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A (não) incidência do Imposto de Renda sobre o auxílio-creche.

O óbvio ululante e a estratégia da marreta

09/07/2012 às 10:46

Resumo:


  • A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais pacificou a questão sobre a não incidência do imposto de renda sobre o auxílio-creche, considerando-o como benefício indenizatório.

  • O auxílio-creche é um benefício previsto na CLT e no ECA, destinado a indenizar os empregados pela falta de creche para crianças de zero a seis anos enquanto os pais trabalham.

  • O entendimento do Fisco Federal de tributar o auxílio-creche como remuneratório é questionável e gera litigiosidade, sendo que a jurisprudência majoritária considera o benefício como indenizatório e não tributável.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A creche para os filhos é um direito do trabalhador, no entanto, como a maioria das empresas e dos órgãos da administração pública direta e indireta prefere pagar a verba a providenciar a creche, entende-se que o benefício tem natureza indenizatória.

Após anos de discussão, provocada pelos recursos protelatórios da União, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, finalmente, pacificou a questão alusiva à (não) incidência do imposto de renda sobre a verba denominada “auxílio-creche”, também conhecida como “assistência pré-escolar”[1].

O auxílio-creche, e as verbas de mesma natureza, como o auxílio pré-escolar, por exemplo, é um benefício previsto expressamente nos artigos 389, §§ 1º e 2º, da CLT[2]; e, 54, inciso IV[3], da Lei 8.069/90 (ECA) e tem, por objetivo indenizar os empregados, e servidores públicos, pela inexistência de local apropriado para as crianças de zero a seis anos de idade enquanto os pais trabalham. Cuida-se de aplicação dos dispositivos constitucionais que mandam dar proteção especial à infância (art. 6, caput[4]; 24, inciso XV[5]; 203, inciso I[6]; e, principalmente, 227[7]).

Como a maioria das empresas, e dos órgãos da administração pública direta e indireta, prefere pagar a verba a providenciar a creche, garantida por lei aos trabalhadores do serviço público e da iniciativa privada, entende-se que o benefício tem natureza indenizatória.

O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, sempre entendeu desta forma, como, aliás, confirmam os sucessivos precedentes da Corte:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. AUXÍLIO-CRECHE. NATUREZA SALARIAL. NÃO-CONFIGURAÇÃO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. CERTIDÃO DA DÍVIDA ATIVA (CDA). REQUISITOS DE CONSTITUIÇÃO. AFERIÇÃO DA CERTEZA E LIQUIDEZ. REEXAME DE PROVA. INVIABILIDADE. SÚMULA N. 7 DO STJ.   

1. Não viola o art. 535 do CPC acórdão que expede motivação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia suscitada.

2. O auxílio-creche não remunera o trabalhador, mas o indeniza pelo fato de a empresa não manter creche funcionando em seu estabelecimento, de tal modo que, por ser considerado ressarcimento, não integra o salário de contribuição, base de cálculo da contribuição previdenciária.

3. (...).

(REsp n.º 412.238⁄RS, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU de 07⁄11⁄2006)

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. AUXÍLIO-CRECHE. NÃO-INCIDÊNCIA.

1. O auxílio-creche constitui-se numa indenização pelo fato de a empresa não manter em funcionamento uma creche em seu próprio estabelecimento.

2. Ante à sua natureza indenizatória, o auxílio-creche não integra o salário-de-contribuição, base de cálculo da Contribuição Previdenciária.

3. (...)

(EDcl no REsp n.º 667.927⁄PE, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJU de 06⁄02⁄2006)

É o que diz a Súmula 310 do Colendo Superior Tribunal de Justiça, em relação às contribuições previdenciárias:

O Auxílio-creche não integra o salário-de-contribuição.

Mesmo assim, o Fisco Federal, a pretexto de regulamentar os artigos 43[8] e 100, inciso I[9], ambos do CTN, e artigos 37[10] e 38[11], da lei 7713/88, através de atos normativos secundários – artigo 43[12] do Decreto 3000/99, do Presidente da República, e artigo 9º, inciso X[13], da Instrução Normativa 15/2001, do Secretário da Receita Federal, gestados e paridos nas entranhas da administração, entende que o benefício tem natureza remuneratória e, portanto, subsume-se na hipótese de incidência do imposto de renda. Deste modo, lança a exigência contra aqueles que não informam a parcela em suas respectivas declarações de ajuste de imposto de renda.

Este entendimento mais do que questionável, data vênia, afronta diretamente jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, conforme acima, além de implicar em severa ofensa ao princípio da legalidade estrita em matéria tributária já que inexiste nos atos normativos supra citados a expressa referência ao auxílio creche, salvo no disposto no artigo 9 º, inciso X, da Instrução Normativa 15/2001, do Secretário da Receita Federal, que, conforme se percebe, jamais poderia inovar a ordem jurídica ao prever a incidência sem um suporte legal primário expresso.

Além disso, conforme se busca demonstrar, a natureza indenizatória do benefício é evidente, eis que o trabalhador, do serviço público, ou do serviço privado, nada mais recebe do que uma recomposição de seu patrimônio, face à ausência de creche no local de trabalho, conforme determina a lei.

Em sendo o auxílio creche uma indenização pela inexistência, na maior parte dos casos, da creche garantida pela lei, não se poderia cobrar o imposto de renda sobre tal parcela sob pena, inclusive, de ofensa à Carta da República que estabelece o conceito constitucional de renda (art. 153, inciso III).

Insta observar que seria preferível, do ponto de vista da proteção da infância, o fornecimento in natura da creche, posto que os valores pagos aos trabalhadores, em geral, são ínfimos. No âmbito da União[14], por exemplo, paga-se o valor de R$ 95,00 (noventa e cinco reais) por criança sendo que o trabalhador retribui com R$ 28,50 (vinte e oito reais e cinqüenta centavos), ou seja, o valor líquido do benefício implica em R$ 66,50 (sessenta e seis reais e cinqüenta centavos)[15].

É sobre tal valor, já irrisório, que incide, segundo o Fisco Federal, o imposto de renda, reduzindo-se, ainda mais, o valor da parcela e a respectiva proteção constitucional da infância, comprovando-se, aqui o caráter mais perverso da interpretação marota da administração pública sobre o que sejam rendimentos tributáveis.

Presume-se que o valor percebido pelo Fisco, a título de imposto de renda sobre tal verba é baixo em números relativos, tendo em vista a arrecadação total da União sobre tal espécie tributária. Não existem números disponíveis sobre o valor total arrecadado em razão desta interpretação discutível, que ora se questiona, mas pode-se dizer que são recursos consideráveis, tendo em vista a amplitude da incidência. Imagine-se que o imposto de renda vem incidindo sobre o auxílio creche de milhões de trabalhadores dos setores público e privado, o que significa dizer que arrecadação total não é desprezível, em números absolutos, e certamente o Fisco Federal não pretende abrir mão de tais recursos, ainda que seja em prejuízo de direitos fundamentais inalienáveis do contribuinte.

Quem pode se defende. A litigiosidade do Poder Público obriga o cidadão a ir para a Justiça.

Estabeleceram-se, deste modo, centenas de milhares de litígios, que atualmente tramitam na Justiça Federal, onde os contribuintes tentam, algumas vezes em vão, demonstrar uma obviedade: verbas indenizatórias não constituem-se  no suporte material autorizado pela Constituição para a configuração do fato gerador do imposto de renda.

O auxílio creche não é rendimento tributável, já que não se subsume no disposto em quaisquer dos incisos do artigo 43 do CTN, razão pela qual a exigência tributária não poderia ser lançada contra os trabalhadores públicos e privados. Conforme realçado pela Juíza Federal Vanessa Vieira de Mello, relatora nos autos 2008.70.50.025460-7, da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais:

(...) nos termos do artigo 43 do Código Tributário Nacional, o imposto de renda tem como fato gerador o "acréscimo patrimonial", assim entendido o acréscimo ao patrimônio material do contribuinte, o quê (...) não se encaixa na definição do auxílio-creche, que constitui simples reembolso de despesas efetuadas pelos servidores (...).

Este óbvio é ululante, ainda que não se pretenda, com este texto, descartar como válidas as interpretações do Fisco sobre inúmeras outras matérias de natureza tributária. Certamente, a existência de um direito tributário com algum critério científico no Brasil deve-se, também, ao excelente quadro de profissionais da Fazenda Nacional, mas bem sabe-se que, em inúmeras oportunidades, os critérios políticos prevalecem sobre outras considerações, o que é notório e historicamente comprovado (vejam-se os casos do empréstimo compulsório sobre os combustíveis, a declaração de constitucionalidade da substituição tributária, a “renovação” da CPMF, etc.).

Portanto, não se busca desconsiderar o caráter dialético do direito, muito menos de restringir as possibilidades de interpretação do Fisco, sobretudo em face do caráter social que o crédito tributário encerra. Muito pelo contrário. Aliás, busca-se, neste artigo, apenas contribuir para o debate público em matéria de direito tributário já que a incidência tributária manifestamente indevida atenta contra a liberdade do indivíduo em face do Estado, além de franca ofensa a outros direitos fundamentais de igual importância.

Além disso, a exigência tributária indevida atenta contra a legitimidade do Estado Tributário, já que, ao atuar fora do Estado de Direito, a administração tributária revela a face mais autoritária do exercício do poder, especialmente por desconsiderar os limites deferidos pela própria Constituição.

E aqui entra a “estratégia da marreta”, ardilosamente utilizada pelo Fisco Federal neste caso. Protegido pela cláusula da presunção de legitimidade dos atos da administração pública, a Fazenda Nacional prossegue no lançamento do imposto de renda sobre o auxílio creche fiando-se na boa-fé do trabalhador brasileiro, que via de regra confia no Poder Público, e, também, na morosidade do Poder Judiciário em solver a questão[16].

Ainda, em matéria de Poder Judiciário, fia-se a Fazenda Nacional na sensibilização dos julgadores mediante argumentos pré-jurídicos, como por exemplo, possibilidade de “quebra” do Estado se tiver que suportar uma condenação muito elevada, o quê explica as nada saudáveis “modificações de entendimento” operadas de súbito em determinadas matérias. Tais variações de jurisprudência, sempre em favor do Fisco, e ainda que bem intencionadas, atentam contra o regime democrático, que é um dos fundamentos da República[17].

Enquanto isso, a possibilidade de recuperação das parcelas injustamente recolhidas vai se esvaindo pela prescrição e a Fazenda Nacional acumulando argumentos econômicos para conquistar a manutenção da sua interpretação obviamente inconstitucional da incidência do imposto de renda sobre o auxílio creche; ou, na “pior” das hipóteses, alvitra o Fisco obter uma modulação de efeitos, impedindo, assim, a repetição do indébito, ou seja, livrando-se pelo menos da obrigação de proceder à devolução do imposto já recolhido, presenteando, metaforicamente, assim, o contribuinte, o trabalhador brasileiro, com um nariz redondo e vermelho utilizado pelos cômicos conhecidos como palhaços.

O trabalhador brasileiro orgulha-se e torce pela manutenção da decisão da Turma Nacional de Uniformização, no processo 2008.70.50.025460-7, vazada em termos absolutamente jurídicos e justos e que reafirmam o Estado Democrático de Direito que vige no Brasil.

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Notas

[1] A decisão foi proferida, recentemente, nos autos 2008.70.50.025460-7, e o acórdão ainda não foi publicado.

[2] Art. 389 - Toda empresa é obrigada:

§ 1º - Os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação.

§ 2º - A exigência do § 1º poderá ser suprida por meio de creches distritais mantidas, diretamente ou mediante convênios, com outras entidades públicas ou privadas, pelas próprias empresas, em regime comunitário, ou a cargo do SESI, do SESC, da LBA ou de entidades sindicais.

[3] Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;

(...)

[4] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[5] Art. 24 (...)

XV - proteção à infância e à juventude;

(...)

[6] Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

(...)

[7] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[8] Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

§ 1º A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção.

[9]Art. 100. São normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos:

I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;

[10] Art. 37.  Constituem rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões  percebidos em dinheiro, os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados.

[11] Art. 38.  A tributação independe da denominação dos rendimentos, títulos ou direitos, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem dos bens produtores da renda e da forma de percepção das rendas ou proventos, bastando, para a incidência do imposto, o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título.

[12] Art. 43.  São tributáveis os rendimentos provenientes do trabalho assalariado, as remunerações por trabalho prestado no exercício de empregos, cargos e funções, e quaisquer proventos ou vantagens percebidos, tais como:

(...)

[13] Art. 9º Estão sujeitos à incidência do imposto na fonte, calculado de acordo com a tabela progressiva mensal prevista no art. 24, a título de antecipação do devido na Declaração de Ajuste Anual, os rendimentos do trabalho assalariado pagos por pessoa física ou jurídica e os demais rendimentos pagos por pessoa jurídica a pessoa física, tais como:

(...)

X - salário-educação, auxílio-creche e auxílio pré-escolar (...)

[14] O Decreto 977, de 10 de setembro de 1993 dispõe sobre a assistência pré-escolar destinada aos dependentes dos servidores públicos da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional.

[15] No setor privado o valor do auxílio creche varia conforme os instrumentos de negociação coletiva das diferentes categorias, podendo existir, ou não, retribuição do trabalhador.

[16] O Poder Judiciário Brasileiro, através de suas incontáveis instâncias, levou 17 (dezessete) anos para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da lei 8.212/91, que ofendiam frontalmente a reserva de lei complementar prevista no artigo 146, inciso III, alínea ‘b’, da Constituição e, ainda assim, quando o fez, procedeu à absurda “modulação de efeitos”, o que legitimou prejuízos para milhões de contribuintes que, de boa fé, haviam recolhido contribuições previdenciárias já prescritas ou decaídas. Vide RE’s 556.664, 559.882, 559.943 e 560.626.

[17] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

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Sobre o autor
Rogério Oliveira Anderson

Mestre em Direito. Especialista em Direito Administrativo. Professor do IESB. Advogado. Sócio da Advocacia Carvalho Cavalcante. Procurador do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDERSON, Rogério Oliveira. A (não) incidência do Imposto de Renda sobre o auxílio-creche.: O óbvio ululante e a estratégia da marreta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3295, 9 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22174. Acesso em: 22 dez. 2024.

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