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A deturpação do paradigma pós-positivista na prática judiciária brasileira

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III. O FRACASSO DOS PARADIGMAS METODOLÓGICOS-INTERPRETATIVOS EM PRODUZIR UMA DECISÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA E UMA CRÍTICA AO “DECIDO CONFORME MINHA CONSCIÊNCIA”

A queda do Positivismo jurídico na Europa Ocidental implicou na superação dos métodos de subsunção da Escola de Exegese[5], assim como a derrocada da discricionariedade da Teoria da Moldura[6] proposta pelo positivismo normativista de Kelsen. No mesmo passo em que o Positivismo Kelseniano - embasado na distinção entre Texto e Norma[7]- isto é, na necessária desvinculação do texto legal escrito e aquilo que é fruto da interpretação, ou seja, da pré-compreensão do intérprete, refuta a idéia de intérprete coisificado da Escola da Exegese, que não vislumbra atividade criativa do juiz, é também superado pela Teoria da Argumentação – pós-positivista- que acusa a Teoria da Moldura de propagar um voluntarismo avesso a racionalidade.

A perspectiva Neocosntitucionalista – principalmente, com espeque na Teoria da Ponderação de Valores de Robert Alexy - rebate tanto o método lógico-formal do Positivismo-Legalista, que se assentava na única resposta possível, quanto o método discricionário do Positivismo-Normativista, que atribuía ao intérprete o poder de escolha entre as tantas decisões possíveis. É certo, porém, que o Neoconstitucionalismo não refuta integralmente o Positivismo-Normativista, pois se apropria da idéia de que o juiz também cria o direito, já que a norma não é outra coisa senão fruto da interpretação.

 Ademais disso, a partir do paradigma neopositivista, a própria normatividade dos princípios, quando mal utilizada, se torna um cheque em branco em favor do intérprete, conforme largamente salientado alhures. Saliente-se também nesse sentido que a ponderação alexyana é a porta de entrada para a discricionariedade. E daí advém o problema: a discricionariedade que permite prevalecer a vontade solipsista do julgador está presente tanto em Kelsen quanto em Alexy.

É por esta razão que Streck (2009) alerta para o fato de que, na verdade, não há uma superação da discricionariedade entre o positivismo kelseniano e a teoria da argumentação (pós-positivista) alexyana, mas, sim, uma substituição de discricionariedade. Diz ainda que a tese da ponderação de valores permitiria uma margem discricionária ainda maior que no positivismo clássico porque os princípios parecem ter uma textura muita mais aberta que as regras. Sobre a fragilidade do método de ponderação, Ana Paula de Barcellos, embora adepta da ponderação, lamenta: “Não há como negar, considerando o estado atual da dogmática sobre o assunto, que, de fato, a ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja excessiva subjetividade e não dispõe de mecanismos que previnam o arbítrio.” (BARCELLOS, 2006: 53)

Decreta-se, assim, o fracasso dos paradigmas metodológicos-interpretativos em produzir uma decisão constitucionalmente adequada: o positivismo legalista, por não ter convivido com a normatividade dos princípios e impingir um sistema demasiado fechado e avalorativo de regras aplicadas por processo mecânico; o positivismo normativista, por conceder ao intérprete nos hard cases autorização para julgar conforme seu sentimento do justo, ou seja, pecou-se pelo excesso de discricionariedade; a teoria da argumentação de matriz neopositivista, pecou também por conferir ao intérprete uma margem de discricionariedade muito grande na realização da ponderação de valores, o que acarreta o arbítrio no processo decisório.

Por tudo isso, torna-se necessário encontrar um caminho para se buscar uma decisão que promova mais a Constituição do que o instinto individual do juiz. É tempo de se buscar uma decisão constitucionalmente adequada.

Na linha do que diz Streck (2010), o Estado Democrático de Direito é uma conquista da qual não pode ser relegada a vontade ou ao pensamento que alguém tem sobre alguma coisa. Discricionariedade e democracia não se bicam. A democracia não pode depender da vontade de alguém. Em plena vigência da Constituição Federal de 88 é no mínimo paradoxal o resultado de um processo depender da consciência individual de um sujeito. Aliás, indaga Streck (2010): quando se diz que o juiz julga conforme a sua consciência, onde fica a Constituição? O direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja, e sim, o que a Constituição determina.

Tornou-se freqüente na prática judiciária brasileira um discurso pretensiosamente neopositivista de que o juiz/intérprete paira por cima da legalidade estrita, posto que sua decisão deve estar em consonância com a sua consciência, e a lei poderia restringir o seu sentido de justiça. O juiz, em última análise, estaria atrelado a sua consciência, ao seu sentimento do “justo”, a sua (cosmo) visão de “verdade”, e não a determinação legal. Interessante anotar que esse discurso, travestido de neopositivista, não coaduna com este modo de interpretar/aplicar o direito que tem a Constituição como parâmetro aplicativo. E mais. Importante deixar bem vincado, assim como fizera Streck (2010), que o estrito cumprimento da lei em um Estado Democrático de direito não é o mesmo que seu cumprimento sob o paradigma positivista-legalista em que a lei estava despida de valorações sociais e desprovida de filtragem constitucional. No Estado Democrático de Direito é mais perigoso a consciência solitária do justo do que o cumprimento de uma lei constitucional. No ambiente verdadeiramente pós-positivista fala-se em uma nova legalidade em que a moral é co-originária à lei, enquanto no positivismo ultrapassado o campo da moral estava de fora. Essa nova legalidade, necessário dizer, somente se estabelece sob o manto da constitucionalidade. Daí se dizer que cumprir estritamente uma lei constitucional é concretizar a democracia, e isso sim é ser pós-positivista.[8]

É necessário deixar claro que quando se diz que a interpretação não pode vir unicamente da cabeça do julgador não se está a tirar o poder de criação do juiz engendrado pelo paradigma pós-positivista, e sim, que o julgador, como está inserido em um ambiente constitucional, deve buscar uma solução condizente com o texto constitucional, e não com o seu sentido de “justo”. Ao invés do excesso de discricionariedade, deve-se pensar, hoje, na vinculação entre o intérprete e a constituição. É dizer: se sou um juiz ideologicamente inclinado à esquerda, para utilizar as expressões mais comuns no espectro político brasileiro, não posso desconsiderar que a Constituição Federal de 88 previu como princípio da ordem econômica a livre concorrência (art. 170, IV, da CF/88); assim como se sou um juiz liberal de direita, não posso desprezar que a Constituição de 88 é comprometida com a função social da propriedade e com a erradicação da pobreza (art. 5º, XXIII, art. 170, III; art. 3º, III, art. 170, VII, todos da Constituição Federal de 1988).

Interessante anotar que dizer o que é a dignidade da pessoa humana não é dizer o que se entende por dignidade da pessoa humana, mas o que aquele ambiente constitucional a que está inserido o intérprete compreende o conceito. A solução não está no indivíduo sozinho, mas na comunidade política a que o intérprete está inserido. Segundo Streck (2010), uma decisão adequada à Constituição está condicionada ao sentido do direito projetado pela comunidade política. Nas suas palavras:

Portanto, e isso é definitivo, a decisão jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador das diversas possibilidades de solução da demanda. Ela se dá como um processo em que o julgador deve estruturar a interpretação – como a melhor, a mais adequada – de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política. (STRECK, 2010: 106)

Torna-se oportuna aqui, uma vez mais, a menção a “sociedade aberta dos intérpretes da constituição” de Peter Haberle que traz à hermenêutica constitucional a idéia de interpretação difusa da Constituição. A Constituição não é um documento a ser interpretado somente na esfera institucional, ela vai além e alcança o imaginário da comunidade. A Constituição interpretada comunitariamente é um pressuposto interpretativo do próprio intérprete oficial. O juiz (intérprete oficial) não pode descolar sua interpretação da interpretação comunitária, já que é daí que se retira a legitimidade da decisão. Ademais, o interpretar do texto não pode advir da opinião pessoal que o juiz tem sobre determinado assunto, mas da intersubjetividade, do intercambio comunitário, de certo consenso constitucional da sociedade. Diz Lênio Streck:

O juiz deve saber suspender seus pré-juízos. Caso contrário, não pode ser juiz. E, atenção: dizer isso não quer dizer que os juízes estão proibidos de interpretar. Longe disso, todos têm subjetividades, ideologias, etc. O que não pode acontecer é esses aspectos subjetivos se colocarem no “lugar da produção dos sentidos” em uma sociedade democrática. (STRECK, 2011: 15-16)

 É por isso que se torna necessária, utilizando a expressão cunhada por Streck (2010), a “fundamentação da fundamentação” que significa a aplicação radical do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988. A invocação frouxa dos princípios permite decionismos individuais avessos ao texto constitucional. Portanto, sendo o caso de se proferir uma decisão principiológica, cabe ao intérprete/aplicador se aprofundar na argumentação não só para que se demonstre a necessária incidência do princípio, como também para se aferir se o conceito dado àquele princípio coaduna com aquele retirado da comunidade política.

Já caminhando para o término do presente trabalho, necessário salientar que, embora possa parecer que a crítica ao subjetivismo através da manipulação dos princípios, bem como a crítica ao descumprimento de regras legais sob o fundamento do “decido conforme a minha consciência”, tenha o condão de ser também um levante contra a Jurisdição Constitucional e ao contramajoritarismo, na forma do que apregoa Streck (2010), tais críticas não atingem o papel fundamental da jurisdição constitucional de efetivar direitos fundamentais e de se contrapor à lei quando esta não está em consonância com os desígnios da Constituição de 88. Aliás, o papel proeminente da jurisdição constitucional brasileira é aplaudido no presente trabalho. O problema, conforme salientado alhures, reside em “como” juízes e tribunais tem desrespeitado balizas constitucionais para fazer valer sua própria vontade solipsista e o quanto isso é perigoso pelas peculiaridades da cultura brasileira. Assenta Streck:

Mais uma vez é preciso alertar para os possíveis mal-entendidos: o rigoroso controle das decisões judiciais (veja-se o que escrevo no posfácio de Verdade e Consenso) não quer dizer – sob hipótese alguma – diminuição do papel da jurisdição (constitucional). Aliás, esse mesmo controle deve ser feito em relação em relação às atividades do Poder Legislativo. O Estado Democrático de Direito é uma conquista. É, portanto, um paradigma, a partir do qual compreendemos o direito. Quando propugno pelo cumprimento da Constituição e o direito fundamental à obtenção de respostas adequadas (à Constituição), quero dizer com isso que, mesmo em face de o Parlamento realizar amplas reformas e (visar a) desvirtuar a Lei Maior, ainda assim poderemos continuar a sustentar as mesmas teses! Ou seja, a defesa que faço da Constituição não significa ‘qualquer Constituição’! Há uma principiologia constitucional que garante a continuidade da democracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica. Ora, o direito possui uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidade política. A integridade e a coerência devem garantir o DNA do direito nesse novo paradigma. Para ser mais claro: quero dizer com isso que, em última ratio, levando em conta as inexoráveis possibilidades de o Parlamento aprovar leis ou emendas constitucionais “de ocasião” (inconstitucionais), a jurisdição constitucional deve se constituir na garantia daquilo que é o cerne do pacto constituinte de 1988! Entretanto – e esse é o motivo pelo qual defendo uma Teoria da Decisão – isso não depende (e não pode depender) da visão solipsista de juízes ou Tribunais. Depende (rá), sim, daquilo que se convencionou denominar de “sentimento constitucional”. (STRECK, 2010: 112, grifei)

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Para finalizar, importa dizer que o fracasso dos modelos metodológicos interpretativos não corresponde ao triunfo da liberdade interpretativa, muito pelo contrário, a derrota dos métodos tanto do positivismo kelseniano quanto da argumentação alexyana, deixando de lado o positivismo legalista já há muito superado, se deveu justamente a margem de discricionariedade concedida ao intérprete que permitiria que a jurisdição se tornasse um poder à disposição da subjetividade do julgador. Mas o fim do método equivaleria a um livre atribuir de sentidos? Certamente que não. Mas é necessário que se inicie uma nova discussão entorno da criação de uma teoria da decisão que tenha como parâmetro inicial as bases críticas que Streck vem tecendo ao modo de interpretar/aplicar o direito em terrae brasilis, mormente, quanto ao enfraquecimento da força normativa da constituição ante ao “decido conforme a minha consciência”. Por fim, nas palavras de Streck: “Na especificidade do direito brasileiro, a grande conquista foi a Constituição – sem dúvida a mais democrática do mundo. Esse é o vetor que deve conformar a atividade do jurista”. (Ibidem)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetivou demonstrar que o triunfo do paradigma pós-positivista, fruto de nosso avançado texto constitucional de 88, tem servido de engodo para que juízes e tribunais decidam conforme o seu bel prazer. É que a normatividade dos princípios se tornou uma “arma poderosa” nas mãos de quem não tem o mínimo de preparo ético-constitucional. Não há a menor dúvida que a normatividade dos princípios foi uma conquista das mais valiosas, permitindo um diálogo aberto e franco entre a moral, a política e o direito, firmando também os alicerces que estruturam o Estado brasileiro, ocorre que o seu sentido tem sido corrompido para beneficiar o sentimento individual do intérprete. Não se percebeu até o momento que a grande conquista do pós-positivismo é a normatividade da Constituição, e não a discricionariedade do indivíduo. O intérprete/aplicador está imerso em uma atmosfera constitucional, daí se deduzir que ele nunca poderá chegar a uma decisão que não esteja inserida nesse ambiente.

Para evitar possíveis equívocos, o problema não é em si o resultado das decisões que a Corte Constitucional brasileira tem tomado, que, diga-se de passagem, não têm rompido com os consensos sociais, tampouco o problema reside na ampla visibilidade do Supremo Tribunal Federal, já que isso lhe dá maior legitimidade, o problema reside, sim, em “como” a fundamentação dessas decisões podem vir a manipular os resultados; e mais, a jurisdição constitucional brasileira não se restringe a Excelsa Corte, portanto, juízes e Tribunais estariam preparados constitucionalmente para proferir decisões constitucionais? A resposta é não. Não estão preparados. Há na verdade uma manipulação da principiologia constitucional em favor do intérprete. Juízes e Tribunais, deturpando o paradigma neopositivista que imprime normatividade aos princípios, proferem decisões carregadas de apreciações individuais ao invés de aplicarem as regras ou de se desencarregarem da devida fundamentação de ordem constitucional. Tornou-se comum invocar, em razão da textura aberta, a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a proporcionalidade, a separação de poderes, para dizer alguns dos princípios mais freqüentes nas decisões judiciais, a fim de que se prevaleça o sentimento pessoal do intérprete/aplicador em detrimento da própria regra estabelecida em uma lei ou no texto constitucional. Outro recurso também pretensamente neopositivista é o “decido conforme a minha consciência” que tem o condão de afastar a aplicação de uma lei “injusta”, porém constitucional (que paradoxo, não?), para prevalecer o voluntarismo do julgador. Ao que parece, no imaginário do jurista brasileiro, a normatividade dos princípios engendrada pelo neopositivismo foi uma carta de alforria em termos de interpretação. É dizer: faz-se o que se quer com os princípios.

Não se percebeu que a discricionariedade do intérprete criticada no positivismo kelseniano é encontrada no ambiente neopositivista tanto no uso da ponderação quanto na invocação frouxa dos princípios. Esse é o grande equívoco da prática judiciária e de alguns setores da dogmática brasileira: não perceber que resgataram a discricionariedade kelseniana, e o quanto isso é prejudicial à força normativa da Constituição e, conseqüentemente, à democracia. Assim como anunciara Sarmento (2009), o momento é oportuno para se repensar a interpretação/aplicação da norma jurídica, levando mais a sério as regras e o critério de subsunção, sem desprezar a importância dos princípios. Mas só isso não basta para superar o fracasso dos paradigmas metodológicos de interpretação. O espaço não pode ficar aberto para o “livre atribuir de sentidos”. Por isso é que Streck (2010) alerta para a necessidade de se criar uma teoria da decisão que não tem a pretensão de trazer à tona a única resposta correta, mas a que é mais adequada à Constituição. E essa resposta, segundo Streck (2010) não pode depender da vontade, da consciência, da subjetividade do julgador.

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Sobre o autor
Allender Barreto Lima da Silva

Advogado, pós-graduado em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Allender Barreto Lima. A deturpação do paradigma pós-positivista na prática judiciária brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3348, 31 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22517. Acesso em: 22 dez. 2024.

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