A lei complementar nº 135/2010, denominada pelo inconsciente coletivo como “Lei da Ficha Limpa”, trouxe em seu bojo a demissão do serviço público como causa de inelegibilidade, com a nova redação dada à LC 64/90, artigo 1º, I, o.
Não aduz a lei, neste mister, a qual tipo de demissão recai a pecha de inelegibilidade. Em sua letra fria e letal a referida legislação possibilita, num primeiro momento, uma interpretação literal, estando inseridas nas inelegibilidades quaisquer formas de demissão do serviço público.
No campo da hermenêutica pura – é essa a chave alquímico-interpretativa de todas as alterações trazidas pela LC 135/2010 – estaríamos na estrita dimensão dos conceitos unívocos, ou seja, demissão seria toda e qualquer demissão e pronto! Estaria assim positivado o alcance da neófita legislação. Esse o primeiro movimento do intérprete menos avisado. Areia movediça confundida com terra firme, entretanto.
Ocorre que o termo “demissão” possui significação multiforme, extensiva, sedimentada no universo dos conceitos equívocos, segundo a Filosofia do Direito. É um termo jurídico afeto ao Direito Administrativo, ao Direito do Trabalho, ao Direito Constitucional, ao Direito Penal. Vive em sinapses epistemológicas. Não pode ser exaurido na seara térrea da exegese gramatical.
É sabido que a literalidade da norma é ponto de partida da exegese, nunca seu porto definitivo. Nas entranhas da legislação pulsa, de forma viva e cadenciada, o espírito que a informa e dá vida. Sem perceber essa realidade, viola-se a advertência de PAULO, APÓSTOLO: A LEI MATA E O ESPÍRITO DÁ VIDA. Interpretar a lei sem seu espírito é matar moral e juridicamente a pessoa humana. É olvidar o corpo vivo das normas e optar por um cadáver normativo, um esqueleto aterrador a caminhar bruxuleante pelos paramos dos tribunais.
Convém, portanto, exorcizá-lo.
A denominada pelo entusiasmo coletivo “lei da ficha limpa” evidencia, ainda neste ponto, a forma absolutamente mal feita de sua redação. Pugnando um objetivo axiológico legítimo – a moralidade pública nos certames democráticos eleitorais – em sua forma resultou num sincretismo aberrante: o moralmente correto e o constitucionalmente errado.
A justificativa evanescente de que é preciso dar uma resposta à sociedade – slogan desgastante e desgastado – não impedirá uma análise mais profunda pela jurisprudência colegiada no país. A começar pela jurisprudência de base, início e consumação de toda interpretação dos tribunais. É preciso uma hermenêutica sistêmica sob pena da letra morta da lei englobar situações totalmente alheias à mens legis, ao espírito que informa e vivifica a norma jurídica.
Pois bem.
Podem ocorrer hipóteses em que a demissão não se origina de atos de improbidade ou imoralidade administrativas. Veja-se o exemplo de quem simplesmente abandonou o serviço público, respondendo por isso um processo disciplinar e posteriormente sofrendo a pena de demissão. Nenhuma improbidade ou imoralidade administrativas podem ser apontadas. A hipótese estaria fora da mens legis, do espírito norteador da lei expresso em seu preâmbulo[1].
Neste ponto, é oportuno colacionar a doutrina hermenêutica do imortal CARLOS MAXIMILIANO[2], para quem “Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado do vocábulo; reproduzir por palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”.
E arremata o nunca assaz citado cientista do Direito[3]:
“A atividade do exegeta é uma só, na essência, embora desdobrada em uma infinidade de formas diferentes. Entretanto, não prevalece quanto a ela nenhum preceito absoluto: pratica o hermeneuta uma verdadeira arte, guiada cientificamente, porém jamais substituída pela própria ciência. Esta elabora regras, traça as diretrizes, condiciona o esforço, metodiza as lucubrações, porém não dispensa o coeficiente pessoal, o valor subjetivo; não reduz a um autômato o investigador esclarecido”.
Portanto, a demissão pode ocorrer sem ofensa aos princípios constantes na LC 64/90 e alterações trazidas pela LC 135/2010. Não há no caso espaço para interpretação literal (demissão, qualquer que seja), ou mesmo para uma exegese extensiva (toda demissão é ato de improbidade ou atentatória à moralidade administrativa). A interpretação no caso tem que ser restritiva e de acordo com o espírito da lei (demissão em razão de ato de improbidade ou atentatório à moralidade administrativa). Certeza obriga!
Cabe ao juiz verificar em instrução probatória as causas da demissão do candidato a cargo eletivo. Deverá ativar a função reconstrutiva da prova judiciária[4] e constatar se a demissão ocorreu por ato de improbidade ou atentatório à moralidade administrativa. Caso negativo, nenhum impedimento ocorrerá ao deferimento do registro do candidato.
Cumpre ainda consignar que na hipótese de demissão do serviço público a nova lei excetua apenas as hipóteses do ato demissionário estar suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário.
Há no caso manifesta inconstitucionalidade. Do ato administrativo que ensejou a demissão pode ser interposto recurso judicial sem efeito suspensivo ou recurso administrativo detentor de suspensividade. Nas duas hipóteses – não previstas na referida lei – estamos diante da intransponível muralha da presunção da inocência e da tutela constitucional do contraditório.
Permitir que um candidato não possa obter registro para fins de candidatura em tais casos é afrontar o princípio da presunção da inocência – comum a todo ramo do Direito e não apenas aos Direito Penal e Processo Penal - e permitir a restrição de um direito constitucional antes de pronunciamento definitivo do estado.
Como se observa, a interpretação literal não é a mais segura para uma aplicação justa das alterações trazidas pela LC 135/2010. Toda lei deve ser interpretada dentro de um sistema, pois é desnecessário lembrar que nenhuma norma prevê todas as hipótese do mundo fenomênico.
Essa a exegese mais consentânea com os princípios da LC 64/90 e a proteção dos direitos subjetivos, dentre os quais o acesso aos certames democráticos como efetivação do estado de direito.
Notas
[1] Consta expressamente no preâmbulo da referida lei que são incluídas na LC 64/90 “hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato”.
[2] MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, RJ, 20ª. Edição, 2011, página 7, original sem grifos.
[3] Ob. Cit.,página 9, original sem grifos.
[4] Sobre essa dimensão da atividade probatória JORGE KIELMANOVICH[4] afirma que a atividade do juiz assemelha-se à obra do historiador. Doutrina que o juiz e o historiador têm que averiguar como se sucederam os fatos no passado a partir das impressões deixadas nas pessoas e coisas. Conforme Kielmanovich, Jorge, Teoría da La prueba y médios probatórios, Buenos Aires, pág. 45:” (...) ambos – el juez y El historiador - tiendem a averiguar cómo sucedieron los hechos em El pasado a partir de los rastros o huellas que pudieron imprimirse em lãs cosas e em las personas (...)”.