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A relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade.

Novo marco jurisprudencial inaugurado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 363889/DF

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22/04/2012 às 15:15
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6.  DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA

Diante do direito fundamental à identidade genética, cuja origem remete ao direito alemão, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, muito se discutiu, em sede doutrinária, sobre a possibilidade de se relativizar a autoridade da coisa julgada nas ações em que a procedência do reconhecimento da paternidade não foi declarada por deficiência de provas, ante a impossibilidade/indisponibilidade da realização do exame DNA.

No entanto, em que pese ainda algum entendimento isolado, hoje, a imensa maioria da doutrina, mesmo entre os processualistas que repelem veementemente a engenho de uma cláusula geral atípica de relativização da coisa julgada, se mostra favorável à mitigação da garantia da coisa julgada material, em ações propostas com o escopo de se discutir, novamente, relação de filiação, quando se alega, na nova demanda, a pretérita impossibilidade de realização do exame técnico.

Por todos – e representante daqueles que rejeitam a criação de uma cláusula geral atípica –, assim se manifesta um dos melhores processualistas da nova geração, Fredie Didier Júnior[18]:

“Não se discute, porém, a necessidade de repensar o instituto, notadamente em razão das inovações científicas, que serve de exemplo o exame genético para a identificação da filiação biológica.”

No âmbito dos Tribunais, não obstante o vale-tudo constatado nas Cortes Estaduais, o posicionamento do STJ, manifestado através de sua Segunda Seção (REsp 706.987/SP), no final da década passada (2008), trouxe uma certa uniformidade jurisprudencial, afastando a possibilidade de mitigação da coisa julgada material em novas demandas, cujo pedido se lastreasse na impossibilidade passada de realização de exame de DNA:

Ementa: PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Coisa julgada decorrente de ação anterior, ajuizada mais de trinta anos antes da nova ação, esta reclamando a utilização de meios modernos de prova (exame de DNA) para apurar a paternidade alegada; preservação da coisa julgada. Recurso especial conhecido e provido.”

Como já assinalado, doutrina – mais permeável aos avanços científicos – e jurisprudência, sobretudo dos Tribunais Superiores, andavam em evidente descompasso, talvez à espera de um pronunciamento definitivo do Guardião da Constituição.


7. NOVO MARCO JURISPRUDENCIAL. POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO RE 363889/DF. NECESSÁRIO AVANÇO AO ENCONTRO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA

Em trecho de seu voto no citado recurso extraordinário, assim assevera o eminente Relator, Minsitro Dias Toffoli, sobre a divergência dos tribunais inferiores quanto ao tema em análise:

“Creio ser conveniente transcrever esses arestos, a despeito de esta Corte não se influenciar por decisões de órgãos que a ela se submetem ao crivo técnico-jurídico, pois eles demonstram o quanto se alastra o problema ora apreciado pelos juízos e tribunais do País. Essa circunstância faz com que se reforce a convicção de que o STF deve exercer sua função de uniformizar a interpretação do direito federal em conformidade à Constituição.”

Nesse rumo de intelecção, o Supremo não se furtou em cumprir seu papel constitucional de intérprete maior da Carta Federal de 1988, assentando, no julgamento do RE 363889/DF, o entendimento segundo o qual pode ser mitigada a garantia da coisa julgada material em ações de investigação de paternidade nas quais não houve procedência do pedido por carência de prova em razão da impossibilidade de se realizar o exame de DNA:

EMENTA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO.  REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA  IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 

1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova.

2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo.

3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável.

4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada.

5. Recursos extraordinários conhecidos e providos.”

Cumpre, então, registrar, diante do novo paradigma jurisprudencial, que, tendo em conta a crescente tendência de objetivação dos processos subjetivos no âmbito da Corte Suprema, com alicerce na doutrina da transcendência dos motivos determinantes da sentença, a discussão sobre a possibilidade de relativização da coisa julgada em ação de investigação de paternidade encontra-se pacificada.

Por fim, um registro importante. A Corte, certamente e acertadamente, não acolheu a sugestão do Ministro Fux, consignada no dispositivo de seu voto-vista, de restringir a possibilidade mitigação da coisa julgada, respeitando, “em qualquer caso, o prazo de dois anos para o ajuizamento de nova demanda”, em analogia ao prazo de dois anos para propositura de ação rescisória nos termos do que dispõe o art. 495 do CPC.


8. CONCLUSÕES

De tudo o que se expôs, fica consignado que, havendo colisão de direitos fundamentais em sede de nova demanda em que se discute direito à filiação, deve a jurisprudência ponderar os bens envolvidos, de sorte a possibilitar a rediscussão da questão da paternidade, nos casos em que não foi emitido juízo de certeza por ausência de provas na ação passada, afastando o instituto da coisa julgada e preservando o direito inalienável do indivíduo de ter  uma paternidade biológica, uma ancestralidade definida, enfim, uma identidade genética.


9. REFERÊNCIAS

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Notas

[1] HARADA, Kiyoshi. Relativização da coisa julgada. Jus Navigandi, Teresina, ano 16 (revista/edições/2011). Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/18940>. Acesso em : 12 abr. 2012.

[2] VOTO-VISTA. Min. Luiz Fux. Transcrições. Informativo 631 do STF.

[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. V. 1. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. P. 525.

[4] LIEBMAN, Enrico Túlio. Eficácia e autoridade da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p.5.

[5] GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. V. 2. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 265-266.

[6] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p.105/132. Apesar de não ser objeto deste estudo a natureza jurídica do processo, importante a colocação para justificar o instituto da coisa julgada.

[7] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 22.

[8] Ob. Cit., p. 527.

[9] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Réquiem para uma certa dignidade da pessoa humana. In família e cidadania, Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, (cood.) Rodrigo da Cunha Pereira, IBDFAM, OAB/MG, Belo Horizonte, 2002. P. 329-330, citando textos jurídicos mundiais em que se utiliza a expressão “dignidade da pessoa humana”.

[10] VOTO-VISTA. Min. Luiz Fux. Transcrições. Informativo 631 do STF.

[11] BREGA FILHO, Vladimir. A relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade. Disponível em: <www.intelligentia juridica.com.br>. Acesso em: 08 out. 2003. P. 1-2.

[12]MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. P. 48.

[13] WELTER, Belmiro Pedro. Coisa julgada na investigação de paternidade. 2. ed. Porto Alegre: Síntese, 2002. P. 113.

[14] RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. V. 2. São Paulo: Max Limonad, 1952. P. 542.

[15] Ob. Cit., p. 42

[16] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. P. 39-40

[17] Ob. Cit., p. 43.

[18] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil.4ª. ed.  Bahia: juzPodivm, 2009. P. 447

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Sobre o autor
Alexandre Silva Avelar

Advogado da União. Especialista em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELAR, Alexandre Silva. A relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade.: Novo marco jurisprudencial inaugurado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 363889/DF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3217, 22 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21577. Acesso em: 22 nov. 2024.

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