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Lei nº 12.653/2012: criminalização do “condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial”

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A criminalização da exigência de cheque-caução para atendimento de saúde em situações emergenciais será capaz de inibir a prática deste comportamento?

Em 29 de maio de 2012, foi publicada no Diário Oficial da União a sanção da Lei n. 12.653, de 28 de maio de  2012, que acrescentou o artigo 135-A ao Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para tipificar o crime de condicionar atendimento médico-hospitalar emergencial a qualquer garantia.

O novo tipo penal, que recebeu o nomem juris de “condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial” pelo legislador penal, passou a incriminar a seguinte conduta:

“Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”.

Segundo a descrição típica empregada, extrai-se que a objetividade jurídica tutelada pela norma penal incriminadora é a vida e a saúde da pessoa humana. Esta noção é reforçada pelo fato de que o tipo penal foi inserido no Capítulo III, do Título I, do Código Penal (“Da periclitação da vida e da saúde”).

Quanto ao sujeito ativo do delito, chega-se a conclusão de que qualquer pessoa pode praticar a conduta incriminada. Portanto, esta nova figura penal pode ser classificada como “crime comum”. Necessário lembrar que, se o agente tem o dever de agir para evitar o resultado, poderá ser responsabilizado na forma do artigo 13, parágrafo segundo, do Código Penal, restando afastada a figura típica prevista no artigo 135-A.

Por outro lado, com relação ao sujeito passivo desta norma penal incriminadora, admite-se como vítima do crime qualquer pessoa humana que esteja necessitando de atendimento médico emergencial. Ressalta-se que, se o sujeito passivo for considerado idoso (artigo 1º, da Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003 – Estatuto do Idoso), a conduta poderá ser tipificada no artigo 97, da mesma Lei.

O núcleo do tipo objetivo consiste na figura “exigir”, que significa impor, ordenar, reclamar. A conduta pode ser praticada pelo próprio agente (forma direta) ou por interposta pessoa (forma indireta); de maneira explícita ou implícita. Salienta-se que é de todo indispensável para a configuração deste crime, que as exigências mencionadas no tipo penal, figurem como condição prévia para o atendimento médico emergencial, ou seja, é necessário que o agente faça a exigência como condição para o pronto atendimento da vítima.

O tipo penal prevê, alternativamente, duas modalidades de prática desta conduta punível. A primeira modalidade descrita, pune aquele que exige garantias como condição para atendimento médico emergencial.

A garantia inaugural descrita na norma penal incriminadora consiste no chamado cheque-caução, i.e., o cheque emitido em favor de um dos contratantes como garantia de adimplemento. Necessário lembrar que o cheque caução, prática ordinária perpetrada nos mais variados segmentos do meio comercial ou empresarial, afigura-se como fruto de costume contra legem, pelo que segundo o Direito Cambial, o cheque seria uma ordem de pagamento à vista.

Além disso, alternativamente, a exigência poderá incidir sobre nota promissória, que é um título de crédito, consistente em um promessa de pagamento, em que seu emitente assume a obrigação direta e principal de pagar o valor expresso na cártula.

Por derradeiro, o legislador penal utiliza-se da fórmula “ou qualquer garantia”, expressão que possibilita ao aplicador da lei penal o uso da chamada interpretação analógica, integrando neste conceito, por exemplo, o “instrumento particular de confissão de dívida”, entre outras hipóteses.

A segunda modalidade de prática da conduta descrita no tipo, consiste na exigência de  “preenchimento prévio de formulários administrativos”, como condição de pronto atendimento da vítima. O legislador penal espanca qualquer dúvida. A norma penal impõe ao agente o dever de atendimento emergencial, independentemente de qualquer condição pecuniária ou administrativa. Por óbvio, os estabelecimentos de saúde devem escriturar os atos praticados, e qualificar precisamente os pacientes atendidos, porém nos casos emergenciais, a norma impõe ao agente o dever de, em um primeiro instante, providenciar o efetivo atendimento da vítima, e apenas posteriormente, lhe é dado o direito de se preocupar com a adoção dos procedimentos administrativos próprios de qualquer estabelecimento hospitalar, inclusive aqueles destinados ao efetivo pagamento devido pela prestação do serviço.

Ainda sobre o tipo penal objetivo, faz-se necessária uma última nota. Observa-se que o legislador penal empregou a expressão “atendimento médico-hospitalar emergencial”, elemento que integra o tipo e merece interpretação. Segundo o “Protocolo Internacional de Atendimento Pré-Hospitalar”, um caso será considerado como uma “emergência”, quando há uma situação de risco à vida da vítima. Por outro lado, deixa de ser assim considerada, e passa a ser considerado “urgência”, se não há risco à vida do paciente. Assim sendo, de acordo com o tipo penal descrito no artigo 135-A, conclui-se que o legislador criminalizou apenas as condutas que envolvem situações emergenciais, ou seja, aquelas que expõe a um determinado risco a vida da vítima.

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Com relação ao tipo subjetivo, a conduta é punida a título de dolo, i.e., a vontade livre e consciente de expor a perigo a vida ou saúde da vítima. Assim, segundo classificação doutrinária, pode ser qualificado como dolo de perigo abstrato, rechaçado por expressiva parcela da doutrina, que certamente preferirá o emprego do dolo de perigo concreto, pelo qual deverá ser demonstrado em cada caso, que como decorrência das exigências do agente, a vítima foi exposta a efetivo risco. Nota-se que, pela construção típica, são admitidos tanto o dolo direto como o eventual.

O delito em estudo é classificado como um crime formal. Logo, a sua consumação se dá com a efetiva exigência de oferecimento das garantias descritas ou preenchimento prévio de formulários administrativo, independentemente de qualquer resultado com relação à vida da vítima. A tentativa é tecnicamente viável, caso a conduta não seja praticada de forma verbal.

No parágrafo único do artigo 135-A, o legislador penal prevê duas formas qualificadas do crime: “a pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte”. Tratam-se de crimes preterdolosos, ou seja, para que as formas qualificadas sejam aplicadas, é necessário que os resultados agravados tenham sido causados culposamente.

No artigo 2º, da Lei n. 12.653, de 28 de maio de  2012, o legislador editou uma norma que cria uma obrigação administrativa para os responsáveis pelos estabelecimentos de saúde, nos seguintes termos:

“Art. 2º. O estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a seguinte informação: 'Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal'”.

Observa-se que, em caso de descumprimento desta obrigação imposta, a norma não trouxe previsão de qualquer sanção, delegando ao Poder Executivo Federal a tarefa de regulamentar o dispositivo.

Aparentemente, a criação deste novo tipo penal teve como inspiração um caso que ganhou repercussão nos diversos meios midiáticos. No Distrito Federal, em 19 de janeiro de 2012, o então Secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, acometido de infarto agudo do miocárdio  foi encaminhado, sucessivamente, a dois estabelecimentos de saúde, porém por não contar com talonário de cheques naquele momento, não obteve o necessário atendimento emergencial. Encaminhado para um terceiro estabelecimento de saúde, seu quadro clínico já era muito mais grave, e os médicos não conseguiram reverter o processo que o levou a óbito.

Assim sendo, como conclusão, forçoso é indagar: a criminalização textual da exigência de qualquer garantia, como condição para atendimento em situações emergenciais, terá o condão de inibir a prática deste comportamento? O passar do tempo nos responderá.


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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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Sobre o autor
David Pimentel Barbosa de Siena

É mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Strong Business School e tutor da Rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIENA, David Pimentel Barbosa. Lei nº 12.653/2012: criminalização do “condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3254, 29 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21900. Acesso em: 29 mar. 2024.

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