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Aspectos do tratamento legal à embriaguez na direção após o REsp nº 1.111.566

09/07/2012 às 16:23
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Ao tratar da embriaguez ao volante, alguns juízes entendem que a exigência de exames técnicos consiste em hierarquia entre as provas, outros na regra da especificidade. O STJ, no julgamento do REsp nº 1.111.566, uniformizou a jurisprudência.

Recentemente o tratamento estatal, notadamente criminal, da embriaguez ao volante tomou posição de destaque no debate público brasileiro, quando do julgamento de um Recurso Especial do Superior Tribunal de Justiça.

No cenário da discussão, questões como a necessidade de tratamento eficaz por parte da legislação nacional sobre a questão encorparam o pano de fundo de prevenção e educação a respeito da direção de veículo em estado de embriaguez.

O problema é que a motivação primeira da discussão veio embalada pela pretensiosa ilusão de que punição rigorosa reduz a criminalidade, daí severas críticas de diferentes setores da sociedade ao julgamento em comento, todas apontando um erro judiciário no que toca a suposta interpretação benevolente a somente os agentes incursos no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro - CTB.

Não foi, contudo, esta a intenção do colegiado superior, razão pela qual, fitando entender o julgamento, das reflexões a seguir.

Muito bem, discutiu-se no Recurso Especial nº 1.111.566 – DF fatídico ocorrido no Distrito Federal, em data de 03 de abril de 2008, que foi protagonizado por Edson Luiz Ferreira, logo antes da alteração de 20 de junho de 2008 realizada na lei nº 9.503/97 (CTB).

No episódio o protagonista, conduzindo seu veículo automotor, se envolveu em um acidente. Não obstante, tendo em vista o fato de que o tipo penal não especificava quantidade de álcool no sangue, não fora realizado o exame do etilômetro (vulgarmente chamado de “bafômetro”), muito menos o de alcoolemia (coleta de sangue), uma vez que desnecessária, na época, a quantificação.

Desta feita, o ponto nevrálgico da discussão foi justamente a possibilidade de aplicação da lei nova a fato anterior à sua edição, alegando a retroatividade da lei haja vista entendimento de ser esta mais benéfica ao acusado, situação que homenageia, portanto, o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna, previsto, dentre outros, no artigo 5º, XL, da Lei Fundamental.

Entendeu a defesa mais benéfica a lei dada à exigência do exame técnico para a configuração da dosagem de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, enquanto a lei anterior não exigia concentração específica de álcool no sangue.

Já a acusação afirmou mais benéfica a lei anterior dada à necessidade de visível embriaguez do condutor, enquanto a atual exige apenas a concentração de 6 decigramas, abarcando, portanto, situação além da embriaguez, considerando que certas pessoas são mais resistentes ao álcool.

Ressalte-se, por oportuno, que na tipificação pretérita dava-se vazão a eventual discricionariedade dos operadores da persecução penal quando da aferição da situação do condutor, tendo em vista que o testemunho da autoridade policial era, na maior parte das vezes, a única prova do ocorrido.

Não prosperou no julgamento, contudo, a referida argumentação da parte acusadora, tendo o colegiado entendido que, com a aplicação do fenômeno da retroação da lei mais benéfica, atípica é a conduta, e daí a decorrente necessidade de trancamento da ação penal dada à ausência de justa causa (artigo 648, I, Código de Processo Penal).

Entende-se acertada a decisão do Superior Tribunal de Justiça uma vez que, para além das considerações das partes, para este caso concreto a tipificação atual é mais benéfica ao acusado, dada à impossibilidade de constatação da concentração de álcool no sangue, sendo pertinente, portanto, o princípio do estado de inocência.

A questão é que, como leciona Bitencourt (2007), a análise da benignidade da lei deve ter como foco a ocorrência analisada, e jamais um delineamento por parâmetros abstratos da lei, como argumentaram as partes do comentado julgamento.

Noutra perspectiva de análise, importante destacar que se pressupõe nos autos o entendimento de que, logicamente, os únicos meios de constatação da quantidade de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, atualmente exigida pela Lei 9.503/97, elemento do tipo do atual artigo 306 do CTB, são os exames técnicos de alcoolemia e o etilômetro.

Cabe aqui um alerta para esta questão da exigência de prova específica, no caso a técnica, quando em contraste com a garantia da inexistência de hierarquia entre as provas.

É que para a reconstrução pretérica dos fatos, naturalmente que alguns meios de prova possuem maior aptidão para a demonstração do ocorrido, donde da importância da igual garantia do acusado, conforme ensina Oliveira (2009), a chamada regra da especificidade da prova.

Regra esta que, tendo fatores naturais como determinantes de sua incidência, garante maior certeza à prova analisada, não se enquadrando, ainda, no campo de atuação do princípio da não hierarquia entre as provas, que inibe que a ficção jurídica (Lei) promova a aludida hierarquia.

Portanto, em situações como tais, entende-se como bastante temerária a aferição da concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue com tão somente o meio de prova testemunhal, sendo imprescindível qualquer dos exames técnicos referidos alhures, sob pena de ofensa ao princípio do estado de inocência.

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Foi com tudo o acima descrito que o julgamento em comento trouxe a lume a falha da lei, que não pode jamais ser suprida em detrimento de garantias fundamentais do jurisdicionado como as citadas alhures.

Diante deste contexto, mas principalmente pelo clamor midiático que fomenta a exaltação da opinião popular, percebe-se um considerável anseio por severas punições para os condutores de veículos embriagados, tendo inclusive em tramitação no Congresso Nacional numerosas propostas de alteração do artigo 306 do CTB visando o endurecimento da retribuição punitiva.

Ocorre que esta implacável obseção pela punição encobre responsabilidades estatais como a de promover um transporte público digno e seguro para a população, durante vinte e quatro horas diárias; a de garantir segurança para os motoristas do transporte público, dos taxistas e dos mototaxistas, trabalharem em horário noturno; incentivarem com programas mais efetivos, principalmente para os taxistas, de forma a abaixarem o custo de seus serviços, o que garantirá acessibilidade para as classes sociais mais inferiores.

Se estas obrigações estatais estivessem sendo cumpridas, com certeza haveria uma considerável redução não apenas na condução de veículos sob o efeito de álcool e demais substâncias, mas igualmente de acidentes envolvendo veículos automotores, ou mesmo dos tormentosos congestionamentos no trânsito, promovendo o Estado, sobretudo, uma efetiva prevenção de crimes de trânsito.

Contudo, é bastante cômodo também para deputados, senadores, e os próprios profissionais da grande mídia, a exacerbação da penalidade de crimes desta natureza, já que eles dificilmente praticariam o tipo penal.

Ora, quando não andam de avião, helicóptero, ou mesmo em embarcações, possuem motorista particular e condições para arcar com táxi, ou mesmo carros oficiais com motoristas para os aludidos agentes públicos.

Noutra ponta, deve-se destacar a impertinência em valorizar de tal forma crimes de perigo, sobretudo abstrato, vez que, considerando a numerosidade de condutas que reclamam pela tipificação penal, assim como a variedade de segmentos jurídicos passíveis à solução de problemas, entende-se o Direito Penal como o último ramo jurídico para regulamentação de fatos.

Ora, a criminalização de condutas deve ser levada a sério, haja vista ser significativamente custosa tanto para o cidadão quanto para o Estado.

A questão preocupante é que estes projetos de lei, com o discurso de endurecer a punição correspondente ao discutido tipo penal, parece possuir como motivação principal a campanha eleitoral dos congressistas já que atendem ao clamor punitivista desenfreado, promovido pelos desavisados.

Esta situação vem seguida ainda de estratégia de desvio da atenção da população para o que realmente a aflige, ou seja, os chamados crimes de “colarinho branco”, aqueles que possuem como autores a minoria, e vítimas a maioria, como os “Crimes contra a ordem tributária”, os “Crimes contra a Administração Pública”, entre outros. Nestes as punições não são severas!

São estas as questões principais que giram em torno do atual tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, assim como do julgamento do Recurso Especial nº 1.111.566 – DF que visou corrigir a falha do legislador que foi infeliz em exigir a quantidade de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, sem pensar nos legítimos meios de constatação.

Naturalmente que o meio pertinente de correção do erro legislativo não pode ser a supressão dos direitos e garantias individuais do cidadão. Principalmente com o discurso do interesse público, presente em toda e qualquer modalidade de Estado Autoritário, e que nos sistemas penais dos Estados de Direito deve estar sempre em harmonia com aqueles direitos e garantias individuais.

No que toca ao julgamento comentado, faz-se necessário ressaltar ainda a sua importância que foi exatamente a uniformização jurisprudencial, tendo em vista o real desentendimento entre os juízes pátrios, alguns vislumbrando que a exigência de exames técnicos consiste em hierarquia entre as provas, outros na regra da especificidade.

Por fim, em termos de sistema criminal, observa-se que o legislador, com as mencionadas propostas de alteração do artigo 306 do CTB em tramitação no Congresso Nacional, continua a afiliar-se a modelos autoritários e excludentes, tipificando uma numerosidade de crimes que não apresentam real e concreta ofensividade a bens jurídicos (como os crimes de perigo abstrato), e esquecendo de punir condutas que realmente flagelam a população, notadamente os “crimes de colarinho branco”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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Sobre o autor
Núbio P. Mendes Parreiras

Advogado Criminalista no escritório Firme & Xavier Advogados Associados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARREIRAS, Núbio P. Mendes. Aspectos do tratamento legal à embriaguez na direção após o REsp nº 1.111.566. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3295, 9 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22175. Acesso em: 24 abr. 2024.

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