1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa analisar a natureza jurídica da prisão em flagrante, após o advento da Lei 12.403 de 04 de maio de 2011. Diante da alteração legislativa a doutrina não é unânime no que toca a sua natureza jurídica, o que vai ser analisado ao final do trabalho.
É certo que a Lei 12.403/11 provocou profundas alterações no Código de Processo Penal, alterado a sistemática relativa às medidas cautelares de natureza pessoal e provocando reflexos na prisão em flagrante delito. Anteriormente, havia o entendimento de que a prisão em flagrante, por si só, era fundamento suficiente para que o acusado permanecesse preso durante todo o processo, constituindo-se assim medida de natureza cautelar. Era prevalente o entendimento de que a prisão em flagrante era modalidade autônoma de custódia provisória, ou seja, era possível a manutenção do sujeito no cárcere, independentemente de conversão em preventiva após a homologação do auto de prisão em flagrante.
Com o advento da Lei 12.403/11, caso a prisão em flagrante seja legal, o juiz deve convertê-la em preventiva ou conceder liberdade provisória, nos casos em que a lei admite. Nesse contexto, surgiu controvérsia na doutrina acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante, o que será analisada mais profundamente no presente trabalho.
2. CONCEITO DE PRISÃO EM FLAGRANTE
É uma prisão que consiste na restrição da liberdade de alguém, independente de ordem judicial, nas hipóteses estabelecidas no texto legal. Flagrante é o delito que está sendo cometido ou acabou de sê-lo. Prisão em flagrante delito é, assim, a prisão daquele que é surpreendido no momento da realização da conduta criminosa.
Renato Brasileiro de Lima (2011, p. 177), conceitua a prisão em flagrante da seguinte forma:
A expressão “flagrante” deriva do latim “flagrare” (queimar), e “flagrans”, “flagrantis” (ardente, brilhante, resplandecente), que no léxico, significa acalorado, evidente, notório, visível, manifesto. Em linguagem jurídica, flagrante seria uma característica do delito, é a infração que está queimando, ou seja, que está sendo cometida ou acabou de sê-lo, autorizando-se a prisão do agente mesmo sem autorização judicial em virtude da certeza visual do crime. Funciona, pois, como mecanismo de autodefesa da sociedade.
Nas palavras de Távora; Alencar (2011, p. 530), a prisão em flagrante delito:
É uma medida restritiva de liberdade, de natureza cautelar e caráter eminentemente administrativo, que não exige ordem escrita do juiz, porque o fato ocorre de inopino (art. 5º, inciso LXI da CF). Permite-se que se faça cessar imediatamente a infração com a prisão do transgressor, em razão da aparente convicção quanto à materialidade e a autoria permitida pelo domínio visual dos fatos.
A medida é consubstanciada na privação de liberdade de locomoção do sujeito surpreendido em situação de flagrância. Sua execução independe de prévia autorização judicial, como se depreende da leitura do art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal.
Para Paulo Rangel (2007, p. 585), são exigidos dois elementos para sua configuração, quais sejam: atualidade e visibilidade. Vejamos as palavras do autor:
A atualidade é expressa pela própria situação flagrancial, ou seja, algo que está acontecendo naquele momento ou acabou de acontecer. A visibilidade é a ocorrência externa do ato. É a situação de alguém atestar a ocorrência do fato ligando-o ao sujeito que o pratica. Portanto, somadas a atualidade e a visibilidade tem-se o flagrante delito.
Das palavras do autor, acima transcritas, infere-se que o fundamento da prisão em flagrante é justamente a possibilidade de se constatar a ocorrência do delito de maneira clara e evidente, sendo desnecessária para sua realização a análise de um juiz de direito.
A prisão em flagrante visa evitar a fuga do infrator, assegurar a colheita de provas da materialidade e da autoria, além de impedir a consumação do delito.
3. SUJEITOS DO FLAGRANTE
Com relação ao sujeito do flagrante delito, temos o sujeito ativo e o sujeito passivo, vejamos cada um deles:
3.1 Sujeito ativo da prisão em flagrante
Sujeito ativo da prisão em flagrante é aquele que realiza a prisão do sujeito encontrado em umas das situações de flagrância previstas no art. 302 do Código de Processo Penal. Pode ser feita por qualquer pessoa, integrante ou não da força policial. Já o condutor é quem apresenta o preso a autoridade que presidirá a lavratura do auto, que pode não ser aquele que efetuou a prisão.
O art. 301 do Código de Processo Penal reza que “qualquer pessoa do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem que quer seja encontrado em flagrante delito”.
A lei conferiu a possibilidade de qualquer do povo (inclusive a própria vítima) prender aquele que for encontrado em flagrante delito. Trata-se de flagrante facultativo, pois ao particular é dada a opção de efetuar ou não a prisão, levando em conta risco e as conseqüências de sua ação. Quando qualquer do povo prende alguém em flagrante, está agindo sob a excludente de ilicitude denominada exercício regular de direito, em consonância com o art. 23, inciso III, do Código Penal.
Quanto ás autoridade policiais e seus agentes, a lei impôs o dever de efetuar a prisão em flagrante, não tendo discricionariedade sobre a conveniência ou não de efetivá-la. Cuida-se do flagrante obrigatório, devendo o agente público efetuar a prisão sob pena de responder criminal e funcionalmente pelo seu descaso. Nesse caso, o agente age em estrito cumprimento do dever legal, devendo efetuar a prisão durantes as 24 horas do dia, quando possível.
3.2 Sujeito passivo da prisão em flagrante
O sujeito passivo da prisão em flagrante é a pessoa que se encontra em flagrância, ou seja, é o autor da infração ou quem concorre na infração. Pelos menos em regra, qualquer pessoa pode ser presa em flagrante. Existem algumas exceções constitucionais ou legais à realização da prisão em flagrante, pois há pessoas que, em razão do cargo ou da função exercida, não podem ser presas dessa forma, são as chamadas imunidades prisionais.
São exemplos de imunidades prisionais: a) diplomatas, que não são submetidos a prisão em flagrante, por força de convenção internacional; b) Presidente da República, conforme art. 86, § 3º, da Constituição Federal; c) Membros do Congresso Nacional, que só podem ser presos por crime inafiançável, conforme estabelece o art. 53, § 2º, da Constituição Federal; d) magistrados e membros do Ministério Público, que somente podem ser presos em flagrante por crime inafiançável, devendo a autoridade fazer a imediata comunicação e apresentação, respectivamente ao Presidente do Tribunal ou ao Procurador Geral; além de outros casos previstos em lei.
4. ESPÉCIES DE FLAGRANTE
As espécies de prisão em flagrante delito estão previstas no art. 302, do Código de Processo Penal. São elas: o flagrante próprio, flagrante impróprio e o flagrante presumido.
Vejamos o disposto no art. 320, do Código de Processo Penal:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
A interpretação do artigo 302 do Código de Processo Penal é insuscetível de analogia, ou de interpretação extensiva, pois a liberdade individual não se submete a critérios de simples conveniência processual. Essas modalidades de prisão em flagrante se diferenciam pelas circunstancias de tempo e modo em que é preso o sujeito ativo da infração. Mas é certo que a lei processual penal não pode ser casuística, e, portanto em cada hipótese que se apresente cabe ao juiz apreciá-la com muito cuidado a fim de decidir com acerto.
Além das hipóteses disciplinadas no Código de Processo, existem outras idealizadas pela doutrina e pela jurisprudência, vejamos:
4.1 Flagrante próprio
Também chamado de flagrante perfeito, real ou verdadeiro. Essa modalidade contempla duas situações, quais sejam: aquela em que o agente é preso quando da realização do crime e quando o agente é preso quando acaba de cometer a infração. Essas são as hipóteses previstas nos incisos I e II do art. 302 do Código de Processo Penal, acima transcrito.
Na primeira situação (inciso I) o agente está em pleno desenvolvimento dos atos executórios da infração penal, é surpreendido no momento em que está praticando o verbo núcleo do tipo penal, devendo ter a prisão efetuada. Renato Brasileiro de Lima (2011, p. 185) faz salutar observação, ressaltado que mesmo que haja atipicidade material da conduta a prisão deve ser realizada, vejamos:
Ainda que, posteriormente, seja reconhecida a atipicidade material de sua conduta (v.g., por força do princípio da insignificância), isso não tem o condão de afastar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, porquanto a análise que se faz, no momento da captura do agente, restringe-se à análise da tipicidade formal.
A segunda situação (inciso II) ocorre quando o agente é encontrado imediatamente após cometer o delito. Este é encontrado depois de concluir a prática da infração penal, ficando clara a materialidade do crime e da autoria delitiva.
Segundo Távora; Alencar (2011, p. 531), essa “é a modalidade que mais se aproxima da origem da palavra flagrante, pois há um vínculo de imediatidade entre a ocorrência da infração e a realização da prisão”. Vale ressaltar também o elevado valor probatório do flagrante próprio, diante da certeza visual e concreta da conduta criminosa, ainda mais quando amparada por outras provas, como a testemunhal.
4.2 Flagrante impróprio
Flagrante impróprio, também chamado de imperfeito, irreal ou quase-flagrante, ocorre quando alguém é perseguido, logo após, por autoridade policial ou qualquer pessoa, até mesmo o próprio ofendido, em situação em que faça presumir ser autor da infração. O quase-flagrante está previsto no art. 302, inciso III, do Código de Processo Penal.
A expressão “logo após” compreende todo espaço de tempo que flui entre o acionamento da autoridade policial, seu comparecimento ao local e a colheita de elementos necessários para o inicio da perseguição ao autor.
A doutrina mais abalizada entende que carece de fundamento legal a crença popular de que a prisão em flagrante só pode ser efetuada em até 24 horas após o cometimento do crime. Não havendo solução de continuidade, isto é, se a perseguição não for interrompida, mesmo que demore horas ou dias, havendo êxito na captura do acusado, estaremos diante de flagrante delito.
Sendo assim, fica claro que no quase-flagrante o importante é que a perseguição tenha início logos após o cometimento do crime, podendo perdurar no tempo, desde que de forma ininterrupta e contínua.
Como a lei não exprime o conceito legal de perseguição, a doutrina aplica por analogia o disposto no art. 290, § 1º, do Código de Processo Penal:
Art. 290. Omissis
§ 1º - Entender-se-á que o executor vai em perseguição do réu, quando:
a) tendo-o avistado, for perseguindo-o sem interrupção, embora depois o tenha perdido de vista;
b) sabendo, por indícios ou informações fidedignas, que o réu tenha passado, há pouco tempo, em tal ou qual direção, pelo lugar em que o procure, for no seu encalço.
[...]
Vale destacar que, nessas hipóteses de perseguição, a prisão pode ser efetuada em qualquer local, ainda que em outro Estado da Federação, em sua casa ou em casa alheia.
4.3 Flagrante presumido
É também chamado de flagrante ficto ou assimilado. Ocorre quando o agente é preso, logo depois de cometer a infração, com instrumentos, armas, objetos ou papeis que façam presumir ser ele o autor do delito. Essa espécie está prevista no art. 302, inciso IV, do Código de Processo Penal.
No flagrante presumido a lei não exige que ocorra perseguição, basta que a pessoa seja encontrada logo depois da prática do delito com objetos quem traduzam um forte indício de autoria e participação no crime ou contravenção.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento de que para caracterização do flagrante ficto, não há necessidade de se demonstrar que a perseguição ocorreu imediatamente após a ocorrência do delito, vejamos julgado nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. CRIMINAL. FLAGRANTE PRESUMIDO. PERSEGUIÇÃO. PERDA DOS MOTIVOS DA CUSTÓDIA.
1. Não há falar em ausência de flagrante quando a perseguição ao autor do delito se deu imediatamente ao fato e se fez ininterrupta até a sua prisão (artigo 302, inciso III, do Código de Processo Penal).
2. Para a caracterização do flagrante presumido, não há a necessidade de se demonstrar a perseguição imediatamente após a ocorrência do fato-crime, mas, sim, o encontro do autor, "logo depois", em condições de se presumir sua ação (artigo 302, inciso IV, do Código de Processo Penal).
3. Transcorridos vários anos desde o relaxamento da prisão em flagrante e não tendo sido decretada a prisão preventiva contra o réu, o restabelecimento da custódia subordina-se à demonstração da necessidade atual da medida cautelar.
4. Recurso conhecido, mas improvido.
(REsp 147839/PR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 01/03/2001, DJ 13/08/2001, p. 294)
Portanto, flagrante presumido ocorre quando alguém é surpreendido com coisas que façam presumir que tenha ele cometido o crime ou participado de qualquer forma do mesmo. A expressão “logo depois” admite uma maior elasticidade no lapso temporal, quando o agente é encontrado em condições suspeitas, aptas a autorizar a presunção de ser ele o autor do crime, o prazo pode ser estendido por várias horas, inclusive até o dia seguinte, se for caso.
3.3.4 Flagrante preparado ou provocado
O flagrante preparado, também chamado de flagrante provocado, crime de ensaio, delito de experiência ou delito putativo por obra do agente provocador, ocorre quando alguém insidiosamente provoca o agente à prática de um delito e, simultaneamente, toma as providências necessárias para que o crime não se consume. A execução do crime fica assim, impossibilitada ou frustrada, ou seja, o agente provocador retira a possibilidade de consumação, ocorrendo assim o crime impossível.
Vejamos as palavras de Távora; Alencar (2011, p. 533) ao tratar do tema:
No flagrante preparado, o agente é induzido ou instigado a cometer o delito, e, nesse momento, acaba sendo preso em flagrante. É um artifício onde verdadeira armadilha é maquinada no intuito de prender em flagrante aquele que cede a tentação e acaba praticando a infração.
Vale também transcrever as palavras de Paulo Rangel (2007, p. 601), que considera que o flagrante preparado não passa de uma “peça teatral”, vejamos:
No flagrante preparado, há toda uma montagem de um palco, onde o agente é o artista principal, porém desconhecendo que o seja. Somente ele não sabe que, no cenário que escolheu para praticar o crime, se passa uma peça teatral, onde os policiais (ou terceiras pessoas) vão impedir a lesão ao bem jurídico. Em verdade, a atuação dos policiais faz nascer e alimenta o delito, o qual não seria praticado se não fosse a sua intervenção.
Disciplina o tema a Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal: “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.
Para o Supremo, havendo preparação do flagrante e a consequente realização da prisão, existiria crime só na aparência, pois não há como haver consumação, já que esta é impedida pela realização da prisão. Dessa forma não poderá ser atuado e nem preso em flagrante o agente que é induzido á prática de um crime por autoridade pública ou até mesmo por particular, tendo em vista que nesta modalidade, o flagrante é um procedimento de ação do agente provocador, de modo a tornar impossível a consumação do delito.
3.3.5 Flagrante esperado
Para Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 575) o flagrante esperado é:
Essa é uma hipótese viável para autorizar a prisão em flagrante e a constituição válida do crime. Não há agente provocador, mas simplesmente chega à polícia a notícia de que um crime será, em breve, cometido. Deslocando agentes para o local, aguarda-se a sua ocorrência, que pode ou não se dar da forma como a notícia foi transmitida. Logo, é viável a sua consumação, pois a polícia não detém certeza absoluta quanto ao local, nem tampouco controla a ação do agente criminoso. Poderá haver delito consumado ou tentado, conforme o caso, sendo válida a prisão em flagrante, se efetivamente o fato ocorrer
Nessa espécie de flagrante, não há qualquer espécie de induzimento ou provocação ao cometimento do delito. Não há agente provocador, ocorre simplesmente que a polícia, seja através de denúncia ou através de sua atividade investigativa, toma conhecimento que irá ocorrer determinada atividade criminosa e se antecipa, aguardando o momento do cometimento de delito para efetuar a prisão.
O flagrante esperado difere-se do preparado, pois naquele não há induzimento a prática criminosa. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nesse sentido, deixando clara essa diferença:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE EXTORSÃO. ALEGAÇÃO DE FLAGRANTE PREPARADO. INOCORRÊNCIA. NÃO HÁ QUE SE CONFUNDIR FLAGRANTE PREPARADO COM FLAGRANTE ESPERADO. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. INEXISTÊNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA INCABÍVEL NA VIA ELEITA. AGUARDAR EM LIBERDADE O JULGAMENTO DE RECURSO ESPECIAL. EFEITO MERAMENTE DEVOLUTIVO.
1. Não se deve confundir flagrante preparado com esperado - em que a atividade policial é apenas de alerta, sem instigar qualquer mecanismo causal da infração.
2. A "campana" realizada pelos policiais a espera dos fatos não se amolda à figura do flagrante preparado, porquanto não houve a instigação e tampouco a preparação do ato, mas apenas o exercício pelos milicianos de vigilância na conduta do agente criminoso tão-somente a espera da prática da infração penal.
[...]
(HC 40436/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 16/03/2006, DJ 02/05/2006, p. 343)
No julgado acima, o Superior Tribunal de Justiça evidencia a diferença entre o flagrante esperado e o preparado, deixando claro que não se deve haver confusão entre as duas espécies. Segundo o Tribunal, a “campana” realizada pela polícia não se amolda à figura do flagrante preparado, tendo em vista não haver instigação, mas somente atividade de vigilância aguardando a prática da infração penal.
3.3.6 Flagrante prorrogado
Flagrante prorrogado, também chamado de protelado, retardado, diferido ou ação controlada, consiste no retardamento da intervenção policial, que deve ocorrer no momento mais oportuno do ponto de vista da investigação criminal ou da colheita de provas. Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 575) define o instituto como:
É a possibilidade de que a polícia possui de retardar a realização da prisão em flagrante, para obter maiores dados e informações a respeito do funcionamento, dos componentes e da atuação de uma organização criminosa.
Podemos perceber que se trata de flagrante de feição estratégica, constituindo um poder conferido á autoridade policial ou aos seus agentes o qual permite procrastinar a prisão imediata do agente que está em estado de flagrância, mantendo este elemento sob observação, á espera de uma oportunidade mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informação. Essa hipótese vem prevista na Lei das Organizações criminosas (Lei nº 9.304/1995) e na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006).
Na Lei de Organizações Criminosas, que dispõe sobre o combate e repressão das ações praticadas pelas organizações criminosas, é prevista a possibilidade da utilização do flagrante prorrogado para formação de provas e fornecimento de informações. A lei dispensa autorização judicial e prévia oitiva do Ministério Público, cabendo a autoridade policial verificar a conveniência ou não da medida. Vejamos o art. 2º, inciso II, da Lei nº 9.304/1995:
Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:
[...]
II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;
O flagrante postergado foi previsto também na Lei de Drogas, que promove a repressão ao uso e ao tráfico de drogas. A idéia é a mesma, mas os requisitos são diversos, já que na lei de tóxicos é necessária autorização judicial e prévia oitiva do Ministério Público, além do conhecimento do provável itinerário da droga e da identificação dos agentes do delito ou dos colaboradores. Vejamos o que dispõe o art. 53, inciso II, da Lei nº 11.343/2006:
Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
[...]
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Podemos perceber que o flagrante postergado consiste na flexibilização da obrigatoriedade da atuação imediata da polícia, visando a colheita de maiores dados e identificação da totalidade dos infratores envolvidos. Sendo assim, constitui-se medida de grande importância no combate a criminalidade organizada.
3.3.7 Flagrante forjado
Forjar significa adulterar ou falsificar, sendo assim podemos conceituar o flagrante forjado como aquele em que a situação de flagrância foi fabricada por terceiro, no intuito de incriminar pessoa inocente. Nas palavras de Távora; Alencar (2011, p. 536) o flagrante forjado é “a lídima expressão do arbítrio, onde a situação de flagrância é maquinada para ocasionar a prisão daquele que não tem conhecimento do ardil”.
É também chamado de flagrante forjado, maquinado ou urdido. Constitui-se uma modalidade ilícita de flagrante, totalmente artificial, tendo em vista ser integralmente comporto por terceiros. Nesse caso, o agente forjador responde pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339, CP) e sendo agente público, também por abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65).
Essa situação ocorre, por exemplo, quando alguém coloca uma arma no veículo de determinada pessoa, para que posteriormente lhe dê voz de prisão em flagrante pelo crime de porte ilegal de arma.
3.4 NATUREZA JURÍDICA DA PRISÃO EM FLAGRANTE
Como dito, a prisão em flagrante independe de prévia autorização judicial, estando sua efetivação limitada à presença de uma das situações de flagrância contidas no art. 302, do Código de Processo Penal.
Anteriormente, havia o entendimento de que a prisão em flagrante, por si só, era fundamento suficiente para que o acusado permanecesse preso durante todo o processo. Prevalecia na jurisprudência o entendimento de que a prisão em flagrante era modalidade autônoma de custódia provisória, ou seja, era possível a manutenção do sujeito no cárcere, independentemente de conversão em preventiva após a homologação do auto de prisão em flagrante.
Com a entrada em vigor da Lei 12.403/11, ficou claro que a prisão em flagrante, por si só, não mais autoriza que o agente permaneça preso ao longo de todo o processo. Vejamos o disposto na nova redação do art. 310 do Código de Processo Penal:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Sendo assim, caso a prisão seja legal, o juiz deve convertê-la em preventiva ou conceder liberdade provisória, nos casos em que a lei admite. Verifica-se que a prisão em flagrante não é apta, por si só, a manter o agente preso, a necessidade da prisão deve ser aferida a luz da presença de uma das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.
Nesse contexto, há discussão na doutrina acerca da natureza jurídica da prisão em flagrante. Há três posições, que consideram tratar-se de ato administrativo, prisão cautelar ou medida precautelar.
Inicialmente, há doutrinadores que entendem que a natureza jurídica da prisão em flagrante é ato administrativo, não lhe atribuindo natureza jurisdicional. É o que sustenta Walter Nunes da Silva Júnior (apud. LIMA, p. 182):
O que ocorre com a prisão em flagrante é, tão somente, a detenção do agente, a fim de que o juiz, posteriormente, decida se a pessoa deve ser levada, ou não, à prisão. Com isso, se quer dizer que não há, propriamente, uma prisão em flagrante como espécie de medida acautelatória processual penal. O flagrante delito se constitui e justifica apenas a detenção, cabendo ao juiz, após a análise por meio da leitura do auto de prisão em flagrante, definir se a prisão preventiva deve, ou não, ser decretada.
Para essa parcela da doutrina a prisão em flagrante é tão somente um ato administrativo, não considerando coerente classificá-la como medida processual acautelatória, haja vista é dispensada autorização judicial para tanto, sendo possível sua efetivação pela autoridade policial ou mesmo por particulares.
Em outra banda, grande parte da doutrina entende que o flagrante é espécie de prisão cautelar, ao lado da prisão preventiva e temporária. É opinião de Eugênio Pacelli de Oliveira (2012, p. 584), que diz:
A prisão em flagrante, então, ostenta o status de medida cautelar, precisamente delimitada no tempo. É que, cumpridas as suas funções, a manutenção do cárcere reclamará ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária, nos temos da Constituição da República (art. 5º).
Tourinho Filho (2008, p. 456) também perfilha o entendimento de que a prisão em flagrante tem natureza cautelar, porém considera um ato complexo, com duas fazes distintas, vejamos:
Mesmo que a prisão se efetive pelo Juiz, tal ato não perde o colorido de administrativo, pois o magistrado estaria, então, exercendo uma função administrativa e não jurisdicional. Se a prisão-captura é um ato emanado do poder de polícia, manifesto é o seu caráter administrativo. Entretanto, depois de efetivada a prisão e de lavrado respectivo auto, a prisão em flagrante pode converter-se e se convolar numa verdadeira medida cautelar.
Com entendimento semelhante, encontramos Guilherme de Souza Nucci (2012, p. 631), que dispõe:
Tem, inicialmente, natureza administrativa, pois o auto de prisão em flagrante, formalizador da detenção, é realizado pela polícia judiciária, mas se torna jurisdicional, quando o juiz, tomando conhecimento dela, ao invés de relaxá-la, prefere mantê-la, pois considerada legal, convertendo-a em preventiva.
Para Fernando Capez, em função das recentes alterações advindas da Lei 12.403/11, a prisão em flagrante perdeu o caráter de prisão provisória. Vejamos a opinião do autor:
Como já analisado, a partir da nova redação do art. 310, em seu inciso II, a prisão em flagrante, ao que parece, perdeu seu caráter de prisão provisória. Ninguém mais responde a um processo criminal por estar preso em flagrante. Ou o juiz converte o flagrante em preventiva, ou concede liberdade (provisória ou por relaxamento decorrente de vício formal). A prisão em flagrante, portanto, mais se assemelha a uma detenção cautelar provisória pelo prazo máximo de vinte e quatro horas, até que a autoridade judicial decida pela sua transformação em prisão preventiva ou não. (CAPEZ, 2012, p. 327).
Uma corrente nova capitaneada por doutrinadores como Aury Lopes Jr., Renato Brasileiro de Lima e Luiz Flávio Gomes, sustenta que a prisão em flagrante não se trata de medida processual, possuindo natureza jurídica de medida precautelar.
É essa a posição do professor Renato Brasileiro de Lima (2011, p. 182), que ao discorrer sobre o tema assim dispõe:
Sem embargo de opiniões em contrário, pensamos que a prisão em flagrante tem caráter precautelar. Não se trata de uma medida cautelar de natureza pessoal, mas sim precautelar, porquanto não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas objetiva colocar o capturado à disposição do juiz para que adote uma verdadeira medida cautelar.
No mesmo sentido são as lições de Luiz Flávio Gomes (2011, p. 90), que expõe: “A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, porque não tem o escopo de tutelar o processo ou o seu resultado final, sim, ela se destina a colocar o preso à disposição do juiz, para que tome as providências cabíveis”.
Sendo assim, para os autores acima, a prisão em flagrante teria inicialmente natureza de medida pré-cautelar, possibilitando a análise da necessidade da manutenção do encarceramento como medida de proteção do futuro processo. A prisão em flagrante tornar-se-ia prisão processual (cautelar) somente a partir do momento em que o juiz a converte em prisão preventiva.
Para essa corrente, a precariedade da prisão é marcada pela possibilidade de ser realizada por autoridade policial ou particulares, além do fato de ser efêmera, sendo imprescindível a análise judicial em até 24 horas, ocasião em que o juiz analisa sua legalidade e decide sobre a sua manutenção.
Abordados os diversos entendimentos encontrados na doutrina, podemos concluir que o melhor entendimento é aquele que considera a prisão em flagrante como medida pré-cautelar. Resta claro que a prisão em flagrante não se constitui medida cautelar, pois não tem por escopo a garantir o resultado final do processo, mas apenas objetiva colocar o capturado à disposição do juiz para, se for o caso, adote uma medida cautelar.
Ademais, não obstante as diversas nomenclaturas utilizadas para definir a natureza jurídica da prisão flagrante, após o advento da Lei 12.403/11 ficou patente que a prisão em flagrante, isoladamente, não autoriza que o acusado permaneça preso durante toda a persecução penal. Sendo assim, é imprescindível decisão fundamentada do juiz sobre sua conversão ou não em preventiva.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
LIMA, Renato Brasileiro de. Nova prisão cautelar: doutrina, jurisprudência e prática. Niterói: Impetus, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 11 ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários do código de processo penal e sua jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 6 ed. Salvador: Juspodivm, 2011.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, 3º volume. 30 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.