplinar. O panóptico, modelo penitenciário elaborado por Jeremy Bentham ainda no século XVIII – consiste em uma prisão cujo modelo de vigilância não permite que os prisioneiros saibam se estão sendo ou não observados –, é reelaborado por Foucault e expandido para além do presídio: a própria docilização do trabalhador permite a disciplina; atualmente, são poucos os empregados ou estudantes que realmente se importam com a presença de câmeras no trabalho ou na escola. Apenas a presença delas – em muitos momentos, sequer há alguém as monitorando de uma sala de controle –, somada à condição “domesticada” do observado, é suficiente para que a disciplina funcione.

Sobre essas novas formas de disciplina, como as câmeras de monitoramento, a teoria de Foucault é complementada por filósofos como Gilles Deleuze. Deleuze elabora a sociedade do controle, sucessora da sociedade disciplinar:

Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou à rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. (DELEUZE, 1992, p. 3)

Para Deleuze, os controlatos agora não refletem em “maneiras convencionais” como na sociedade disciplinar, mas em cifras, senhas, bancos de dados, documentos numéricos, tecnologia. O próprio direito, para Foucault e Deleuze, constitui-se em disciplina à medida que dispõe de sistemas que administram e controlam, penalmente e psicologicamente, as pessoas.


6. A modernização reflexiva

A partir de Ulrich Beck em sua obra Modernização reflexiva (escrita em conjunto com Anthony Giddens e Scott Lash, outros renomados sociólogos modernos), pode-se estabelecer um novo e importante papel para as instituições jurídicas: o da produção de certezas em uma sociedade invadida pelo risco. A esse conceito desenvolvido pelo autor, somam-se outros dois de fundamental relevância: modernização reflexiva e subpolítica.

Beck é feliz ao observar a sociedade capitalista por outro ângulo. Em vez de estudá-la segundo os já antiquados conceitos surgidos com a urbanização e com o industrialismo, ele propõe uma análise diferente: vive-se hoje em uma sociedade de risco, que precisa conviver com os efeitos e ameaças que ela mesma produziu ao longo do tempo. Esses riscos, indesejáveis e surgidos por intermédio da industrialização e do capitalismo, geram instabilidade social e exigem uma certa “reflexividade”: uma autocrítica da sociedade com o objetivo de questionar suas bases. Surge então a modernização reflexiva, em que a sociedade, em um processo de autodestruição criativa, reformula-se para superar os problemas herdados da sociedade industrial. O termo reflexividade, diz Beck, não implica “reflexão”, mas “autoconfrontação”, como ocorre quando alguém se olha no espelho.

A reestruturação social sugerida por Beck é diferente daquela formulada pelos socialistas, por exemplo. O autor é enfático ao sublinhar o caráter próprio da modernização reflexiva; é o próprio capitalismo que promove essa transformação dinâmica, que permite a abertura de novos caminhos de forma realmente efetiva.

[...] isto significa que não é a luta de classe, mas a modernização normal e a modernização adicional que estão dissolvendo os contornos da sociedade industrial. A constelação que está surgindo como resultado disso também nada tem em comum com as utopias até agora fracassadas de uma sociedade socialista. Em vez disso, o que se enfatiza é que o dinamismo industrial, extremamente veloz, está se transformando em uma nova sociedade sem a explosão primeva de uma revolução, sobrepondo-se a discussões e decisões políticas de parlamentos e governos. (BECK, 1997, p. 13)

Os riscos, segundo Beck, “tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial” (p. 15). Portanto, cai por terra o “risco zero”. A incerteza, antigamente presente na “libertação” da sociedade “religiosa-transcendental” para a sociedade industrial, retorna agora no surgimento da sociedade de risco. Não há mais o “risco zero”, amparado pela política do welfare state e por especialistas que antes transmitiam segurança e mantinham a ordem social intacta. A crítica, autônoma e sem objeto definível, vem de todas as dimensões, dividindo famílias e indivíduos.

A partir desse ponto, Beck introduz um novo conceito, importante para entender como o direito exerce sua tarefa de minimização de riscos, a exemplo do que foi visto no processo envolvendo os trabalhadores escravizados. Com a multiplicação dos riscos, a sociedade, representada pelos indivíduos, é impelida a agir. Surge a subpolítica:

[...] os temas do futuro, que agora estão na boca de todos, não se originaram da previsão dos governantes ou das brigas no parlamento – e certamente também não tiveram sua origem nas catedrais do poder do mundo dos negócios, da ciência e do Estado. Foram colocados na agência social em contraposição à resistência concentrada desta ignorância institucionalizada pelos grupos moralizadores e grupos dissidentes, ambos em dificuldades, disputando uns com os outros o encaminhamento mais adequado, divididos e cheios de dúvidas. A subpolítica conseguiu uma vitória temática absolutamente improvável. (p. 31)

Beck delineia uma clara distinção entre política e subpolítica. Enquanto a primeira – própria da sociedade industrial –, esconde-se em gabinetes e parlamentos, a segunda se utiliza não só de grupos definidos, como antes era comum com ambientalistas, intelectuais e revolucionários políticos, mas de indivíduos, que em uma sociedade permeada pelo risco, ganham voz e promovem uma reconstrução “de baixo para cima” (p. 35) através do “congestionamento” (p. 36), uma espécie de greve involuntária moderna.

A subpolítica, representada pelos setores que na sociedade de risco saem da passividade política, é evidente no caso considerado. Os trabalhadores usurpados, que não teriam nenhuma chance de reivindicação de seus direitos no panorama anterior da sociedade industrial opressora, conseguem na sociedade de risco fazer valer seus interesses através do direito. Este, como guardião de garantias asseguradas, é primordial no exercício reflexivo proposto por Beck. Como instituição política, deve examinar e propor soluções para os riscos – a escravidão e a falta de dignidade no trabalho são exemplos – desenvolvidos pela sociedade que precisa manter a ordem em prol de sua própria longevidade.


6. Conclusão

Diante das teorias explanadas, comprova-se a real presença de preceitos sociológicos em situações de aplicação do direito. O direito, entendido por muitos como mera subsunção do fato à norma que prescinde de relações com outras áreas do saber, como psicologia, filosofia, sociologia e antropologia, é fruto direto da sociedade em que vigora. Ao utilizar-se da sociologia, como foi mostrado ao longo deste trabalho, o direito não só não perde seu foco como é substancialmente enriquecido.

O TST assume uma importante postura humanista ao levar em consideração, ainda que não explicitamente, concepções sociológicas que visam a além da aplicação da lei e estabelecimento de uma punição: o direito, emanação do povo, deve ser a ele destinado – sem que haja exclusão de um ou outro tipo social – e segundo ele construído. Não há direito justo sem uma interpretação que permita a proteção da população, não somente da minoria abastada. A decisão do caso judicial abordado neste trabalho é reflexo de uma análise real da sociedade, colocando o aparato jurídico muitas vezes idealizado e não raramente taxado de “inacessível” em um plano técnico complementar que deve ser alimentador do sentimento de justiça e senso moral.


REFERÊNCIAS

BECK, U; GIDDENS, A; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações, 1972-1990. L’Autre Journal, n. 1, maio 1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2010.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista. São Paulo: Martin Claret, 2005.

MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

REALE, M. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1999.


ABSTRACT

This paper examines a lawsuit about exploitation of labor analogous to slavery in different sociological biases, namely using texts of Karl Marx, Michel Foucault and Ulrich Beck. Using the convergence between law and sociology, seeks to prove the point of view of the authors in social practice and application of theory to the case, eventually justifying the wisdom of the Superior Labor Court that, in an anthropo-sociological approach – very necessary in our times –, kept a high compensation as a form of punishment and social responsibility for the convicted company.

Keywords: law, labor, slave, sociology.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELOS, Gabriel Sousa. A sociologia presente no caso concreto: Marx, Foucault e Beck. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3210, 15 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21515. Acesso em: 22 dez. 2024.

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