“Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a Justiça, que o do mais alto dos poderes”
- Rui Barbosa
1. Introdução.
Encontramo-nos em um momento histórico muito importante do ponto de vista jurídico. Após o processo de concreta implementação dos Direitos Fundamentais, que culminou com a publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1950, o documento internacional máximo da defesa do ser humano, hoje buscamos efetivar na sociedade essas prerrogativas, em todos os âmbitos. Em algumas situações esse fenômeno (conhecido como “constitucionalização”) é visto com certa reserva, o que parece paradoxal, já que a proteção da dignidade humana e seus consectários são fundamentos da República do Brasil. A preocupação, justa, é que esse processo acabe desnaturando outros institutos jurídicos ao sobrepujá-los completamente. Esse aparente conflito mostra um desafio que precisamos vencer: fazer com que os Direitos Fundamentais coexistam harmonicamente com os princípios e normas de direito que regem nosso ordenamento, sem que nenhum lado perca sua essência. A tarefa é complicada, mas não impossível, e decerto deve contar com a razoabilidade, proporcionalidade e bom-senso da doutrina e magistrados.
No presente artigo, objetivamos discutir brevemente uma face desse conflito: a proteção dos Direitos Fundamentais Processuais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório no âmbito do processo/procedimento administrativo de aplicação de multa de trânsito por guarda. Ora, é histórica a tentativa do indivíduo de proteger-se da supressão de seus direitos pelo estado, conflito que poderia ser considerado superado na atual conjuntura de positivação de Direitos Humanos. No entanto, é comum ver o condutor ser processado e instado a pagar a multa sem que lhe tenham sido oferecidos meios hábeis de defesa, face à presunção de legitimidade do ato administrativo. Buscamos, assim, analisar essa situação com fulcro na doutrina e jurisprudência, de modo a verificar o caminho constitucionalmente adequado e propor soluções.
2. Considerações iniciais sobre a “supremacia estatal”.
O estado é, talvez, uma das entidades mais complexas que o ser humano concebeu, ainda que se considere a grande extensão do conhecimento e das ciências humanas. É tarefa complicada até mesmo defini-lo, explicar seu sentido e seu conteúdo. Bonavides[1] ensina que, no século XIX, um filósofo chamado Bastiat
(…) se dispôs com a mais sutil ironia a pagar o prêmio de cinquenta mil francos a quem lhe proporcionasse uma definição satisfatória de estado.
Continuava ele aquela atitude pessimista e amarga de Hegel, quando o filósofo máximo do idealismo alemão confessou que entre a natureza e seus mistérios e a sociedade humana e seus problemas, não havia que hesitar quanto ao conhecimento mais fácil da natureza.
De fato, a empresa de definir e até mesmo compreender o estado torna-se agravada pelas constantes evoluções que sofreu ao longo dos séculos, ocupando posições diferenciadas no seio da sociedade, conforme o momento histórico, apesar de ser conhecido, mesmo em formatos rudimentares, desde a Antiguidade. Em cada situação histórica em que pensarmos sempre esteve presente, normalmente com um papel central. A ascensão e queda do Império Romano; as conquistas de Alexandre, o Grande; o Iluminismo; a Revolução Francesa; não há um grande marco sem a presença – protagonista ou antagonista – desse ente. Deveras, não se sabe ao certo em que momento essa figura de mão forte, que influencia profunda e diretamente a vida dos cidadãos sob seu espectro, surgiu. Mas em quase todo momento histórico teve a mesma característica: o poder supremo sobre a sociedade, sobre o cidadão, a autoridade e muitas vezes o autoritarismo. Impossível não lembrar que os principais instrumentos de efetivação de Direitos Humanos surgiram justamente para proteger o cidadão comum da ingerência nociva e excessiva do estado, considerando-se que todo poder pode vir a exacerbar-se, exceder-se. Notadamente, há diversos registros do excesso estatal ao longo da história, identificados através de abusos de todo tipo, torturas, mortes. Entender a evolução dessa figura tão ímpar é importante para verificar que ainda resistem resquícios desse estado autoritário, que, algumas vezes, pode utilizar a “desculpa” da proteção do bem comum e do interesse público para exceder-se, desrespeitando e relativizando direitos.
É nesse sentido que, no presente artigo, grafaremos propositalmente a palavra “estado” com letra minúscula. Recomenda-se nos dicionários e livros a escrita desse vocábulo com letra maiúscula, embora “sociedade”, “indivíduo” e “cidadão” sejam grafados com minúscula. Na esteira do constitucionalismo moderno, cremos que essa diferença deve-se à crença arraigada de que o estado é a figura de poder central, de mão forte e poderosa, capaz de definir o destino dos homens que vivem naquela nação organizada. No entanto, essa acepção não se coaduna mais com a realidade social hodierna, ao menos nos países democráticos. Nestes, o estado deve ser uma das peças que, junto ao cidadão e sob égide da Constituição (essa, sim, maiúscula), contribuem diariamente para a construção de uma sociedade digna e respeitadora dos Direitos Humanos Fundamentais. Dessa forma, fica o registro simbólico e a tentativa de desconstruir alguns costumes persistentes que denotam a reafirmação da submissão do indivíduo à figura estatal, o que devemos evitar, como veremos.
2.1. Histórico e acepções de estado
Segundo Morais[2], referindo-se à origem do estado, “alguns autores situam seu aparecimento com seu contorno atual, nos tempos modernos, apesar de as cidades grega e romana já apresentarem características semelhantes, como nos mostra Fustel de Coulanges em sua obra, A Cidade Antiga”. Além disso, a Pólis grega e a Respublica Romana também já guardavam algumas características do que, futuramente, viríamos a chamar de estado na prática, sobretudo pela adoção da figura do cidadão e pela personificação do poder nas mãos do governante. Como pontua Bonavides[3], “no Império Romano, durante o apogeu da expansão, e mais tarde entre os germânicos invasores, os vocábulos Imperium e Regnum, então de uso corrente, passaram a exprimir a ideia de estado, nomeadamente como organização de domínio e poder”. Assim como Aristóteles desde a antiguidade já chamava os homens de “animais políticos”, verifica-se que a essência desse ente deve ter sido percebida e vivida desde os primeiros clãs humanos, até desenvolver-se e adquirir os contornos atuais. Basta concebermos que, normalmente, uma figura de poder surge na maioria dos agrupamentos humanos, seja na família, seja em uma comunidade. Essa talvez seja uma característica quase imutável de nossas mais variadas sociedades.
Prosseguindo, o homem também conheceu o estado feudal, famoso pelo rei que “existia por direito, mas inexistia de fato”. O poder, nesse caso, era exercido pelos suseranos, proprietários de terra, que determinavam os direitos e o curso da vida na sociedade em que estavam inseridos. Foi uma época em que, particularmente, a imagem estatal teve uma configuração diferenciada em relação à maioria dos períodos da história, já que a ausência do poder central foi marcante, embora sua fragmentação também pudesse ser sentida (e ressentida) pelas pessoas. No entanto, havia cidadãos e um núcleo (ou vários núcleos) em torno do qual uma comunidade continuava a existir, com regramentos e normas. Depois do feudalismo, foi testemunhado o total oposto: o absolutismo, em que a figura do governante (no caso, o rei) era mais forte do que a própria sociedade que ele representava, colocando-se seus interesses acima dos da própria comunidade. Foi nesse período que Luís XIV, o “rei-sol”, afirmou: “O estado sou eu!”. Nessa época, acreditamos, surgiu com contornos mais bem definidos a imagem do estado todo-poderoso, autoritário, violento até, sempre acima do cidadão comum, que seria “apenas uma pecinha” num grande e complexo sistema. Não à toa uns dos primeiros grandes documentos de proteção aos Direitos do homem surgiram a partir dessa época, em uma clara tentativa de neutralizar a ingerência nociva sobre os direitos inatos do ser humano, conforme elenca Silva[4]:
Petição de Direitos de 1628 (documento que, pela primeira vez, mencionava a proteção contra prisão por dívida), o Habeas Corpus Act de 1679 (primeira garantia escrita à liberdade de locomoção, que tornou-se matriz de todas as outras que vieram a ser criadas) e a Declaração de Direitos de 1689 (criada num contexto de guerra e conflitos religiosos, estabeleceu principalmente a liberdade de culto na Inglaterra). Nessa época também foram promulgados outros pactos não menos importantes, como o Corpo de Liberdades de Massachusetts, de 1641, e a Forma de Governo na Pensilvânia, de 1682.
Posteriormente tivemos o avanço do estado liberal, que visava justamente frear o poder sem limites do governante, a fim de dar lugar à proteção de direitos e garantias do cidadão. Aqui a intervenção do estado é mínima ou nula; as decisões e realizações cabem aos cidadãos, que possuem a proteção de seus direitos resguardada através de uma Constituição. No entanto, esse modelo também não foi eficaz e acabou sendo abandonado gradativamente. Houve então a proposição do estado socialista, que jamais chegou a ser implantado de fato, e o advento do estado democrático de direito, este em vigor atualmente na maioria dos países.
Bonavides[5] ressalta que o termo “estado” foi cunhado por Maquiavel em sua famosa obra “O Príncipe” e o vocábulo foi posteriormente consagrado por Jean Bodin na idade moderna e contemporânea. Dessa forma, a obra afirmava que “todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou principados”. Um parêntese para, mais uma vez, verificar que as primeiras acepções e entendimentos do que seria estado estão relacionadas a uma questão de sobrepujança, de poder e “império” desse ente sobre os homens.
Do ponto de vista filosófico, remontamos a Hegel, que definiu o estado como uma substância ética autoconsciente, a organização social máxima, “que concilia a contradição Família e Sociedade, como instituição acima da qual sobrepaira tão-somente o absoluto, em exteriorizações dialéticas, que abrangem a arte, a religião e a filosofia”, ensina Bonavides[6]. Assim, o estado é a personificação da razão, a unidade da verdade, a união dos espíritos dos indivíduos a ele vinculados. De certa forma, poderíamos inferir que a ideia de Hegel complementa-se à de Hobbes, Rousseau e Locke acerca da construção da sociedade. Os três procuram descrever o que seria o chamado “estado de natureza”, a convivência livre entre os homens, sem regras formais, sem a ingerência de um poder central.
Para Hobbes, isso significaria a anarquia total, porque os homens são naturalmente violentos, e cada um faria todo o possível para manter seus direitos naturais. A instituição do estado, dessa forma, protege-os, gerando a instituição do estado de sociedade (oposto ao de natureza). Já para Locke o estado de natureza não pressupõe a violência, o caos natural. Para ele, nessa situação os homens até poderiam viver em ambiente pacífico. No entanto, conflitos pela propriedade privada poderiam degenerar a paz existente e, dessa forma, conduzir à anarquia. E Rousseau, precursor da Revolução Francesa, defendia que o homem em seu estado natural não possui moralidade (por não precisar distinguir o bem do mal) ou malícia; no entanto, a introdução da propriedade privada, que gerou a sociedade civil, trouxe também a ganância, a desigualdade e a violência, que corromperam-no. A desigualdade é praticamente inevitável, porque aquele que detiver maior número de propriedades e as mais valiosas terá força o suficiente para conduzir a sociedade na direção de seus interesses. Como o estado, na opinião de Rousseau, mostrava-se incapaz de corrigir essa diferença entre ricos e pobres, tornava-se nocivo, permitindo a compra de posições nobiliárquicas e aumentando o vão entre classes sociais.
Socialmente falando, o conceito de estado muitas vezes enfatiza a luta de classes, a oposição de ricos e pobres, ou, como Marx[7] definiu, “o poder organizado de uma classe para opressão de outra”. No mesmo contexto, algumas definições preconizam a institucionalização da força e da violência. No entanto, as acepções sociológicas de estado possuem uma característica comum: falam de um ente juridicamente organizado que depende de um poder legítimo para firmar-se.
Juridicamente, há diversas formas de definir estado, considerando a divisão de poderes, a nação, o próprio poder em si. Dessa forma, temos definições como a de Kant[8], uma das primeiras acepções jurídicas de que se tem registro, afirmando que estado é “a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito”. A definição, não obstante seja pioneira, possui muitos críticos, afinal poderia ser aplicada a diversas outras situações; no entanto possui seu valor, já que menciona o uso do Direito Positivo na direção da organização da vida em comunidade.
Para Del Vecchio[9], o estado é “o sujeito da ordem jurídica na qual se realiza a comunidade de vida de um povo” ou “a expressão potestativa da Sociedade”. Acertadamente, o jusfilósofo separou dois conceitos que caminham juntos, mas são distintos, quais sejam, o estado e a sociedade, aquele um ente abstrato que se manifesta potencialmente na concretude da vida social. Outrossim, em uma explicação bastante elucidativa, Costa[10] demonstra que se deve compreender o estado de forma holística, uma vez que ele é uma conjuntura de diversos fenômenos, face aos mais variados movimentos e desdobramentos da sociedade em si mesma:
(...) se for levado em consideração o fato de que o Estado se originou naturalmente, grosso modo, em decorrência das necessidades humanas em um plano coletivo, e voltando-se para regular a dinâmica social que o criou – por intermédio do Direito Positivo – conclui-se que o Estado tem como propósito maior tutelar e gerenciar o bem comum. E para fazê-lo, recebe, por meio da mesma dinâmica social humana, um “Poder”. (…)
Todavia, a atuação do Estado só se fará executar (e valer) por meio de órgãos institucionalizados e supremos. Tais órgãos é que, de fato, concretizam a existência do poder estatal.
Assim, a noção que envolve o Poder passa, obrigatoriamente, pela ideia de organização do conjunto de órgãos públicos – e seus respectivos mecanismos de atuação – que, por um vínculo jurídico-institucional e político-administrativo, se relacionam, entre si e com a sociedade, em razão do bem público comum.
Vale destacar, entretanto, que o conceito acerca do Poder traspassa o que foi colocado acima. Afinal, há de compreender-se que ele é, acima de tudo, o grande elemento mantenedor da coesão dos demais elementos constitutivos do Estado, como território e povo.
Perante tamanha envergadura conceitual-existencial, o Poder não deve ser visto tão somente como um fenômeno político, administrativo e jurídico, mas, também, social, cultural e ideológico, se desdobrando, assim, em múltiplas facetas, todas permanecendo, no entanto, ferreamente conectadas, formando um único ente.
Não há, dessarte, como afirmar que qualquer dessas acepções está incorreta. O estado é um todo tão complexo que realmente é difícil defini-lo. Mas é importante perceber que, em todas elas, há o traço marcante e a presença da força, do poder ou mesmo da violência. Por isso é necessário ter um certo cuidado. O poder é inerente a essa figura; a questão é o modo como é exercido. Gera-se, assim, um questionamento filosófico sobre o lugar do homem e, consequentemente, do estado, no mundo: se este é feito de/ por/ para homens, porque estaria acima dos mesmos? Ele teria uma definição como a de um deus, que está acima de todas as coisas, devendo os cidadãos submeterem-se incondicionalmente? Acepções mais antigas normalmente passam essa ideia, ainda que tacitamente. Mesmo atualmente é difícil em algumas situações diferenciar ou compreender a posição e significado do estado (sempre referindo-nos a nações democráticas): sua atuação em nome da da sociedade, o que lhe confere normalmente uma postura superior, muitas vezes é confundida com “supremacia” ou “proeminência”, vocábulos que remetem a hierarquia, o que é incorreto, como já afirmamos. Não é o estado que está acima do cidadão, mas os interesses públicos e sociais que aquele representa, como uma espécie de procurador exercendo um mandato, arriscamos dizer.
Obviamente é impossível desvincular estado da ideia de poder, já que sem os instrumentos de coerção de que dispõe, desde à cobrança de tributos até à determinação da prisão de alguém, o mesmo não poderia, ao menos na sociedade atual como a conhecemos, exercer a tarefa de coligir interesses públicos e concretizá-los. Não buscamos questionar o poder estatal, gize-se, pois o mesmo é um importante meio de coesão social, mas o uso do mesmo quando travestido de autoritarismo. É justamente essa força desigual que os cidadãos, desde sempre, vêm tentando equilibrar com a proteção de seus direitos inatos. Hoje, ao menos nos países democráticos, há meios contundentes para proteger os homens da força impositiva do estado, no que se refere ao malferimento de Direitos Fundamentais. No entanto, sabemos que ainda estamos um pouco distantes do momento em que, de fato, esses meios legais não precisarão ser invocados para que o cidadão sinta-se protegido e livre na sociedade onde está inserido.
Nesse sentido faremos no presente artigo uma breve análise sobre a supressão dos direitos à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal no procedimento/processo administrativo de aplicação de multa de trânsito por guarda, pelo qual muitas pessoas já passaram, mas do qual é quase impossível defender-se. Ressalta-se que serão consideradas na análise situações em que figuram apenas o guarda de trânsito e o motorista e nenhuma outra prova. “Pardais”, radares e outros meios comprobatórios costumam oferecer bons instrumentos para acusação e defesa; mas no confronto entre a palavra do guarda e a do condutor a daquele sempre prevalecerá, mesmo sem subsídios. E este jamais poderá defender-se, nem no processo administrativo, nem no judicial, pois, em geral, não lhe é facultado produzir provas.
3. O Princípio da Supremacia do Interesse Público x o interesse do particular no estado democrático.
3.1. Direitos Fundamentais Processuais no âmbito do Processo Administrativo.
Conforme já mencionamos, a construção dos Direitos Humanos foi fruto de uma longa gradação histórica. Até que os mesmos se tornassem “Fundamentais” e fossem, portanto, consagrados no seio das Constituições dos países democráticos, o ser humano passou por momentos de grave desrespeito aos itens mais básicos de sua essência e condição, como a vida, a integridade física, a liberdade, a personalidade. O próprio conceito de dignidade humana fortaleceu-se apenas a partir do século XVII, com Kant. Gradativamente, vencendo a segregação social e preceitos arraigados nas sociedades antigas, a proteção dessas prerrogativas imprescindíveis à vida digna começaram a ser observados com maior cautela, inserindo-se na consciência social a importância de resguardá-los. Segundo Comparato[11],
isso, antes de mais nada, é fruto das sucessivas transformações do capitalismo e da evolução do conceito de progresso, ampliando nosso arcabouço de necessidades e modificando os processos de construção do mundo. A própria evolução da sociedade, dos meios de produção, com a transformação dos instrumentos de convivência, modificaram lentamente os conceitos da harmonização ética, sem a qual o resultado é a desagregação social.
Em resumo, os cidadãos nas atuais democracias possuem uma extensa gama de direitos positivados, de modo a evitar o esmagamento do indivíduo pelo estado e delimitar suas prerrogativas e deveres em face de outros particulares. Essa proteção abarca todos os âmbitos jurídicos do cotidiano, inclusive o processual, que nos interessa nesse momento. Nesse sentido, leciona Torres[12]:
Reconhece-se hodiernamente a existência de um modelo constitucional de processo comprometido com a concreção dos direitos fundamentais. Tal responsabilidade não mais se limita a instrumentalizar a proteção oriunda do plano material em sentido estrito. (...) Admiti-se (sic) contemporaneamente a existência de um rol de direitos (igualmente fundamentais) que, ainda que tenham valia apenas no e em razão do processo, compõem o núcleo das posições jurídicas mínimas do cidadão, devendo, em tudo e sempre, orientar interpretações, bem como a regulamentação de qualquer regime processual, seja ele de que natureza for.
Um ponto importante é que esses Direitos Fundamentais, como visto, devem reger a condução de qualquer processo, independentemente da seara. Sem dúvidas, isso também se aplica ao processo administrativo. Ora, se o fulcro primário da construção das garantias fundamentais do homem foi sua defesa em face do alvedrio do estado, nada mais justo e necessário que proporcionar-lhe essa proteção exatamente quando ele encontrar-se frente a frente com esse “gigante”, em posições antagônicas. Esse é o pensamento de Mello[13]:
A ideia (…) que está por detrás dessas afirmações é de que, tal como na esfera judicial, para produzir-se o ato próprio de cada função não se requer apenas consonância substancial dele com a norma que lhe serve de calço, mas também com os meios de produzi-la. Com efeito, no Estado de Direito os cidadãos têm a garantia não só de que o Poder Público estará, de antemão, cifrado unicamente à busca dos fins estabelecidos em lei, mas também de que tais fins só poderão ser perseguidos pelos modos adrede estabelecidos para tanto.
É no modus procedendi, é, em suma, na escrupulosa adscrição ao due process of law que residem as garantias dos indivíduos e grupos sociais. Não fora assim ficariam todos e cada um inermes perante o agigantamento dos poderes de que o Estado se viu investido como consectário inevitável das necessidades próprias da sociedade hodierna. Em face do Estado contemporâneo – que ampliou seus objetivos e muniu-se de poderes colossais –, a garantia dos cidadãos não mais reside sobretudo na prévia delimitação das finalidades por ele perseguíveis, mas descansa especialmente na prefixação dos meios, condições e formas a que se tem de cingir para alcançá-los. (grifos do autor)
Temos, assim, que os principais direitos processuais a serem observados são o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório:
- Devido processo legal: segundo Didier Jr.[14], esse princípio “(...) confere a todo sujeito de direito, no Brasil, o direito fundamental a um processo devido (justo, equitativo etc)” e tem a “(...) função de criar os elementos necessários à promoção do ideal de protetividade” (grifo do autor). Sua observância abrange o respeito às demais garantias processuais, como a razoável duração do processo, juiz natural, proibição de provas ilícitas, entre outras. Possui, ademais, duas dimensões: a procedimental (observância dos preceitos constitucionais e legais) e a substancial (um processo que gere decisões justas).
- Contraditório: é um princípio expresso na Constituição e tem duas dimensões: a formal (direito de participar do processo, ser ouvido, ser comunicado) e a substancial (o direito de interferir habilmente no processo: “não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo. Apenas isso não é suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado”, como leciona Didier Jr.[15]). A questão é bastante clara: normalmente um processo (qualquer que seja sua natureza) culmina com aplicação de sanção a uma das partes; é justo punir alguém sem que esta pessoa tenha podido manifestar-se contra os fundamentos da decisão? A sagração desse princípio visa justamente à prolação de decisões equitativas, após à possibilidade de manifestação e defesa das partes.
- Ampla defesa: embora antigamente fosse estudado em separado do contraditório, hoje (mormente por estarem previstos no mesmo dispositivo constitucional) entende-se que não há um sem o outro: a ampla defesa acaba constituindo o caráter substancial do outro princípio.
Obviamente não pretendemos esgotar esse tema no presente artigo, mas lembrar que essas garantias devem ser observadas também no processo administrativo, inclusive no que concerne ao sistema de trânsito, já que não há exceções. É o que preceitua a Constituição Federal:
Art. 5º.
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
A Lei do Processo Administrativo também menciona essa proteção:
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I - atuação conforme a lei e o Direito; (...)
VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;
VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;
XII - impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados;
XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
Art. 3º. O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações.
A Lei n° 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), apesar de tratar do processo administrativo relacionado a infrações de trânsito, é lacônico no que concerne à defesa do motorista. Apenas menciona as formalidades na lavratura da multa e os recursos cabíveis, a partir do artigo 280. Mas obviamente deve prevalecer o previsto na Carta Maior, especialmente porque a observância dos direitos de defesa do condutor, como veremos, em nada dificultaria ou obstaria a conclusão eficaz desse ato/ procedimento administrativo.
3.2. Importância e atributos dos atos administrativos na consecução do atendimento do Princípio da Supremacia do Interesse Público.
Princípio, conforme lição de Didier Jr.[16], é uma espécie normativa: “trata-se de norma que estabelece um fim a ser atingido”. Já segundo Ávila[17],
se essa espécie normativa visa a um determinado estado de coisas, e esse fim somente pode ser alcançado com determinados comportamentos, esses comportamentos passam a constituir necessidades práticas sem cujos efeitos a promoção do fim não se realiza. Nesse sentido, os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários.
Ferreira Filho[18], afirma que
os juristas empregam o termo ‘princípio’ em três sentidos de alcance diferente. Num primeiro, seriam ‘supernormas’, ou seja, normas (gerais ou generalíssimas) que exprimem valores e que por isso, são ponto de referência, modelo, para regras que as desdobram. No segundo, seriam standards, que se imporiam para o estabelecimento de normas específicas - ou seja, as disposições que preordenem o conteúdo da regra legal. No último, seriam generalizações, obtidas por indução a partir das normas vigentes sobre determinada ou determinadas matérias. Nos dois primeiros sentidos, pois, o termo tem uma conotação prescritiva; no derradeiro, a conotação é descritiva: trata-se de uma ‘abstração por indução’.
Resumidamente e concordando com o ponto de vista dos juristas citados, pode-se afirmar que os princípios são a base da construção, interpretação e aplicação de todo ordenamento jurídico. Têm fulcro na ética, na moral, nas características do estado individualmente considerado e na sociedade onde se encontram inseridos, visando a indicar o caminho ideal para nortear a construção da figura estatal e a condução da própria vida humana. É aí, segundo Comparato[19], que reside a principal diferença específica entre a norma pura e o princípio: “a norma se guia pela eficiência, referindo-se à criação de meios para obter determinado resultado, bom ou mau, individual ou coletivamente, ao passo que o princípio acentua o fim último visado pelo agente e o seu valor”.
Nesse âmbito, nossa Constituição é rica em princípios, os nortes do ordenamento jurídico como um todo, sintetizando dos valores primordiais do Brasil enquanto estado. No presente artigo, no entanto, interessa um dos princípios mais importantes da Administração Pública, que deve determinar os meios e fins de todos os atos ali empreendidos: o da Supremacia do Interesse Público.
Tal princípio, também chamado de rinalidade administrativa, vincula os administradores e legisladores, exigindo que cada ato realizado no âmbito da administração pública tenha como fim maior a sagração do bem-comum, a busca do caminho que melhor atender os interesses da sociedade como um todo. Sua implementação, como diversas construções do Direito moderno, foi realizada ao longo da história, representando uma vitória sobre os modelos estatais que objetivavam priorizar certos grupos sociais em detrimento de outros.
Apesar das críticas a esse critério distintivo, que realmente não é absoluto, algumas verdades permanecem: em primeiro lugar, as normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando, depois de superados o primado do direito civil (que durou muitos séculos) e o individualismo que tomou conta dos vários setores da ciência, inclusive a do Direito, substituiu-se a idéia do homem como fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais.
Dessarte, os eixos basilares da condução das atividades estatais devem ser dois princípios que são, de certa forma, indissociáveis: o da Supremacia do Interesse Público e o da Indisponibilidade do Interesse Público. Conforme ressalta Borges[20], “sobre esses pilares é que se estruturam, de um lado, as chamadas prerrogativas de potestade pública e, de outro, as sujeições de potestade pública, que corporificam o conteúdo da atividade administrativa” (grifos da autora). Assim, o exercício da atividade administrativa em sentido estrito[21], seja qual for, deve ter como objetivo maior e mais relevante o atendimento dos interesses da sociedade, de modo a melhorá-la, beneficiá-la e cumprir o previsto na Constituição Federal. Essa é uma das características primordiais do estado democrático de direito, considerando que esse ente existe em função do cidadão e da sociedade e não o contrário.
Obviamente, não podemos inferir que todos os atos da administração visam irrestritamente ao bem-comum, já que é largamente conhecida a pontual ocorrência de abusos de autoridade e de desvios de finalidade, seja por um policial que pede/aceita propina ou por um governante que aplica ilegalmente recursos. Desde o mês de agosto passado, por exemplo, estamos presenciando o julgamento histórico, pelo STF, de diversas autoridades que teriam sido flagradas cometendo crimes administrativos no exercício do poder estatal, no evento conhecido como “Mensalão”. Aqui fazemos o primeiro contraponto: por mais que os objetivos da Administração sejam nobres, corretos e constitucionais, a mesma é conduzida por pessoas como nós, também cidadãos, seres humanos passíveis de erros, vicissitudes e, em alguns casos, desonestidades. Por isso, corroboramos Borges[22], que, citando Justen Filho, ressalta que o termo “interesse público” é plurissignificativo. É difícil defini-lo, já que pode referir-se a uma infinidade de situações: pode confundir-se com interesse do Estado, da Administração ou do agente administrativo.
Ora, juridicamente, o titular do interesse público é o povo, a sociedade (no seu todo ou em parte). Mas os governantes refugiam-se neste princípio para evitar o controle de seus atos pela sociedade.
Fundamentar as decisões no “interesse público” produz a adesão de todos, elimina a possibilidade de crítica. Mais ainda, a invocação do “interesse público” imuniza as decisões estatais ao controle e permite que o governante faça o que ele acha que deve ser feito, sem a comprovação de ser aquilo, efetivamente, o mais compatível com a democracia e com a conveniência coletiva.
O mau uso do termo “interesse público” pode, como visto, conduzir a injustiças e à má gestão pública, caso não haja o eficiente controle dos atos estatais. No mesmo sentido, Barroso[23] define interesse público primário e secundário: segundo ele, o primeiro
(…) é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar-social. Estes são interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar despesas.
Veja-se que os interesses primário e secundário têm a mesma raiz: a atuação do estado em prol da sociedade, mas cada um privilegia um objetivo: aquele o bem-estar social, esse o erário. Talvez seja a mesma problemática que denota a diferenciação entre supremacia e autoridade estatal, conforme já comentamos. Desde a Idade Moderna Rousseau[24] já defendia o mesmo ponto de vista:
só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição, que é o bem comum, porque, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses vários interesses forma o liame social e, se não houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada.
Portanto, o estado desempenha um papel ímpar na democracia constituída: face aos fenômenos culturais, sociais, econômicos, jurídicos e administrativos que gera, termina por congregar em torno de sua figura toda a sociedade, devendo coordenar suas ações em busca do verdadeiro interesse público, aquele que privilegia a figura estatal não pelo poder que emana ou pela vontade do administrador, mas por representar um bem maior, uma comunidade com anseios, necessidades e perspectivas. Dessa forma, o bem-comum representa a soma dos anelos e aspirações difundidos e requeridos na comunidade que, após identificação e valoração axiológica pelo Administrador, são concebidos como ações a serem concretizadas ou levadas a efeito no âmbito social. Essas necessidades são múltiplas, com variadas origens, requerendo graus variados de proteção e urgência. Nessa questão entram variáveis como urgência, necessidade, possibilidade, previsão legal, Direitos Fundamentais, mínimo existencial, “reserva do possível”, orçamento, cumprimento da Constituição, entre outros. Novamente, será função do estado ponderar e ter um cuidadoso trabalho de sopesamento das condições encontradas, como ressalta Binenbojm[25], a fim de dar a
(...) exata interpretação da 'vontade geral da sociedade'. (…) Nessa avaliação, não deve entrar nenhuma dose de discricionariedade do governante. Será o melhor intérprete aquele que melhor se identificar com os legítimos reclamos e aspirações sociais de seu tempo, em uma postura que nosso ordenamento jurídico exige, como luminoso ponto cardeal de sua atuação (art. 37, caput, da Constituição) seja impessoal e descompromissada com outros interesses estranhos.
Esse trabalho, como visto, é bastante complexo, devendo ter como fulcro os princípios da legalidade, proporcionalidade e razoabilidade, principalmente. A comunidade deve ser o objetivo principal do governante/ administrador, indicando as melhores maneiras de ampliar o bem-estar na sociedade e o atendimento das políticas relevantes. Claro que nem sempre as decisões tomadas pelos responsáveis agradam aos cidadãos, seja pela existência da “opção trágica”[26], seja pela possibilidade de erros e até abusos.
É importante para o presente artigo relembrar ainda que os atos administrativos, inclusive os referentes à consecução de interesses públicos, têm algumas características peculiares: presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade. Pela imperatividade, o estado impõe sua vontade ao particular independente da concordância do mesmo; na autoexecutoriedade, a administração pode agir independentemente de autorização judicial; e pela exigibilidade cria obrigações ao cidadão. Cada um desses atributos tem grande relevância, conferindo rapidez, eficácia e efetividade ao exercício estatal. A que mais nos importa, no entanto, é a primeira: a presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos.
3.3. A presunção de legitimidade dos atos administrativos x defesa do motorista face à aplicação de multa de trânsito.
Conforme ensina Di Pietro[27], a presunção de legitimidade abrange dois aspectos: “de um lado, a presunção de verdade, que diz respeito à certeza dos fatos; de outro lado, a presunção da legalidade, pois, se a Administração Pública se submete à lei, presume-se, até prova em contrário, que todos os seus atos sejam verdadeiros e praticados com observância das normas legais pertinentes.” A veracidade atina a fatos e declarações, decorrendo daí a fé pública de que gozam os atos e servidores públicos, desde que atendidas as formalidades legais. Já a legitimidade está relacionada à coerção que o estado pode exercer legalmente sobre o particular: este deve atender aos reclamos da atividade administrativa, que se presume conforme em relação do aspecto jurídico. Ambas decorrem do fato de que, em tese, todos os atos administrativos são autorizados por lei, devido ao princípio da legalidade estrita, sendo realizados em consonância com formalidades legais pré-definidas pelo legislador para que essas ações pudessem atingir seus objetivos de acordo com a Carta Maior.
Observa-se que tal potestade é sumamente importante para o exercício célere da atividade administrativa, que tem a possibilidade de executar seus atos sem necessidade de autorização judicial. A execução é imediata, denotando o poder de agir e criar obrigações ao particular, de modo a realizar as ações previstas na Constituição e demais diplomas legais e concretizar a defesa do interesse público. “Desta atribuição decorrem as seguintes consequências: o ato deve ser cumprido até ser decretado ilegítimo e a nulidade só pode ser decretada pelo Poder Judiciário se provocado para este fim”, como pondera Loro[28].
No entanto, essa presunção, como não poderia deixar de ser, é juris tantum, ou seja, admite prova em contrário. Não fosse isso, toda a tentativa histórica de equilibrar o poder estatal com a defesa dos direitos dos cidadãos desmoronaria, já que os administrados estariam eternamente subjugados ao arbítrio da administração. Apesar disso, a tendência da doutrina e jurisprudência é indicar que o administrado produza a prova cabal hábil a desconstituir a presunção de legitimidade. Apesar de discordarmos, já que o estado também pode ser instado pelo juiz a produzir provas, não há equívoco nesse entendimento, pois trata-se de uma interpretação jurídica da presunção de legitimidade em nome do interesse público (art. 2º, XIII, primeira parte, da Lei n° 9.784/99). O grande problema é colocar sobre o cidadão o peso de produzir provas cabais sem que lhe tenha sido oferecida a possibilidade de fazê-lo, pondo-o em um processo no qual não terá chance alguma de provar que agiu corretamente.
Hely Lopes Meirelles defende que o ônus de provar a ilegalidade do ato pertence ao administrado, já que este apresenta o questionamento do ato e essa, reiteramos, é a tendência para a qual se inclina a jurisprudência:
MULTA DE TRÂNSITO ANULAÇÃO PRESUNÇÃO DE VERACIDADE E LEGITIMIDADE.
Autor que ataca a legalidade das autuações que lhe foram impostas Ausência de elementos capazes de infirmar a presunção de legitimidade e veracidade que recai sobre estes atos. Sentença de improcedência mantida. Recurso desprovido[29].
VEÍCULO Multa de trânsito Anulação Ausente prova inequívoca a desconstituir o ato administrativo Presunção de legitimidade e veracidade - Sentença de procedência reformada Recurso provido. Deve ser mantida a multa se não trouxe aos autos prova a ensejar a desconstituição do ato administrativo[30].
E o entendimento também se estende a julgados relativos a outros atos administrativos questionados:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO -VIOLAÇÃO DOS ARTS. 168, 515 535 DO CPC -SÚMULA 284 DO STF -JULGAMENTO EXTRA PETITA -INOCORRÊNCIA -AUTO DE INFRAÇÃO -PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE -ÔNUS DA PROVA -PARTICULAR -BASE DE CÁLCULO DO TRIBUTO -MATÉRIA DE PROVA -SÚMULA 7 DO STJ -ISS -LISTA DE SERVIÇOS -TAXATIVIDADE -INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. (...)
3. O auto de infração é ato administrativo que, enquanto tal, goza de presunção de veracidade e legitimidade, cabendo ao particular o ônus de demonstrar o que entende por vício[31].
PEDIDO DE SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR AJUIZADO PELA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. REAJUSTE DA TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO.
Até prova cabal em contrário, prevalece a presunção de legitimidade do ato administrativo praticado pela Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel. Agravo regimental provido[32].
Entretanto, há uma corrente doutrinária, incluindo-se aí Maria Sylvia Zanella di Pietro e Diógenes Gasparini, que defende que apenas a presunção de legitimidade pura não poderia servir para formar a convicção do juiz: a administração, ao menos em juízo, também poderia ser concitada a produzir provas de que o cidadão incorreu em infração, como explica Pietro[33]:
a parte que propôs a ação deverá, em princípio, provar que os fatos em que se fundamenta a sua pretensão são verdadeiros; porém isto não libera a Administração de provar a sua verdade, tanto assim que a própria lei prevê, em várias circunstâncias, a possibilidade de o juiz ou o promotor público requisitar da Administração documentos que comprovem as alegações necessárias à instrução do processo e à formação da convicção do juiz.
A prática do entendimento majoritário tem significado que o administrado muitas vezes é obrigado a “(...) provar algo impossível, como por exemplo, a inocorrência de um fato”, como pondera Gasparini[34], e a administração termina por vencer a lide, já que, em tese, nada precisa demonstrar. Esse entendimento é reflexo de um estado autoritário e absolutista, cujas ações são praticamente inquestionáveis; os atos que deveriam ter presunção relativa acabam tendo presunção absoluta, porque não são conferidos/ garantidos meios para que o administrado possa provar a suposta ilegalidade. Necessário ressaltar que corroboramos a importância da presunção de legitimidade dos atos administrativos e exaltamos sua relevância no estado de direito; essa potestade confere maior celeridade e efetividade para realização dos atos administrativos, o que beneficia a própria sociedade. No entanto, deve haver um meio de coexistência harmônica entre esse atributo e os Direitos Fundamentais Processuais do cidadão (ampla defesa, contraditório e devido processo legal), para que o mesmo não tenha seu patrimônio tolhido sem nenhuma chance de defesa, mormente pela presunção relativa (e não absoluta) desses atos. E mais ainda: mesmo que a jurisprudência majoritária jamais mude seu entendimento e a presunção de legitimidade continue sendo o maior meio de prova da administração, deve-se ao menos assegurar a oportunidade ao cidadão de produzir suas provas e defender-se. Ou seja: no curso do processo administrativo (ou mesmo judicial) a autoridade julgadora deve verificar se houve oportunidade para o administrado construir um conjunto comprobatório, por menor que seja, pois não existe contraditório se a parte não tiver a mínima chance de influenciar a decisão final.
Essa situação é bem ilustrada na aplicação de multa pelo guarda de trânsito. Assim como pode registrar corretamente a infração, ele é um ser humano passível de erros: pode anotar a placa errada, agir de forma incorreta, observar de longe e inferir infração que não ocorreu. Mas mesmo que tenha havido um erro (o que jamais poderá ser demonstrado, já que o condutor não conseguirá prová-lo), a declaração unilateral do agente vale mais que a do motorista, que invariavelmente terá que pagar a multa. Como Gasparini afirmou, para defender-se da multa o administrado teria que provar algo impossível, se não vejamos: multado por dirigir sem cinto de segurança o motorista teria que provar que, naquele momento, havia sim colocado o cinto; ou que não estacionou em local proibido naquele dia; ou que não avançou o sinal vermelho naquele horário, em cruzamento sem “pardal”; ou que não havia bloqueado a via com seu veículo há quinze dias. Como provar tal situação? É impossível!! Essa é, sem dúvidas, uma supressão disfarçada do direito de defesa do indivíduo, que tem o direito de interpor recurso para o departamento de trânsito e para a JARI (Junta Administrativa de Recursos de Infrações) assegurado, mas a possibilidade de provimento é quase nula pela falta de provas. É como se voltássemos à Idade Média, quando havia tribunais apenas para fingir que o acusado teria um julgamento justo, embora desde o início já estivesse condenado.
Felizmente já é possível encontrar decisões[35] que, a contrario sensu dessa jurisprudência que consideramos defasada, entendem que a presunção de legitimidade não pode ser o único meio de prova da administração e que o direito de defesa do cidadão deve ser observado, especialmente por sua proteção constitucional:
O juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte, cancelou uma multa aplicada pela Bhtrans porque considerou que a simples declaração unilateral do agente da Administração Pública é insuficiente para a validade do ato administrativo (grifo nosso).
“Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a Justiça, que o do mais alto dos poderes”. Lembrando uma passagem de Rui Barbosa, o juiz frisou a importância de se preservar a garantia dos direitos individuais.
Uma professora reclamou que recebeu duas multas porque o seu marido, que dirigia o carro dela, estacionou em local proibido e dirigia sem cinto de segurança. Ela questionou somente a multa relativa ao uso do cinto. Negou que o marido estivesse dirigindo sem o acessório e requereu a suspensão da penalidade.
A Bhtrans alegou que as infrações foram constatadas por agente de trânsito e lavradas de acordo com a lei. Afirmou, ainda, que o Auto de Infração goza da presunção de legitimidade (fé pública) e veracidade, de modo que cabe ao reclamante provar o contrário.
O magistrado ressaltou que é um equívoco comum a afirmação de que o ato praticado por agente da Administração Pública produz prova por si só, e que, em razão da fé pública que emana do mesmo, cabe ao administrado o ônus da prova para a sua desconstituição. “Interpretação nesse sentido é um resquício do autoritarismo que historicamente tem gerido os atos da Administração Pública brasileira, muitas vezes impossibilitando o exercício da defesa, já que não é possível a produção de prova em contrário”, arguiu.
O magistrado entende que o ônus da prova é da Bhtrans. “Não há como impor ao administrado a produção de prova negativa, devendo a Administração Pública provar o fato, não bastando a mera afirmação do agente de trânsito”, concluiu.
Ele ainda esclareceu que somente quando o ato questionado for afirmado ou declarado pelo próprio administrado, ou mesmo documentado fotograficamente, cumpre a este o ônus da prova.
Além da necessidade constitucional de proteger os Direitos Fundamentais Processuais do cidadão outro ponto justifica uma nova abordagem no que concerne à aplicação de multas de trânsito por guardas. Ora, sabemos que o papel desse agente é extremamente importante na organização do trânsito; seu trabalho visa essencialmente o interesse público, evitando acidentes, desembaraçando congestionamentos, coibindo procedimentos errados, orientando motoristas e pedestres. E o interesse público, como visto, deve ser o fim colimado pela administração, sobrepujando qualquer outro. No entanto, embora na maioria das situações este acabe prevalecendo sobre o particular, isso não significa que o interesse do cidadão é menor ou menos importante. Escola[36] faz uma observação importante nesse sentido: “o interesse público (…) não é de entidade superior ao interesse privado, nem existe contraposição entre ambos: o interesse público só é prevalecente, com respeito ao (…) privado, só tem prioridade ou predominância, por ser um interesse majoritário, que se confunde e assimila com o querer valorativo atribuído à comunidade”. Assim, o prevalecimento diz respeito a uma situação quantitativa e não qualitativa, se admitirmos que, no caso do interesse público, uma gama muito mais ampla de indivíduos poderá ser beneficiada em vez de apenas um, o que não significa que o interesse daquela pessoa específica não tem relevância. É o caso da residência desapropriada para a construção de um hospital: factualmente, a obra pública atenderá milhares de pessoas e, portanto, quantitativamente, estar-se-á atendendo grande quantidade de cidadãos. Mas os direitos do proprietário do imóvel, retirado de sua casa, obrigado a mudar-se sem que isso, muitas vezes, fizesse parte de seus planos, não são esquecidos nem alijados: ele tem que ser compensado com a justa indenização. Esse equilíbrio e o respeito aos interesses individuais é sumamente importante, sobretudo em um estado como o Brasil, considerando que um de seus fundamentos é a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, quando um motorista é multado por supostamente estar cometendo uma infração, o guarda está, em tese, cumprindo sua tarefa, coibindo procedimentos que podem ser prejudiciais ao bom andamento do trânsito e à sociedade em geral; mas isso deve ser feito com observância dos direitos dos cidadãos. Sem modificar o CTB, essa situação poderia ser facilmente corrigida, equipando os agentes de trânsito com máquinas fotográficas (como ocorre com fiscais de outros órgãos administrativos como ANVISA, Polícia Federal e Receita Federal), por exemplo: o registro da imagem da infração cometida serviria de prova tanto para a administração (com um processo administrativo bem instruído, não se baseando apenas na declaração unilateral do guarda) como para o administrado (que poderia, se fosse o caso, questionar o cometimento da infração munido de prova documental). É um meio não tão caro e seria uma forma de proporcionar maior credibilidade aos órgãos de trânsito e aos seus agentes, já que muitas vezes se fala na existência de uma “indústria de multas”. O trânsito é uma questão extremamente complicada no Brasil; tornar as pessoas mais conscientes e certas de seus direitos é uma forma de melhor atender ao ordenamento jurídico e ainda contribuir para a melhoria desse sistema.
Essa é apenas uma sugestão. O importante, em cada ato da administração, é partir do pressuposto de que a sagração do interesse público e a proteção dos Direitos Fundamentais Individuais devem ser os fulcros primeiros de sua atuação, e os mesmos devem caminhar juntos e com igual importância social e jurídica.