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Primeiras impressões sobre o novo artigo 135-A do Código Penal, criado pela Lei nº 12.653/12

05/06/2012 às 09:10
Leia nesta página:

O legislador visa com o tipo penal evitar a lesão aos bens jurídicos incolumidade física, saúde e vida mediante o protelamento do atendimento emergencial. O crime só resta configurado em caso de emergência e não de urgência.

CONDICIONAMENTO DE ATENDIMENTO MÉDICO HOSPITALAR EMERGENCIAL (ART. 135-A, CP)

1)                 CONCEITO

O crime previsto no artigo sob comento, incluído no Código Penal pela Lei 12.653/12, consiste na exigência de cheque-caução, nota promissória ou qualquer outra garantia como condicionante para o atendimento médico-hospitalar emergencial. Assim também prevê como criminosa a conduta de exigir o preenchimento prévio de formulários administrativos nas mesmas circunstâncias.

Pode-se dizer que o tipo penal tem a natureza jurídica de uma espécie de “omissão de socorro de forma vinculada”, pois que o atendimento é negado ou protelado mediante as exigências acima arroladas, de modo a colocar em risco a incolumidade física, a vida e a saúde das pessoas que necessitam de socorro emergencial.

A distinção do crime de omissão de socorro previsto no artigo 135, CP deve-se aos seguintes fatores:

A omissão de socorro é crime comum, enquanto que o artigo 135-A, CP descreve crime próprio (médicos, funcionários hospitalares, administradores hospitalares, enfermeiros). Também a omissão de socorro é de forma livre, enquanto que esse crime é de forma vinculada, pois que o atendimento deixa de ser prestado devido às exigências financeiras ou burocráticas descritas na lei. É interessante notar que a omissão não é propriamente descrita no tipo penal, mas se acha subjacente à sua descrição na medida em que as exigências indevidas e inapropriadas são condição para o atendimento, levando o intérprete a perceber que todo o mal se acha na ausência de socorro imediato motivada pelas citadas exigências espúrias.


2) OBJETIVIDADE JURÍDICA

Os bens jurídicos tutelados são a incolumidade física, a saúde e a vida das pessoas que não recebem o atendimento adequado e temporâneo devido a exigências de garantias financeiras ou meramente burocráticas. Não se trata de criminalizar a mera conduta de exigir garantia financeira ou o preenchimento de formulários para atendimento médico hospitalar, o que seria confundir Direito Penal com questões administrativas e civis. O legislador visa com o tipo penal evitar a lesão aos bens jurídicos acima mencionados, mediante o protelamento do atendimento emergencial. Essa é a verdadeira teleologia do dispositivo.

Infelizmente fez-se necessária a criminalização dessa conduta que deveria ser afastada pelo simples bom senso e humanidade por parte das pessoas que lidam com o atendimento emergencial médico-hospitalar. É que essas exigências espúrias constituem rotina em hospitais e outros locais de atendimento.

A questão já era enfrentada no âmbito consumerista pelo artigo 39, CDC (Lei 8.078/90) que estabelece que “a exigência de garantia para o atendimento é prática abusiva que expõe o consumidor a desvantagem exagerada, causando desequilíbrio na relação contratual”. Também o Código Civil de 2002 prevê a possibilidade de anulação do negócio jurídico devido a vício relativo a estado de perigo. Por fim a Resolução Normativa 44/03 da Agência Nacional de Saúde Complementar já vedava essa prática em seu artigo 1º, configurando-se, portanto, também como ilícito administrativo (CUNHA, 2012). Mas, parece que, tendo em vista ser essa prática tão comum, foi realmente necessário apelar para o Direito Penal a fim de tutelar a saúde dos brasileiros frente a abusos incontidos. Nesse caso específico, o legislador brasileiro passou por todo um caminho respeitante da fragmentariedade e “ultima ratio”, restando comprovado que os demais campos não deram conta de extirpar essas condutas tão reprováveis.


3) SUJEITO ATIVO

Trata-se de crime próprio, pois que somente poderá ser cometido por médicos, enfermeiros, administradores ou funcionários hospitalares.


4) SUJEITO PASSIVO

Qualquer pessoa necessitada de atendimento médico hospitalar emergencial que seja submetida às exigências legalmente vedadas.


5) TIPO OBJETIVO

O crime se configura mediante a negativa ou protelamento do atendimento emergencial que é condicionado pelo agente às seguintes exigências:

a) Fornecimento pela vítima, familiares ou responsáveis de cheque – caução, ou seja, cheque dado como garantia de pagamento de futuras despesas hospitalares e/ou médicas.

b) Fornecimento de Nota Promissória com os mesmos fins.

c) Fornecimento de qualquer outra garantia semelhante como depósito prévio em dinheiro, depósito de objetos de valor etc.

d) Mesmo sem exigência de garantias ou em conjunto com essas, também constitui crime condicionar o atendimento emergencial ao preenchimento burocrático prévio de formulários administrativos.

Realmente não tem cabimento que a vida, a integridade física e a saúde das pessoas sejam colocados em segundo plano frente a interesses financeiros e/ou meros procedimentos burocráticos que podem ser tomados posteriormente sem qualquer prejuízo.

O verbo do tipo é “exigir”, de modo que a mera “solicitação”, sem condicionamento do atendimento constitui fato atípico (CUNHA, 2012).

É interessante anotar que o legislador fez menção somente ao atendimento “médico hospitalar emergencial”, olvidando a questão de eventual atendimento “odontológico emergencial”, como pode ocorrer, por exemplo, em um caso de intensa hemorragia após uma extração dentária. O esquecimento do legislador faz com que a mesma conduta considerada criminosa no atendimento médico hospitalar se torne atípica no âmbito odontológico, pois que não se pode admitir analogia ou interpretação extensiva nesta seara.


6) TIPO SUBJETIVO

O crime é doloso, não havendo previsão de conduta culposa. Ademais, o dolo é específico, pois que a exigência deve ser feita visando o condicionamento do atendimento à sua satisfação. A mera exigência de preenchimento de formulários administrativos ou mesmo de garantia financeira, desde que não condicionando o atendimento da pessoa pode ter repercussões administrativas, civis, consumeristas, mas não penais. Aliás, parece que a exigência de preenchimento de formulários sem condicionar o atendimento prévio a isso não constitui qualquer ilícito, seja penal, civil, administrativo ou consumerista. Apenas a exigência de garantias financeiras pode configurar ilícitos administrativo, civil ou consumerista, desde que realizada de forma abusiva.

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7) CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

O crime é formal e se consuma com a mera exigência. Como todo crime formal, a tentativa é, em tese, possível, mas somente na forma escrita. Portanto, o crime está consumado com a exigência, pouco importando se a vítima acaba sendo atendida com ou sem o preenchimento dos formulários ou o fornecimento das garantias. Eventual não atendimento configurará exaurimento do crime.

Haverá certamente, como prevê Rogério Sanches Cunha, discussão doutrinária acerca da natureza de crime de perigo abstrato ou concreto referente ao tipo penal em análise (CUNHA, 2012). Entendemos que, de acordo com a descrição e elementos típicos colacionados pelo legislador, o crime é de perigo concreto. Isso porque as exigências são vedadas com relação ao atendimento médico hospitalar “emergencial” e não de modo geral. Isso indica que o legislador pretende incriminar somente a conduta que gere perigo concreto porque a pessoa necessita de atendimento imediato, emergencial, de modo a não se contentar com a mera “presunção de perigo” que poderia existir em atendimentos não emergenciais. Na verdade, as exigências sobreditas, se feitas em atendimentos normais (fora dos casos de emergência) não configuram crime, podendo, eventualmente ser encaradas como meros ilícitos administrativos, civis ou consumeristas, desde que abusivamente realizadas, conforme acima já consignado.

É relevante lembrar que na área da saúde costuma-se fazer distinção entre “urgência e emergência”. A urgência ocorre quando o paciente tem um quadro que exige atendimento imediato. No entanto, sua condição não é de intensa gravidade nem corre risco de morte. Uma fratura de um dedo da mão é um caso de urgência, mas não de emergência. Na emergência o atendimento tem de ser imediato, há risco de morte ou lesão à saúde do paciente. Uma hemorragia grave é uma emergência, pois neste caso há risco de morte em caso de negligência no atendimento ou mesmo demora.

Tendo em vista essa distinção usual é preciso ter em mente que as exigências sobreditas somente poderão configurar o crime do artigo 135-A, CP se o caso for de “emergência” e não de “urgência”, vez que a interpretação penal deve ser restritiva e não admite analogia “in mallam partem”.

É perceptível que o tipo penal em questão é prenhe de elementos normativos que começam com as garantais (cheque-caução, nota promissória ou qualquer outra garantia – necessidade de interpretação interdisciplinar com o Direito Civil e o Direito Comercial), passam pelos formulários administrativos (necessidade de interpretação com base em normas administrativas) e chegam finalmente à questão do conceito médico de “emergência” que deve ser buscado na teoria respectiva, conforme acima demonstrado.

Frise-se, porém, que não é necessário que haja efetiva lesão para que o crime se configure. Conforme já dito, trata-se de crime formal e de perigo, que se perfaz com a mera “exigência” indevida. Se houver lesões leves isso poderá ser levado em consideração na dosimetria da pena nos termos do artigo 59, CP. Assim também em caso de lesões graves ou morte há previsão de aumentos de pena no Parágrafo Único do artigo 135-A, CP.


8) AUMENTOS DE PENA

O Parágrafo Único do artigo 135-A, CP prevê duas causas especiais de aumento de pena. A pena é duplicada se da negativa do atendimento decorre lesão corporal de natureza grave e é triplicada se resulta morte. Esses resultados são preterdolosos, de modo que as formas qualificadas jamais admitem tentativa.


9) PENA, AÇÃO PENAL E COMPETÊNCIA

A forma simples do “caput” tem pena de “detenção, de 3 meses a um ano e multa”, constituindo-se em infração de menor potencial ofensivo, afeta aos Juizados Especiais Criminais nos termos do artigo 61 da Lei 9099/95.

Já as formas qualificadas previstas no Parágrafo Único variam. A qualificadora referente às lesões graves eleva a pena máxima para 2 anos, de modo que segue configurando infração de menor potencial. Por outro lado, a qualificadora da morte eleva a pena máxima a 3 anos, de forma a superar o patamar máximo admissível pela Lei 9099/95. Assim sendo a competência será do Juízo Comum.

Em qualquer de suas formas, simples ou qualificadas, a ação penal será pública incondicionada.


REFERÊNCIAS

CUNHA, Rogério Sanches. Novo artigo 135 – A: condicionamento de atendimento médico hospitalar emergencial. Disponível em www.atualidadesdodireito.com.br/rogeriosanches/ . Acesso em 02.06.2012. 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre o novo artigo 135-A do Código Penal, criado pela Lei nº 12.653/12. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3261, 5 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21929. Acesso em: 21 nov. 2024.

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