7. CORRENTES DOUTRINÁRIAS
Atribui-se a denominação de “corrente doutrinária” à exegese de determinado texto legal que apresenta regularidade em uma parcela considerável dos interpretadores da lei. A seguir, são tecidas breves considerações sobre as correntes doutrinárias que tratam da aplicação ou não dos institutos despenalizadores previstos na lei dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Militar.
7.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CORRENTE CONTRÁRIA À APLICAÇÃO DA LEI 9.099/95 NA JUSTIÇA MILITAR
Os adeptos dessa corrente alegam a especialidade da lei penal militar como fator impeditivo da aplicação dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 na Justiça castrense, baseando-se no pressuposto de que o legislador infraconstitucional pretendeu que fossem aplicados tão somente nos crimes da competência da Justiça Ordinária, tal como dispõe o artigo 1º da lei 9.099/95.
Assim é o entendimento de Chaves (2003, p. 31):
A Justiça Militar é especial, em razão dos princípios que a regem, a disciplina e a hierarquia, que a diferenciam da justiça comum, tanto que o juízo é formado pelos pares do infrator, que conhecem as peculiaridades da função militar para julgá-lo. Então, não é o procedimento que é especial, mas a Justiça que o é.
A Lei 9.099/95 veio disciplinar o procedimento comum, que constitui a grande maioria dos processos. Sua finalidade foi esvaziar as cadeias, que estavam cheias de presos, por crimes de menor potencial ofensivo e tinha que se dar uma resposta mais efetiva à criminalidade mais violenta.
Vê-se que a especialidade da Justiça Militar está relacionada aos bens jurídicos próprios que são tutelados pelo Código Penal Militar, os quais, por sua vez, relacionam-se com a preservação dos princípios fundamentais da hierarquia e disciplina das Instituições militares.
O autor citado, mesmo após o advento da Lei 10.259/01, que ampliou o conceito de infrações de menor potencial ofensivo e eliminou deste a exceção anteriormente feita às infrações que são reguladas por procedimento especial, manteve o seu posicionamento alegando a natureza diferenciada da Justiça Militar em relação à Justiça Ordinária, o que afastaria a aplicação da Lei 9.099/95 naquela jurisdição:
Os Processos da Justiça Militar não se enquadram na categoria de procedimentos especiais regulados no Código de Processo Penal ou leis extravagantes, pois ela, a Justiça Militar é que é especial, como o são a Justiça Eleitoral e a Trabalhista, sem que os seus procedimentos sejam considerados especiais, mas as próprias justiças citadas é que são especiais. (CHAVES, 2003, p. 31)
Nessa corrente doutrinária, ressalta-se a indisponibilidade da ação penal militar, que, em todos os crimes militares, é pública incondicionada de acordo com o artigo 29 do CPPM. Assim, seria incompatível o instituto da representação com a legislação penal militar, tendo-se em vista que a vítima não poderia retirar do Ministério Público Militar a análise dos pressupostos para se dar início à persecução criminal.
A ação penal militar é indisponível; são todas de natureza pública incondicional (sic). O militar, enquanto tal, está sujeito a um regime jurídico próprio e específico, cujas bases são a hierarquia e a disciplina militares. Daí, a existência de uma justiça especializada e uma legislação penal militar própria a esta finalidade. (SOARES, 2002, p. 27)
Nascimento (1998) destaca que “o direito penal militar desconhece os institutos do perdão do ofendido, perempção e decadência, inerentes à ação penal privada e pública condicionada”, haja vista que o interesse público na persecução criminal dos autores de crimes militares é indisponível.
No mesmo sentido, Soares (2002, p. 23) relata que não se pode conceber a aplicação do instituto da transação penal nos crimes de competência da Justiça Militar visto que não há previsão no Código Penal Militar da cominação de penas restritivas de direitos e de multa, fato que revela a incompatibilidade do texto da Lei 9.099/95 com o ordenamento jurídico castrense.
Assim, a respeito da Lei 9.839/99, os nobres defensores da presente corrente doutrinária reputam que essa lei veio ao encontro dos princípios norteadores da Justiça Militar, consagrando o entendimento do STM e eliminando as controvérsias que subsistiam sobre a matéria.
O militar quando pratica crime militar não está na mesma situação de igualdade de quem pratica crime comum. Os bens jurídicos lesados são diversos. Além de ele estar investido do poder da autoridade pública – “potestas publicae auctoritatis” -, está ele submetido a um regime jurídico próprio e específico, conforme prescreve a Constituição da República.
[...] a Lei 9.839/99 não é inconstitucional. Ela não ofende o princípio constitucional da igualdade, da isonomia ou da proporcionalidade. Os tribunais superiores e o próprio Supremo Tribunal Federal, este como guardião da Constituição, vêm, reiterada e unanimemente (sic), decidindo nesse sentido. (SOARES, 2002, p. 27)
7.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CORRENTE FAVORÁVEL À APLICAÇÃO PARCIAL DA LEI 9.099/95 NA JUSTIÇA MILITAR
Para se compreender o raciocínio jurídico que orienta esta corrente doutrinária, faz-se necessário rever a letra dos artigos 88 e 89 da Lei 9.099/95, que se referem, respectivamente, à necessidade de representação nos crimes de lesão corporal leve e culposa e a suspensão condicional do processo.
Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.
Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
(BRASIL, 1995, grifo nosso)
Através da interpretação literal desses artigos, percebe-se que o legislador pátrio pretendeu que esses dois institutos despenalizadores alcançassem, também, tipos penais não abrangidos pelo conceito de infração de menor potencial ofensivo previsto na lei dos Juizados Especiais Criminais. Nessa perspectiva, determinou a representação do ofendido nos crimes de lesões corporais leves e culposas como condição sine qua nom para se dar início à ação penal, bem como estabeleceu a possibilidade do Ministério Público propor a suspensão do processo nos crimes com pena mínima não superior a um ano, tanto nas infrações que se enquadram nas disposições da Lei 9.099/95 quanto naquelas previstas na legislação extravagante e na legislação especial.
Sob esse prisma, há estudiosos do Direito que defendem não existirem óbices à aplicação desses institutos na Justiça Militar, sobretudo nos crimes militares impróprios. Freysleben (1996, p. 35-36), ao comentar um acórdão do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, questionou a não aplicação da lei dos Juizados Especiais na Justiça castrense e ressaltou a celeridade e a efetividade proporcionadas pelo instituto da suspensão condicional do processo e a conveniência da aplicação do instituto da representação nos crimes acidentalmente militares:
[...] a suspensão condicional do processo é sinônimo de Justiça expedida e eficiente, porque dá pronta resposta ao militar infrator, submetendo-o a um período de prova no qual fica sujeito a um comportamento reto, sob pena de ver cassado o benefício. [...]
Ademais, a suspensão condicional do processo, pela sistemática do CPM, somente beneficiará, em sua maioria, os chamados crimes militares impróprios, que, a bem da verdade, são crimes comuns considerados militares em razão de certas circunstâncias de lugar, tempo, pessoa e matéria. Os crimes militares próprios, ou seja, “os que consistem nas infrações específicas e funcionais da profissão do soldado” (Esmeraldino Bandeira, in Tratado de Direito Penal Militar Brazileiro (sic), p. 130, v. 1, parte geral, edição de 1925, Ed. Jacinto Ribeiro dos Santos), e que efetivamente se destinam à tutela dos valores militares, serão na sua grossa maioria, postos à margem do instituto da suspensão do processo, por força do art. 88 do CPM.
No tocante à representação, convenhamos, o acórdão do TJM equivocou-se em seus argumentos. Primeiramente, porque se trata de um crime essencialmente comum, acidentalmente militar, e, portanto, não tem por escopo precípuo a tão decantada preservação de valores da vida militar. [...]
A guisa de argumentação, admita-se que a lesão corporal leve e culposa, enquanto crime militar impróprio, possa conter uma especial tutela de valores militares. Em resposta, tenha-se o fato de que tais delitos, na Justiça Militar, em regra seguem a sina da impunidade, tão farta é a ocorrência da extinção da punibilidade pela prescrição. Assevere-se que, neste particular, em nada a Justiça Militar difere da Justiça Comum e, então, é possível afirmar que o mesmo espírito que norteou o legislador a inovar a norma comum se coaduna com as premências da Justiça Castrense: celeridade e efetividade.
Assim, o douto defensor dessa linha de pensamento comunga do entendimento de que os princípios basilares das Instituições militares são acidentalmente atingidos nos crimes militares impróprios, não sendo plausível atribuir tratamento legal diferenciado e mais gravoso em virtude da condição “militar” do autor do crime, o que constituiria uma frontal ofensa ao princípio constitucional da isonomia.
De acordo com Grinover et al. (2005, p. 230), o crime militar próprio, aquele que somente pode ser cometido pelo militar, justificaria tratamento diferenciado visto que, nesse ilícito penal, há a incompatibilidade dos princípios da hierarquia e disciplina militares com a Lei n. 9.099/95:
O tema, entretanto, não é e nunca será tranqüilo, porque, no que diz respeito aos crimes militares impróprios, não há razão para se impedir a incidência da Lei 9.099/95. O que justificaria tratamento jurídico distinto só é o crime militar próprio. (cf.: “Tratando-se de crime militar impróprio (lesão corporal leve), não há porque obstar a aplicação da Lei 9.099/95 (representação do ofendido), porquanto, nesses casos, inexiste incompatibilidade entre os rigores da hierarquia e disciplina, peculiares à vida castrense, e aquele diploma legal. Precedentes do STF” (STJ, Resp 208.032-DF, rel. Fernando Gonçalves, DJU de 28.08.2000, p. 137).
No mesmo sentido é o pensamento de Dalabrida (2002, p. 18) que entende serem aplicáveis os institutos da representação, da suspensão condicional do processo e, também, da transação penal nos crimes militares impróprios, sob a alegação de que “a vedação constante da Lei nº 9.839/99 traduz discriminação” e, por isso, “será preciso flexibilizar a interpretação, reduzindo o alcance da norma, a fim de adequá-la ao sistema punitivo, compatibilizando-a desta forma com os princípios e garantias constitucionais”.
7.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CORRENTE FAVORÁVEL À APLICAÇÃO DE TODOS OS INSTITUTOS DA LEI 9.099/95 NA JUSTIÇA MILITAR
É justamente no sentido da não conformidade com o princípio da isonomia que os defensores dessa corrente doutrinária alegam a inconstitucionalidade da Lei 9.839/99 e defendem a aplicação, na íntegra, da Lei 9.099/95 na Justiça Militar.
Esta corrente se ancora na conclusão da Comissão Nacional de Interpretação da lei 9.099/95, reunida em Belo Horizonte sob a coordenação da Escola Nacional da Magistratura, em outubro de 1995, cujo item 2 é assim relatado por JESUS (1997, pág.108):
“São aplicáveis pelos juízos comuns (estadual e federal), militar e eleitoral, imediata e retroativamente, respeitada a coisa julgada, os institutos penais da lei 9.099/95, como a composição civil extinta da punibilidade (art.74, parágrafo único), transação (arts.72 e 76), representação (art. 88) e suspensão condicional do processo (art. 89)”.
Antes do advento da Lei 9.839, de 27 de setembro de 1999, de acordo com Resende (1999, p. 23), essa corrente era a que possuía o maior número de adeptos entre os doutrinadores pátrios, os quais eram favoráveis à aplicação da composição dos danos civis (art. 74), da transação penal (art. 76), da representação (art. 88) e da suspensão condicional do processo (art. 89) na Justiça castrense.
Segundo eles, o legislador não poderia consagrar um mandamento legal que não permitisse a aplicação da Lei 9.099/95 na Justiça Militar sob a equivocada alegação desta ser uma justiça especial com princípios norteadores próprios. Os institutos despenalizadores da lei dos Juizados Especiais Criminais, por serem mais benéficos ao agente e estarem de acordo com a moderna política do consenso na administração da justiça penal, não poderiam ser excluídos do âmbito da Justiça castrense, sob pena de se infringir o princípio constitucional da isonomia.
Nesse sentido, Maciel (2001) defende com veemência a inconstitucionalidade da Lei 9.839/99 e, no seu raciocínio, expõe as peculiaridades da atividade dos policiais militares cuja profissão os obriga a trabalhar no limiar que separa o que é legal do que é ilegal:
[...] entendemos que é possível a aplicação da lei [9.099/95] ao Código Penal Militar, porque a vedação se nos apresenta com um forte colorido de inconstitucionalidade. Tanto a anterior vedação, entendida pelos aplicadores, aquela que se assentava na parte final do art. 61, quanto a atual, agora expressa em lei pelo art. 90-A, criado pela “famigerada” lei 9.839/99, estão a gravitar indevidamente. E defendemos tal postura desde antes, desde o início da vigência da lei original, porque ela não vedava e, ao intérprete era vedado vedar sua aplicação. E agora, mais veementemente, porque a Lei de 1999 fere os princípios fundamentais estampados nos incisos II, III e IV da Constituição; ou o destinatário da norma por usar farda em seu trabalho não é cidadão, não é humano, e portanto indigno do alcance dos benefícios da lei, e o seu trabalho, em lugar de valorizá-lo socialmente o exclui, e excepciona do alcance do que o poderia, legalmente e sem privilégio, beneficiar. Assim pensamos a partir da Constituição e da lei. E mais ainda, além de ferir os princípios, o que é inadmissível em um Estado Democrático de Direito, o legislador infraconstitucional abandonou de vez o entendimento de que “todos são iguais perante a Lei”, (e a Lei 9.099/95 pelo menos assim é intitulada), “sem distinção de qualquer natureza”, deixando à margem do processo legislativo direitos e garantias “fundamentais”. Ou seja, a Constituição não foi a base para a atividade legislativa, sequer os princípios que a informam foram invocados para se legislar. Ou o fato de se ser Policial-Militar gera uma diferença tal que os benefícios da Lei não lhe podem socorrer? Justo ele que se põe cara-a-cara com o delito, em situação de risco, em nome da sociedade e do Estado, no limite entre a ação legal e a delituosa, não por vontade própria, mas no cumprimento de um dever. (MACIEL, 2001, p. 16-17, grifo do autor)
Na justiça militar emergiu diversos entendimentos que extrapolaram o limite da doutrina e adentrou o universo da jurisprudencial, resultando em posicionamentos antagônicos acerca da aplicação daquele instituto no âmbito castrense.
Nos julgados do STF, observa-se:
Ementa. Reclamação julgada procedente, visto haver o Conselho de Justiça Militar recusado, em abstrato, a aplicação, aos crimes militares, da Lei nº 9.099/95 (art.89), em desfio ao hábeas corpus (HC 77.036) concedido pelo Supremo Tribunal. ( STF-Pleno – Reclamação nº 1.046-5-AM, Relator Octávio Gallotti, julgado em 24.06.1999, unânime).
No mesmo sentido:
Ementa. Penal. Processual Penal. Hábeas Corpus. Militar. Homicídio culposo. CPM art. 206. Suspensão Condicional do Processo. Lei 9.099/95, art.89.
I- Aplica-se ao processo militar o art.89 da Lei 9.099/95, que prevê a suspensão condicional do processo ( ou sursis processual). Precedente: RHC 74.547-SP, Rel. Min. Octávio Gallotti, “DJ” 20/05/97; HC 75.706-AM, Min. Maurício Corrêa, “DJ” 19/12/97.
II- HC deferido. ( STF- 2ª Turma- HC nº 77.037-6-AM, Relator Min. Carlos Velloso, julgado em 16 de junho de 1998, unânime).
Estes julgados sacramentam a aplicabilidade de institutos dos juizados especiais na justiça militar em observância ao princípio da isonomia.
Assim, os doutos defensores da presente corrente doutrinária advogam que os institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/95 devem ser aplicados nos crimes impropriamente ou propriamente militares que se enquadrem no conceito de infração de menor potencial ofensivo, nos termos do artigo 61, ou que preencham os requisitos do artigo 89, ambos do referido texto legal.
7.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CORRENTE QUE DEFENDE A APLICAÇÃO DA LEI 9.099/95 NA JUSTIÇA MILITAR CONFORME O CASO CONCRETO
Essa nova corrente doutrinária é citada por Rosa (2005) e defende que a lei dos Juizados Especiais Criminais pode ser aplicada nos crimes da competência da Justiça Militar de acordo com o caso concreto. Assim, após uma avaliação da presença dos pressupostos da lei, da dimensão da violação dos princípios da hierarquia e disciplina militares e da medida necessária de reprovação ao crime militar praticado, seria elaborado, pelos Juízes e pelos Conselhos de Justiça, o juízo a respeito da aplicação ou não da Lei 9.099/95 na infração penal sob apreciação.
A quarta corrente, que também vem ganhando força, entende que a aplicação ou não da Lei nº 9.099/95 depende do caso concreto praticado por militar, se este preenche os requisitos objetivos e subjetivos estabelecidos na lei e se a medida a ser aplicada servirá de reprovação ao ato praticado.
Além disso, para a concessão dos benefícios estabelecidos na Lei, deve-se analisar ainda se houve ou não violação aos princípios de hierarquia e disciplina, que são os fundamentos das organizações militares, estaduais ou federais. (ROSA, 2005, p. 188)