4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há dúvidas sobre a influência da formação familiar sobre a estrutura das sociedades. Se muda a sociedade, importa, necessariamente, na mudança da própria família[23]. Das várias influências que a formação familiar vem sofrendo nos últimos tempos, a intervenção tecnológica demonstra ser a mais forte e a mais efetiva de todas.
A modernidade trouxe, juntamente com as dúvidas já presentes a respeito da concepção do ser humano, um enorme leque de descobertas e pesquisas que envolvem o desenvolvimento de cada indivíduo. Entre elas, está a divulgação do mapeamento do material genético humano no início de 2001. Desde aquele então, certas premissas que historicamente haviam sido erigidas com verdades indiscutíveis foram sendo gradativamente questionadas. Por essa razão, já em 1997, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem proclamou o genoma humano e a informação nele contida como patrimônio comum da humanidade. Com essa declaração foi acrescentada, no âmbito jurídico, uma nova figura: o material genético como sujeito/objeto de direitos.[24]
Internet, sociedade de informação, bebê de proveta, barriga de aluguel, inseminação post-mortem, manipulação genética, alimentos transgênicos, fecundação in vitro, clonagem, genoma humano, eugenia, embriões excedentários. O que todos esses termos têm em comum? Todos esses processos fazem parte da civilização tecnológica, etapa civilizatória na qual a tecnologia atingiu seu mais alto grau de desenvolvimento tecnológico. Se por meio da técnica o ser humano pode conseguir quase tudo que quiser, os limites da ação humana deixaram de ser técnicos e passaram a ser éticos.[25]
Diante das inúmeras transformações ocorridas na sociedade, as relações de filiação passaram a se considerar, em sua essência, desbiologizadas e vistas como função. A partir daí, obrigatoriamente, cabe ao ordenamento jurídico reordenar seus padrões mais elementares, a fim de gerar situações inclusivas para membros oriundos de material genético criopreservado.[26] A intersecção entre afetividade e sanguinidade parece ser a tônica principal dessa nova ordem de ideias que passam a gerir o Direito Privado, tomando por base a hipótese de inclusão de material genético nos tradicionais institutos jurídicos do Direito de Família.
Nítida apenas a certeza de que muito ainda se debaterá sobre a utilização de embriões criopreservados. Poderíamos lembrar, a título exemplificativo, a questão que trata do direito de propriedade do material genético ou sobre embriões, questão de extrema significância e que não foi aqui tratada, haja vista que ao longo desse trabalho nos reservamos a discorrer apenas sobre dados imateriais relativos aos embriões excedentários[27]: Em caso de separação ou divórcio do casal, ou mesmo em hipótese de morte, de quem será o material congelado? Estaria tal material incluído numa determinada sucessão hereditária? Acaso a autorização para utilização desse material genético não tenha sido dada pelo marido ou companheiro, terá havido adultério por parte da esposa ou companheira?
Enfim, sobrevém, como arremate, o pensamento iluminado de Hanna Aredent, sobre a influência de tantas altercações históricas a influenciar a formação pessoal e social do ser humano: “O que proponho é uma reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes. É óbvio que isto requer reflexão; e a irreflexão – a imprudência temerária, ou irremediável confusão ou a repetição complacente de 'verdades' que se tornaram triviais e vazias – parece ser uma das principais características de nosso tempo. O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo”[28].
Notas
[1] Voltou-se, com significativa ênfase, ao debate acerca das células tronco, por conta do julgamento sobre a constitucionalidade de parte da Lei de Biossegurança. Nesse sentido: “A pesquisa com células tronco embrionárias é mais um dos assuntos que deixou o restrito currículo científico para ocupar os noticiários e os debates cotidianos, especialmente após a aprovação da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, denominada Lei de Biossegurança. A regulamentação (ou tentativa de) da matéria, embora represente um marco para o avanço das pesquisas, não se deu de forma adequada e vem provocando divergências.” BARBOZA, Heloísa Helena. Embriões excedentários e a Lei de Biossegurança: o sonho confronta a realidade. In: Família e Dignidade. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. Rodrigo da Cunha Pereira (Coordenador). Belo Horizonte, 2005, p. 457.
[2] Definição de acordo com o art. 3º da Lei nº 11.105/05.
[3] “Em qualquer caso, a retirada de células-tronco provoca a destruição do embrião, o que constitui um atentado à vida, para os que entendem que seu início se dá no momento da concepção, sendo este o núcleo das acirradas discussões que vêm se travando em torno do tema, não solucionadas pela mencionada lei.” BARBOZA, Heloísa Helena. Embriões excedentários e a Lei de Biossegurança: o sonho confronta a realidade. cit. p. 458.
[4] “Ora, sabemos que os problemas ligados à efetivação dos direitos humanos são numerosos, complexos e de natureza diversa. As dificuldades inerentes à plena realização de tais direitos impõem-nos o desafio de repensar os fundamentos , a razão de ser e a plenitude de tais postulados”. PEQUENO, Marconi José P. Filosofia dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos: história, teoria e prática. Giuseppe Tosi (org.) . Editora universitária: João Pessoa, 2005,p. 158.
[5] Extremamente precisa a lição de Paulo Luiz Netto Lobo acerca da modificação da perspectiva aplicada ao direito privado em face da transplantação do Estado Liberal para o Estado Social:
“O Estado liberal, hegemônico no século XIX no mundo ocidental, caracterizava-se pela limitação do poder político e pela não-intervenção nas relações privadas e no poder econômico. Caracterizou o ideário iluminista da liberdade e igualdade dos indivíduos. Todavia, a liberdade era voltada à aquisição, domínio e transmissão da propriedade, e a igualdade ateve-se ao aspecto formal, ou seja, da igualdade formal de sujeitos abstraídos de suas condições materiais ou existências. Mas a família, nas grandes codificações liberais burguesas, permaneceu no obscurantismo pré-iluminista, não se lhe aplicando os princípios da liberdade ou da igualdade, porque estava à margem dos interesses patrimonializantes que passaram a determinar as relações civis”
E segue o ilustre professor alagoano:
“O Estado social, desenvolvido ao longo do século XX, caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes econômicos, tendo por fito a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com intuito de redução dos poderes domésticos, da inclusão e equalização de seus membros, e na compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana.” LOBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 04.
[6]Nesta perspectiva, nada obsta que se fale em dignidade da pessoa humana que ainda virá a nascer, através dos embriões congelados e armazenados. Por isso fundamental a discussão que se travou no Congresso Nacional sobre a utilização das células-tronco, principalmente em face da dúvida relativa ao momento de início da proteção jurídica. Cabe afirmar, pois, que há necessidade de se preservar a dignidade das vidas que podem vir a existir a partir dos embriões preservados.
[7] “Deve-se entender que o Direito de Família, necessariamente, merece ser analisado sob o prisma da Constituição Federal, o que traz uma nova dimensão de tratamento dessa disciplina. Assim sendo, é imperioso analisar os institutos de Direito Privado, tendo como ponto origem a Constituição Federal de 1988, o que leva ao caminho sem volta do Direito Civil Constitucional” TARTUCE, Flávio. Novos Princípios do Direito de Família. Disponível em: www.ibdfam.com.br – acessado em 05-07-2010
[8] “Fundada em bases aparentemente tão frágeis, a família atual passou a ter a proteção do estado, constituindo essa proteção um direito subjetivo público, oponível ao próprio estado e à sociedade. Proteção do estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político e ideológico” Paulo Luiz Netto Lobo
[9] “A repersonalização das relações jurídicas de família é um processo que avança, notável em todos os povos ocidentais, revalorizando a dignidade humana, e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes obscurecida pela primazia dos interesses patrimoniais, nomeadamente durante a hegemonia do individualismo proprietário, que determinou o conteúdo das grandes codificações
[10] LOBO, Paulo Luiz neto. Famílias. cit. p. 49.
[11] “Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filhos, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. O biodireito depara-se com as consequências da dação de sêmen humano ou material genético feminino. Nenhuma conclusão da bioética aponta para atribuir paternidade ao doador anônimo de sêmen. A inseminação artificial heteróloga não permite o questionamento da paternidade dos que a utilizam, com material genético de terceiros.” LOBO, Paulo Luiz neto. Famílias. cit. p. 50.
[12] “O problema da verdade real, que tem sido manejada de modo equivocado quando se trata de paternidade, é que na há uma única, mas três verdades reais: a) a verdade biológica com fins de parentesco, para determinar paternidade – e as relações de parentesco decorrentes – quando esta não tiver sido constituída por outro modo e for inexistente no registro do nascimento, em virtude da incidência do princípio da paternidade responsável imputada a quem não a assumiu; b) verdade biológica sem fins de parentesco, quando já existir pai sócio-afetivo, para fins de identidade genética, com natureza de direitos da personalidade, fora do direito de família; c) verdade sócio-afetiva, em virtude de adoção, ou de pose de estado de filiação, ou de inseminação artificial heteróloga.” LOBO, Paulo Luiz neto. Famílias. cit. p. 50.
[13]“posse do estado de filho é um conjunto de indícios que formam uma situação de fato entre o suposto pai e o pretenso filho” (...) “o tratamento de um em relação ao outro, isto é, o primeiro chama o segundo de filho, e este chama o primeiro de pai.” (Eduardo de Oliveira Leite. Famílias Monoparentais. São Paulo: RT, 2006, p 34)
[14] Sobre esse assunto, assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, em emblemático julgado:
“Na fase atual da evolução do Direito de Família, é injustificável o fetichismo de normas ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo quando em prejuízo de legítimos interesses de menor. Deve-se ensejar a produção de provas sempre que ela se apresentar imprescindível à boa realização da justiça” (Resp. 4.978, 4ª Turma. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, DJU, 26-10-1991, RSTJ, 26/378)
[15] “Nas últimas décadas e em quase todos os países, a presunção pater is est tem recebido limitações e temperamentos, vem sendo abandonada na lei e na jurisprudência. Não se trata de suprimir, de excluir a presunção do direito positivo, mas de possibilitar seu afastamento, facilitando a sua cessação quando a paternidade do marido é impossível ou manifestamente ilegítima.” VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997.
[16] FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. São Paulo: Renovar, 1999, p. 197.
[17] O desfazimento da vinculação exclusivamente sanguínea é fenômeno que se deve, prioritariamente, a utilização de material genético humano por meio de células embrionárias. A partir do uso dessa técnica, o ancestral deixa de se projetar sobre a descendência e passa a valer, paralelamente, outros modelos jurídicos aplicáveis, dentre os quais se destaca, sobremaneira, o vínculo afetivo. Nesse sentido: “O sangue tradicionalmente identifica o tronco ancestral e sela, por linhas e graus, uma situação juridicamente relevante, que trama os laços componentes da família. Linha reta ou colateral, parentes próximos ou distantes, o ancestral se projeta nas ramificações de sua descendência. A identificação procede o surgimento da personalidade civil, e mesmo antes do nascimento biológico há, por prévia determinação, um vínculo jurídico. (...) O conjunto das relações clássicas de parentesco levava em conta uma noção de família que se assentava no casamento exclusivamente e ligava a ideia de casamento à de legitimidade. Se a Constituição de 1988 trouxe uma ruptura desse modelo, consanguinidade e afinidade cabem também serem repensadas.”FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. São Paulo: Renovar, 1999, p. 199.
[18] Casos como este deram ensejo a festejada “teoria da desconsideração da coisa julgada”. Sobre este tema consultar Humbert Theorodo Jr. e Juliana Cordeiro: Desconsideração da Coisa Julgada. Disponível em: www.virtual.pucminas.br.
[19] “A ação negatória de paternidade conduz ao seu final, à extinção do vínculo de filiação.” QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 165.
[20] Art. 1604. CC/02 : “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.”
[21] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v.1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 443.
[22] Nesse sentido, a lição do Prof. Gustavo Tepedino:
“Quanto às hipóteses permissivas para se rebater a paternidade, o Código Civil de 2002 não as prevê de forma taxativa. De regra, a paternidade poderá ser afastada por qualquer motivo, sobretudo mediante prova de inexistência do dado biológico”.
E prossegue o renomado autor:
“No que concerne às causas justificadoras da negação de paternidade, o mesmo raciocínio desenvolvido, amparado pelos princípios constitucionais de tutela da pessoa humana e do melhor interesse da criança, bem como a supremacia da pessoa sobre a unidade formal da família autorizam a ampliação das provas a serem apresentadas em juízo, sendo de aceitar o exame de DNA, que hoje não pode ser rejeitado na ação de impugnação da paternidade.” TEPEDINO, Gustavo. A disciplina jurídica da filiação na perspectiva civil-constitucional. in: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renvar, 2004, p. 458.
[23] “Não há nenhuma relação controvérsia de que a família seja célula básica de toda e qualquer sociedade. Ela desperta interesse de todos os povos, em todos os tempos, uma vez que entendê-la é preservar a organização e continuidade da sociedade e do Estado.” PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 05.
[24] ALVES, Cristiane Avancine. Embriões excedentários e bioética: rumo a novas perspectivas novas perspectivas no âmbito do direito de família sob um prisma constitucional. in: Tendências constitucionais do direito de família. cit. p. 30.
[25] ALMEIDA, Guilherme Assis; e CHRISTIMANN, Martha Ochsenhofer. Ética e direito: uma perspectiva integrada. São Paulo: Atlas, 2004, p. 60.
[26] “O sistema clássico está superado, é fato. No entanto um novo sistema deve emergir numa conjugação harmônica dos vetores definidos tanto pela verdade biológica quanto pela verdade sócio-afetiva.” QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. cit. p. 56.
[27] “O Direito de Família apresenta uma peculiaridade muito importante em relação a outros ramos do Direito civil. Ele envolve relações jurídicas sem conteúdo patrimonial. Os direitos oriundos dessas relações não são chamados direitos puros de família. Em muitos deles, com efeito, vislumbra o jurista cético, camuflados, aspectos econômicos, mas o fato é que eles não têm um conteúdo patrimonial imediato e palpável.
Ao lado dessas relações, porém, trata do direito de família de outras que têm desenganado conteúdo patrimonial. Entre elas estão as relações de natureza econômica entre os cônjuges e os filhos antes, durante e depois do casamento.” CABRAL, Pedro Manso. A lei do Divórcio e o novo regime legal de bens no Brasil. Centro Editorial da UFBA. Salvador, 1982, p. 09.
[28] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 13.