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A personalidade jurídica dos embriões excedentários e a dignidade da pessoa humana

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13/10/2012 às 08:00
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4. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Problemática dos Embriões Criopreservados

“No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade” (Immanuel Kant).

De uma maneira ou de outra, não se pode fazer uma análise jurídica da problemática dos embriões excedentes sem que perpasse pelo princípio da dignidade da pessoa humana, tantas vezes já mencionado ao longo deste texto. Trata-se de princípio erigido à condição de fundamento da República Federativa do Brasil pela Constituição de 1988.

No primeiro capítulo deste trabalho, considerações foram tecidas a respeito da bioética. Faz-se necessário mencionar que a definição desta ciência é complexa e controvertida, devido ao seu caráter interdisciplinar. Indispensável, porém, interligar a vida humana, a ética e o direito. “Há que se estudar o homem como ser biológico: desde o patrimônio genético, passando pelo embrião, até o cadáver, valorando tudo à luz da ética e do Direito” (CARLIN, 2007, sp).

Os “novos direitos” oriundos da revolução biotecnológica colocam na mesa de discussões temas clássicos, como os direitos de primeira dimensão[177].

Além disso, cumpre reconhecer que alguns dos clássicos direitos fundamentais da primeira dimensão (assim como alguns da segunda) estão, na verdade, sendo revitalizados e até mesmo ganhando em importância na atualidade, de modo especial em face das novas formas de agressão aos valores tradicionais e consensualmente incorporados ao patrimônio jurídico da humanidade, nomeadamente da liberdade, da igualdade, da vida e da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2005, p. 61).

Dessarte, a valoração dos axiomas biojurídicos se dá a partir dos princípios que norteiam o ordenamento jurídico pátrio, mormente o da dignidade da pessoa humana, ao qual se dedica o presente capítulo.

4.1. Evolução Histórica da Noção de Dignidade da Pessoa Humana

Antes de se analisar a aplicação da dignidade da pessoa humana ao biodireito de fronteira[178], faz-se necessário desenvolver algumas notas sobre o desenvolvimento histórico deste conceito que se incorporou ao sistema jurídico-constitucional brasileiro – e a muitos outros mundo afora.

Considerando a forte conotação valorativa da dignidade da pessoa humana, sua exata conceituação “apresenta-se eivada de dificuldades, o que muitas vezes dá margem a conceituações desviadas de seu real significado histórico-cultural” (MARTINS, 2003, p. 17). Daí a necessidade de, ainda que brevemente, acompanhar o desenvolvimento do pensamento ocidental no que tange à construção do atual significado de dignidade da pessoa humana.

A garantia dos direitos fundamentais relacionados à dignidade encontra fundamento na própria natureza humana. A concepção errônea da natureza humana é que mostra, através da história da própria humanidade, os equívocos que levam ao desrespeito da dignidade. É também o não-entendimento acerca da natureza humana que até o momento faz com que a sociedade veja como fato distante da sua realidade as violações que se passam em ambientes diversos do seu. Porque se a proteção efetiva ainda não foi alcançada, isto se deve ao fato de que o abuso do direito, por parte de governantes e governados com poderes irrestritos, também decorra da própria natureza humana, embora seja claramente um ponto negativo, que o progresso e o desenvolvimento do direito tentem a controlar (ZISMAN, 2005, p. 54-55).

As primeiras codificações de que se têm notícia, tais quais os Códigos de Hamurabi (Assíria e Babilônia) e o de Manu (Índia), apesar de não delinearem um conceito do que hoje se entende por DPH, apresentavam certas normas tendentes a proteger o indivíduo pela sua própria condição de ser humano. Também na China antiga, com toda sua tradição de conteúdo filosófico, havia preocupações deste gênero (MARTINS, 2003, p. 19-20).

Da antiguidade clássica, extrai-se a noção grega de pensamento racional e filosófico, em detrimento do pensamento mítico, que contribuiu para o desenvolvimento de todo o pensamento ocidental nos séculos seguintes (MARTINS, 2003, p. 21).

A doutrina estóica, por sua vez, pregava a unidade universal dos homens, “despertando no mundo antigo a consciência da dignidade humana e abrindo caminhos para o pensamento jusnaturalista medieval” (ZISMAN, 2005, p. 56).

A partir da ascensão do cristianismo, tem-se um momento de evolução do conceito de DPH. A idéia central da doutrina cristã é que todos os homens foram concebidos à imagem e semelhança de Deus. Neste sentido, surge a idéia de uma igualdade universalista, dando a crer que todos, indistintamente, são dignos de respeito e consideração[179].

Tomás de Aquino foi o primeiro a mencionar o termo ‘dignidade humana’ como algo relacionado à concepção da pessoa, e que “nada mais é do que uma qualidade inerente a todo ser humano e que o distingue das demais criaturas: a racionalidade”. Desta forma, para o mais importante representante da escolástica conclui que através da racionalidade, o ser humano exerce sua potencialidade de ser livre e autor de seu próprio destino, “constituindo um valor absoluto, um fim em si” (MARTINS, 2003, p. 22-24).

Giovanni Pico della Mirandola, no século XV, menciona uma visão antropocentrista segundo a qual o raciocínio permite que o homem tome consciência de sua liberdade. “Ó suma e admirável felicidade do homem! Ao qual é concedido obter aquilo que deseja, ser aquilo que quer.” (MIRANDOLA, 1998, p. 53)

A livre expressão da vontade do homem representa a opção pelo seu destino, a escolha de seu caminho. “O único a determinar o caminho do homem, de acordo com o pensamento de Pico, é ele próprio” (ZISMAN, 2005, p. 54).

No século XVI, Francisco de Vitória criticou os moldes em que se deu a expansão colonial espanhola. Referindo-se ao processo de “aniquilação, exploração e escravização dos índios”, e tendo por base os pensamentos estóico[180] e cristão, traz à tona o direito natural para afirmar que todos eram “em princípio livre e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direitos” (SARLET, 2005, p. 114).

Kant, cujo pensamento já foi abordado no item “A Retomada Antropológica”, no Capítulo 2, retoma os trabalhos de Tomás de Aquino para inferir conclusões sobre a dignidade humana:

Os seres cuja existência depende não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito) (KANT, 2000, p. 68).

Diferentemente de Aquino e Kant, Sartre não crê numa dignidade inata aos seres humanos. De acordo com este pensador, o homem primeiramente existe, para depois ter sua essência. Seria por esta razão que o homem não está sujeito a um determinismo. Sua dignidade, neste sentido, consiste no fato de poder construir sua existência. “Para o filósofo, o existencialismo é a única teoria capaz de conferir uma dignidade ao homem, pois não o reduz a um determinismo que faria dele um objeto, tal qual as coisas” (MARTINS, 2003, p. 31-32).

A questão da racionalidade como elemento diferenciador daquilo que é coisa de quem é pessoa merece destaque. Seria o embrião em estado pré-implantatório um ser racional? O fato de ser membro da espécie humana, por si só, o distingue dos seres irracionais?

Para Célia Zisman, à idéia de racionalidade liga-se a de dignidade. A pessoa seria dotada de dignidade em função da sua racionalidade. “O homem é sujeito de direitos, possui personalidade[181], esta definida como a capacidade de ser titular de direitos (e obrigações em relação aos demais indivíduos)” (2005, p. 52).

No período pós segunda guerra mundial, o pensamento de Hannah Arendt auxiliou no processo de constitucionalização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Seu trabalho consistiu na análise dos Estados totalitários (nazi-facistas especialmente), e a forma pela qual se institucionalizou o desrespeito à DPH neste período[182].

A análise do fenômeno totalitário permite então, visualizar que neste tipo de estado criam-se as condições para se considerar os seres humanos supérfluos, em franco desrespeito ao valor da pessoa humana. Na verdade, o totalitarismo retira do homem a sua condição humana, tratando-o como um ser descartável que pode ser trocado, substituído ou igualado a uma coisa. A rigor, o totalitarismo, enquanto proposta de organização da sociedade, significa uma ruptura na evolução histórica da tradição ocidental, que escapa ao bom senso e foge de qualquer critério razoável de Justiça (MARTINS, 2003, p. 32-33, grifou-se).

A história da humanidade não permite negar que “o homem vive em risco permanente de se desumanizar” (GASET apud SILVA, 2002, p. 191).

Na tentativa de impedir que isto aconteça, a dignidade da pessoa humana assinala que “todo ser humano é um microcosmo, um universo em miniatura, com destino individualizado e distinto do destino da sociedade [...]” (PAUPÉRIO citado por SILVA, 2002, p. 191).

Em que pese a Constituição Mexicana de 1917 já mencionar a dignidade humana como valor orientador do sistema educacional, foi na segunda metade do século XX que se observou a ascensão da DPH como princípio fundamental em ordenamentos jurídicos de todo o mundo[183].

Da mesma forma que na Europa, também no Brasil o processo de constitucionalização da DPH ocorreu após um período de regime totalitário. Com a queda do regime militar, o legislador constituinte originário, de 1988, erigiu a Dignidade da pessoa Humana a fundamento da República Federativa do Brasil.

4.2. Conceito e abrangência do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Precipuamente, faz-se necessário investigar a conceituação de dignidade da pessoa humana sob diversos pontos de vista.

“Qualquer definição é questionável e já implica uma atitude filosófica. O único modo de se descobrir o que é filosofia é fazer filosofia” (RUSSEL, 2003, p. 18).

Para Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1988, p. 222), dignidade é sinônimo de respeitabilidade, honra, decência, amor-próprio, brio.

Em um mundo contemporâneo de poucos consensos teóricos, a dignidade da pessoa humana sobrepõe-se como “o valor do homem como um fim em si mesmo”, de forma a constituir um verdadeiro “axioma da civilização ocidental” (BARCELLOS, 2002, p. 103-104).

Ao relacionar dignidade com respeitabilidade, Célia Zisman chega a uma interessante conclusão sobre “respeitabilidade mínima”:

A dignidade é qualidade moral que, possuída por alguém, serve de base ao próprio respeito em que é tida. Dicionários jurídicos trazem também o verbete respeitabilidade, originário do latim respectus, que significa consideração, merecimento. A respeitabilidade relaciona-se com o conjunto de qualidade atribuídas à pessoa e que a fazem merecedora de consideração, de atenção por seus semelhantes. Se é certo que a atenção diferenciada, especial, decorre de qualidades também especiais, como o procedimento correto, um posto respeitável, feitos profissionais ou altruísticos, entre outras missões que envolvem cumprimento de deveres sociais e morais, a respeitabilidade mínima, que não depende nem mesmo do caráter da pessoa, consiste na própria consideração de sua existência, pelos seus semelhantes, coincidindo então com o conceito de dignidade, visto que se efetiva com a preservação dos direitos fundamentais (ZISMAN, 2005, p. 22-23, grifos em itálico presentes no original, grifou-se em negrito).

Esta respeitabilidade mínima, caracterizada pelo reconhecimento da existência e sujeição aos direitos e garantias fundamentais, é que se quer atribuir ao embrião em estado pré-implantatório.

Não se pode deixar de mencionar que a Nova Lei de Biossegurança permite a utilização de embriões criogenados, satisfeitas algumas condições, para extração de células-tronco embrionárias. Inobstante a autorização legal, é preciso considerar que a dignidade da pessoa humana é um direito fundamental de todos.

Ainda que a lacuna no ordenamento jurídico não seja completa, posto que há alguma regulamentação sobre o tema, “o princípio da dignidade há que ser observado a cada aplicação da lei, a cada julgamento, bem como a cada medida a ser tomada pelo Executivo ou pelo Legislativo, e em toda ação de qualquer indivíduo da sociedade”. É a aplicação do princípio da DPH que permite ao homem reconhecido como ser merecedor de tutela (ZISMAN, 2005, p. 33).

Deborah de Oliveira[184] e Edson Borges Jr.[185], em interessante trabalho intitulado “Reprodução Assistida: até onde podemos chegar?” chamam a atenção para o fato de que, de uma interpretação sistemática da Constituição de 1988, “é possível extrair que o ponto de equilíbrio na utilização das técnicas de reprodução assistida é a dignidade da pessoa humana”. Em que pese o mencionado trabalho ser anterior à Nova Lei de Biossegurança[186], os autores, cientes da impossibilidade da legislação específica vir a prever todos os aspectos que envolvem a matéria, afirmam que os princípios fundamentais do direito, bem como os recursos da analogia, costumes e direito comparado continuarão a ser utilizados. Neste ínterim, a dignidade da pessoa humana continua a balizar o tema, porquanto é “o princípio básico de um estado democrático” (2000, p. 18).

Não diverge o posicionamento de Geilza Diniz (2003, p. 135): “A principal preocupação relativa à pesquisa envolvendo seres humanos tange à preservação da dignidade da pessoa humana que, como visto, é fundamento do nosso Estado de Direito”.

A idéia de DPH está entrelaçada à de direitos humanos, podendo-se afirmar que aquela se encontra em patamar superior a estes. Tanto o é que o optou-se por erigi-la a fundamento da República Federativa do Brasil.

Ao incluí-la no rol do art. 1º, o legislador constituinte originário tomou uma decisão essencial: “reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, 2005, p. 112).

José Afonso da Silva (2000, p. 109) aponta que a “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.

Corroborando esta tese, Zisman (2005, p. 17) afirma que não há dignidade sem vida ou sem igualdade.

Neste sentido, dignidade da pessoa humana e direito à igualdade e à vida fundem-se como princípios indissociáveis. Pode-se compreender, assim, que a argüição de inconstitucionalidade que paira sobre o art. 5º da Lei de Biossegurança[187] não versa unicamente sobre as garantia do art. 5º, caput da CR, mas sim, em última instância, também ao princípio da dignidade da pessoa humana.

A dignidade é, portanto, o resultado da aplicação de diversos outros direitos fundamentais[188].

Ocorre que nem todos os ordenamentos jurídicos internos dos Estados (ordenamento jurídico estatal singular, na expressão de Kelsen), prevêem a tutela e a garantia dos direitos fundamentais que ensejam a dignidade. Não bastasse, há ainda a questão dos Estados que trazem o rol de direitos fundamentais em suas Constituições, mas não prática não atuam no sentido de garantir a dignidade ou ainda agem com o objetivo de vilipendiá-la (ZISMAN, 2005, p. 17).

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No mesmo sentido, Flademir Martins traz à tona a idéia de uma tábua valorativa ou pauta axiológica, na qual a DPH consta como parâmetro objetivo de interpretação de todo o ordenamento constitucional. Não apenas a positivação do princípio como fundamento da República leva a esta conclusão, mas principalmente “pelo reconhecimento de um amplo catálogo de direitos fundamentais, os quais constituem sua concreção histórica” (2003, p. 64).

Apesar do princípio da dignidade da pessoa humana encontrar alguns obstáculos conceituais inerentes à sua condição de princípio abstrato, é relevante destacar que “é bem possível visualizar inúmeras situações nas quais a dignidade da pessoa humana restou absolutamente violada” (TAVARES, 2003, p. 405).

Pode não ser uma tarefa simples fixar um conceito de dignidade da pessoa humana. Porém, fica evidente quando, na prática, este princípio é desobservado.

Em se considerando que a vida humana digna de tutela inicia com a fertilização, passa a ser inconstitucional qualquer ato, ou norma, que atente contra os direitos fundamentais do embrião, ainda que em estado pré-implantatório, por absoluta inconsonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Esta interpretação é possível em função do princípio da dignidade da pessoa humana constituir uma cláusula aberta, permitindo a sua adaptação aos novos direitos. Segundo Martins (2003, p. 67), “a idéia, além de extremamente relevante, se apresenta compatível com a teoria das gerações de direitos desenvolvida por Norberto Bobbio”.

“O pecado contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo[189] – como um ser inferior, sob pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial[190]” (COMPARATO apud ZISMAN, 2005, p. 26).

Não se pode afastar o princípio da dignidade da pessoa humana quando ele se faz mais necessário, ou seja, para atingir aqueles que são preteridos da tutela jurídico-constitucional[191] (SILVA, 2000, p. 109).

Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, “juristas reunidos no CJF[192] entendem que embriões congelados devem se protegidos pelo Direito”. (BOLETIM, 2005, p. 11, grifou-se).

A despeito da teoria a respeito do início da vida humana adotada[193], não há qualquer espécie de impecílio para que o Direito atribua aos embriões em estado pré-implantatório o mesmo tratamento jurídico concedido aos seres humanos em estágios mais avançados de desenvolvimento[194].

4.3. A Tridimensionalidade do Direito e a Dignidade da Pessoa Humana como Valor

O investimento em biotecnologia faz com que a ciência ligada à vida evolua vertiginosamente, enquanto que a moral da sociedade (e, por conseguinte, o Direito enquanto manifestação social) demora a absorver conceitos novos.

Norberto Bobbio (2002) trata de diferenciar o progresso científico do avanço moral, chamando a atenção para o fato de que nem sempre o último acompanha o ritmo do primeiro, o que é uma lástima. Veja-se:

Limito-me a dizer que, enquanto parece indubitável que o progresso técnico e científico é efetivo, tendo mostrado até agora as duas características da continuidade e da irreversibilidade, bem mais difícil – se não mesmo arriscado – é enfrentar o problema da efetividade do progresso moral [...] (BOBBIO, 2002, p. 53).

O jurista italiano aponta pelo menos duas razões segundos as quais o progresso moral das sociedades não acompanha o ritmo frenético em que a revolução científica avança. Primeiramente, o conceito de moral é, em si, problemático. Em segundo lugar, ainda que houvesse acordo sobre o que se entende por moral, não se encontrou, ainda, “indicadores para medir o progresso moral de uma nação, ou mesmo de toda a humanidade, tão claros quanto os indicadores que servem para medir o progresso científico e técnico” (BOBBIO, 2002, p. 53).

O que não se pode negar é que a biotecnologia trouxe à tona novos fatos até então inexistentes. Sobre eles, a sociedade emite um juízo de valor que, conforme o caso, implica a elaboração de uma norma para regular a matéria.

Miguel Reale, na década de 1930, ousou discordar da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, segundo a qual o direito seria pura norma, para propor uma idéia diferente:

Direito não é norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato, como rezam os Marxistas e economistas do Direito, porque o Direito não é economia. Direito não é a produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato, é valor (REALE, 1994, p. 117-118, grifou-se).

Pensando que o direito, na proposta de Miguel Reale, é uma tridimensionalidade onde há uma “integração normativa de fatos segundo valores” (REALE, 1994, p. 119), pode-se aplicar tal idéia à problemática dos excedentários para visualizar, na prática, cada uma dessas dimensões.

O fato que aqui interessa é a situação dos embriões excedentários. Desde a década de 1980, centenas de milhares de embriões supranumerários têm sido criogenados nas clínicas de reprodução assistida. Este é uma realidade sobre a qual não se pode fechar os olhos. Os excedentários existem, e isto é fato.

Para que se saiba o que fazer com os embriões supranumerários, de forma que a sociedade saiba o que é proscrito e o que é permitido, o direito deve se manifestar, de forma a regulamentar a matéria. Este é o aspecto normativo da teoria tridimensional.

Contudo, tal normatização deve ser influenciada por um aspecto valorativo, qual seja, aquilo que se quer proteger com a norma na situação concreta que está posta.

Na ciência do direito, segundo Cella (2006, p. 54), “tem-se uma compreensão normativa de fatos em função de valores”. É justamente neste ponto, quando o valor influencia a norma que surge o problema de disparidade temporal entre a evolução moral e a evolução tecnológica da sociedade apontada por Bobbio (2002, p. 53).

Ao biodireito cabe a tarefa de normatizar os valores bioéticos de forma a regulamentar os fatos, “pois o direito é fato, valor e norma, e essa tridimensionalidade precisa ser aplicada de forma eficaz, de acordo com o momento social vivido, tendo sempre como base o princípio da dignidade da pessoa humana” (LOUREIRO, 2006, p. 12).

Conforme o grau de desenvolvimento moral de cada sociedade, diferente será o valor preponderante a influenciar a normatização. O que se propõe, é que a dignidade da pessoa humana seja o valor a orientar a interpretação da matéria que trata da disponibilidade dos embriões excedentários.

4.4. Proporcionalidade e Colisão de Direitos Fundamentais

4.4.1.Liberdade Científica versus Dignidade da Pessoa Humana

A Constituição da República prevê uma série de direitos fundamentais que, vez por outra, entram em conflito quando inseridos em uma situação concreta.

Ao se analisar a questão dos embriões excedentários, verifica-se uma evidente colisão de direitos fundamentais: “por um lado, ter-se-ia o direito à liberdade científica, a qual entraria em tensão com o direito à dignidade da pessoa humana, que serviria, por sua vez, como um parâmetro limitador àquele” (DINIZ, G., 2003, p. 153).

Neste contexto, surgem argumentos tendentes a permitir a utilização dos embriões supranumerários para pesquisas “em prol da sociedade, buscando a cura de doenças ou a clonagem de órgãos para salvar vidas humanas” (FERREIRA, 2002, sp).

No extremo oposto, há quem afirme ser absurdo querer sobrepor a possibilidade de salvar vidas à preservação de vidas já existentes[195].

A colisão entre a liberdade científica e a dignidade da pessoa humana é, nas palavras de Luiz Fernando Coelho, uma questão jurídica de base. O doutrinador traz à tona o seguinte questionamento: De que forma é possível conciliar o respeito à dignidade da pessoa humana com a pesquisa científica que envolve embriões humanos? “Este é problema basilar da bioética e também do biodireito. [...] Assim, a grande pergunta que se coloca é se o embrião humano, criado em laboratório ou não, é pessoa humana” (apud DINIZ, G., 2003, p. 152).

De uma forma ou de outra, a discussão perpassa pelo reconhecimento do status de pessoa do embrião, esteja ele implantado ou não.

Há quem pugne por uma ciência pura, livre de qualquer limitação moral. Contudo, isto “é algo deveras ilusório, gerado na retórica de um capitalismo de mercado que faz da tecnologia instrumento de poder e dominação” (BONAVIDES in SILVA, 2002, p. 11).

De uma observação perfunctória do art. 5º da Constituição de 1988, nota-se a inclusão, no rol dos direitos fundamentais, da livre expressão da atividade intelectual e científica[196].

“Entretanto, o limite à liberdade de pesquisa pelos operadores da Engenharia Genética deve ser buscado nos outros valores prestigiados pela nossa Carta Magna”, como a vida, a integridade física e a dignidade da pessoa humana (OLIVEIRA; BORGES, 2000, p. 92).

Para solucionar problema de tal magnitude, o qual envolve dois princípios jurídicos conflitantes, deve-se fazer uso “do juízo de ponderação ou da técnica de ponderação de bens ou valores” (DINIZ, G., 2003, p. 157).

Não se pode olvidar que é nobre o argumento de possivelmente encontrar a cura para os males que afligem a humanidade. Contudo, Szaniawsky (apud SÁ; TEIXEIRA, 2005, p. 91), afirma que embora a embrioterapia demonstre-se promissora no sentido de fornecer a cura de diversas doenças graves, não se trata da única solução viável para procurar-se restaurar a saúde plena do ser humano[197].

A pesquisa voltada para cura é sempre bem-vinda. Porém, só será eticamente recomendada se o sujeito desta pesquisa não for “um ser vivo, humano, para determinadas correntes, a quem se deve, desde sua geração, a extensão dos princípios de respeito à dignidade humana com todas as suas implicações” (MINAHIM, 2005, p. 80-81).

Partindo da premissa de que a manipulação genética de embriões leva à sua destruição, Fábio Alves Ferreira[198] (2002, sp), critica a destruição em detrimento do direito à vida e compara tal atividade ao holocausto:

Entre a destruição e a proteção aos embriões deve esta última prevalecer, visto que a dignidade da pessoa humana e o direito à vida são direitos unificadores de todos os direitos fundamentais e razão de ser da tutela jurídica do Estado. Permitir, assim, o extermínio generalizado de esperanças de vida é ato criminoso praticado contra toda humanidade, o que não o diferencia muito do aborto, a não ser pela quantidade e modo cruel que é praticado. Considerando, no entanto, todas as sugestões oferecidas, salvo a de implantações desses embriões a posteriori, todas as demais direcionam à destruição de milhares de vidas, antes mesmo de nascerem. E eliminar vários entes da espécie humana, em prol do desejo do casal em conceber um filho, como se essa justificativa fosse suficiente para matar seres vivos, que não terão a chance de viver, guardadas as devidas proporções, pouco se diferencia do holocausto realizado durante a Segunda Guerra Mundial (FERREIRA, 2002, sp).

O direito não deve almejar ao fim do desenvolvimento da ciência. Todavia, tal desenvolvimento deve caminhar em paralelo ao respeito à dignidade da pessoa humana (LOUREIRO, 2006, p. 15).

A DPH deve ser entendida não só como um ideal programático. Ela precisa balizar o agir e o não-agir do Estado e da sociedade. Se a sua garantia pressupõe um não-fazer, tal qual os direitos fundamentais de primeira dimensão, o Estado deve se abster de agir[199].

O que se quer dizer é que a partir do momento em que a liberdade científica passar a implicar óbice à dignidade da pessoa humana, deve-se limitar a atuação da ciência de forma a permitir que a DPH prevaleça.

4.4.2. Liberdade dos Beneficiários versus Indisponibilidade da Vida e da Integridade Física

Precipuamente insta salientar que o termo “beneficiários” refere-se a quem procura a RHA como forma de efetivar seu direito ao planejamento familiar.

A respeito do significado do termo ‘vida’ no texto constitucional, aduz José Afonso da Silva (2000, p. 200):

[...] Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção[200] [...], transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que mude de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo o que interfere em prejuízo deste fluir incessante contraria a vida.

Haveria, desta forma, um direito à existência, direito de permanecer vivo consubstanciado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, desde o momento da concepção.

Trata-se do direito de não ter o processo vital interrompido de maneira desnecessária. “Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado de morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital” (SILVA, 2000, p. 201).

A este respeito, Alexandre de Moraes (2002, p.64) defende que a vida começa com a fertilização e surgimento do zigoto, sendo que a ‘vida viável’ inicia-se com a nidação. De qualquer forma, o embrião ou feto representa um ser individualizado, dotado de “uma carga genética própria, [...] sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A constituição [...] protege a vida de forma geral, inclusive a uterina”[201].

Assim, o corpo de toda pessoa, inclusive o dos embriões, é inviolável. A dignidade da pessoa humana se manifesta na intangibilidade do corpo. Não é permitido, sob pena de sucumbência perante as sanções penais, agredir o corpo de qualquer membro da espécie humana (LEITE, 1995, p. 133).

Cada pessoa é titular do direito à própria vida (e não sobre a própria vida). A este direito corresponde o dever erga omnes – do Estado e de todos os outros seres humanos – de abstenção de atos que sejam lesivos à vida (MINAHIM, 2005, p. 70).

"Sem vida não há Homem. Sem Homem não há Humanidade. Desrespeitar a vida é desrespeitar o Homem, é desrespeitar toda a humanidade". (FERREIRA, Fábio A., 2002, sp).

O presente subtítulo inspira-se no binômio liberdade versus igualdade. De um lado, tem-se a liberdade das pessoas que procuraram as técnicas de RHA de fazerem o que bem entenderem com o “produto” do seu investimento. De outro, o direito dos embriões de serem tratados com igualdade em relação a qualquer outro ser humano.

“Enquanto pelo princípio da liberdade se poderia concluir por ampla e restrita disponibilidade, a segunda imposição aparece como direito irrenunciável, ou seja, o dever de conservar a vida e a integridade física” (SÁ apud DINIZ, G., 2003, p. 153).

O direito ao tratamento igualitário, no caso em comento, parece ser o preponderante. É sabido que o direito à vida é pressuposto para todos os demais. Em outras palavras, sem certos direitos, a personalidade não poderia realizar-se por absoluto comprometimento dos valores que a sustentam. “Pode-se até dizer que, sem esse direito, seria difícil a aquisição de outros direitos chamados subjetivos e, assim, a pessoa simplesmente não existiria” (FRANÇA, 2004, p. 244).

Negar o direito à existência corresponde a privar o embrião de sua vida. A partir de um ponto de vista igualitário, segundo o qual todos são iguais perante a lei, este ato seria tão grave quanto retirar a vida de uma criança ou de um adulto, porquanto todos são membros da espécie humana.

“O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, [...] não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças” (SARLET, 2005, p. 120).

Desta forma, não se pode negar que, no caso em comento, o direito dos beneficiários das técnicas de reprodução assistida decidirem o futuro do embrião a que deram origem é suplantado pelo direito deste mesmo embrião de ter reconhecida sua dignidade, e, por extensão seu direito à vida.

4.5. Embrião Excedentário: sujeito ou objeto de direitos?

Em “O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia”, Jostein Gaarder (1995, p. 16-18) introduz sua protagonista no mundo da filosofia endereçando-lhe uma carta misteriosa com a seguinte pergunta: ‘quem é você?’. Sofia nunca havia pensado sobre isso, e, ao refletir sobre sua própria existência, concluiu que um dia também desapareceria. “Não se pode experimentar a sensação de existir sem se experimentar a certeza que se tem de morrer, pesou. E é igualmente impossível pensar que se tem de morrer sem pensar ao mesmo tempo em como a vida é fantástica”.

Ao transferir-se o raciocínio de Sofia para a situação dos embriões excedentários, observa-se que são os seres humanos pensantes quem devem refletir sobre a existência ou desaparecimento dos conceptos. Que direito temos, enquanto humanidade civilizada, de negar aos supranumerários seu direito de “ser personagem de uma aventura tão maravilhosa como a vida?” (GAARDER, 1995, p. 16).

Fato instigante é saber se o embrião congelado goza dos mesmos benefícios e da mesma proteção assegurados pelo Código Civil brasileiro ao nascituro. Ou seja, tem o embrião fecundado in vitro a mesma tutela legal do embrião fecundo in vivo? A verdade é que o nascituro, mesmo sem ser pessoa, é detentor de direitos, resguardando-lhe a lei faculdades que salvaguardam seus interesses mais inalienáveis. Espera-se que o embrião congelado tenha as mesmas expectativas. (FRANÇA, 2004, p. 247).

De acordo com Paula Ferreira, o questionamento primordial é se há natureza humana no zigoto assim que formado. A resposta a esta pergunta é de fundamental importância, “haja vista que a presença de caráter humano desde a fecundação leva a aplicação dos direitos fundamentais de proteção da pessoa humana aos embriões excedentes” (2006, p.6).

Peter Singer[202] chama a atenção para o fato de que toda a discussão sobre os embriões excedentários perpassa pela seguinte constatação: o que interessa não é quando começa a vida propriamente dita, mas sim o momento em que o embrião “alcança o mesmo status moral de uma pessoa”[203] (ESCOSTEGUY; BRITO, 2007, p. 57).

Para Willian Artur Pussi (2005, p. 314), a questão jurídica essencial é saber se “o concebido in vitro e o concebido no útero são considerados pessoa para efeito de reconhecimento dos direitos da personalidade e se podemos dispensar o mesmo tratamento jurídico para ambos ou devemos tratá-los de forma diferente”.

Na seqüência, colacionar-se-ão argumentos atinentes aos posicionamentos dicotômicos que permeiam o presente trabalho. Inicialmente, discorrer-se-á sobre o ponto de vista daqueles que são a favor da utilização de embriões excedentários como matéria-prima de células-tronco. A seguir, ver-se-á o que tem a dizer quem considera o concepto como uma pessoa humana.

4.5.1. A “Reificação” do Concepto

Existem inúmeras subdivisões doutrinárias do processo de desenvolvimento do ser embrionário. Ao optar por atribuir personalidade jurídica a partir do nascimento, por exemplo, estar-se-á afirmando que durante todas as etapas anteriores o que existia não era uma pessoa, mas sim um objeto.

Em artigo veiculado na Revista Jurídica Consulex por Vieira e Oliveira (2007, p. 12), apresentou-se um quadro com diversos momentos em que se poderia atribuir o início da vida humana passível de tutela, em função de diferentes critérios. Esta tabela encontra-se transcrita no Anexo III.

A adoção de um ou outro dos critérios apresentados na tabela reflete na tutela jurídica a ser atribuída ao embrião.

Dizer que a vida digna de proteção leva em conta o critério do suporte materno – ou qualquer outro – significa atribuir o status de pessoa de um certo momento em diante. Do momento escolhido para trás, o que se teria seria um objeto passível de tratamento pelo direito das coisas, não um ser dotado de personalidade.

Alejandro Bolzan (1998, p. 28), exemplificativamente, chama de embrião apenas o ser em desenvolvimento a partir do 14º dia de vida. Antes disso, ter-se-á o pré-embrião, ente despersonalizado, ou seja, um objeto.

Já na década de 1980, a comissão Warnock, procurando justificar a utilização de embriões em pesquisas, introduziu no vocabulário bioético o termo pré-embrião. “Assim, como não é integrante da espécie humana porque não é ser humano atual, tudo o que se deve normatizar a seu respeito restringe-se a uma limitação do direito de propriedade sobre ele” (MINAHIM, 2005, p. 82).

Neste sentido, Paula Ferreira (2006, p. 6), afirma que “embora se tenha sinal de vida humana com a simples fecundação, o embrião decorrente da fertilização in vitro não pode ser considerado nascituro”.

Enquanto coisa, o pré-embrião poderia ser descartado, comercializado, entre outras incontáveis destinações. Contudo, nenhuma destas possibilidades é tão discutida quanto a utilização de embriões excedentários como fornecedores de células-tronco embrionárias para pesquisas científicas.

Em 24 de março de 2005 o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou a Lei nº 11.105, conhecida como Nova Lei de Biossegurança. O art. 5º da referida lei autoriza a utilização de embriões excedentários, produzidos por fertilização in vitro, inviáveis ou congelados – a partir do momento em que completarem três anos de criopreservação – para extração de células-tronco embrionárias com fins de pesquisa e terapêuticos[204].

Precipuamente, faz-se preciso salientar que a Lei de Biossegurança em vigor permite a experimentação com embriões humanos, para extração de células-tronco[205], quando preenchidos os requisitos do art. 5º já abordados. Isto representa a presunção de que aquele concepto é algo a menos do que um feto implantado no útero materno, porquanto este último é protegido pelo direito penal através da criminalização do aborto.

Em 1982, R. G. Edwards, um dos médicos responsáveis pelo nascimento de Louise Brown (1º bebê oriundo de técnicas de reprodução in vitro), afirmou que a necessidade de saber vale mais do que o respeito que se deve dar ao embrião em seus primeiros estágios de desenvolvimento[206] (BOLZAN, 1998, p. 8).

O tempo passa, a tecnologia vai sendo assimilada pela sociedade, mas as discussões filosóficas continuam as mesmas apesar de, vez por outra, apresentarem uma roupagem diferente.

O mesmo argumento que justifica a utilização do produto da RHA com finalidades diversas da reprodutiva permite a indicação, distribuição e utilização da chamada pílula do dia seguinte.

Tereza Vieira afirma que durante o período em que a pílula do dia seguinte produz efeito (antes da nidação) a vida humana não é merecedora de tutela jurídica. “Logo, a ingestão do medicamento não se configura aborto Ademais, trata-se de um método contraceptivo dependente de prescrição médica” (2007, p. 13).

Atualmente, este contraceptivo de emergência é distribuído pela rede de saúde pública de vários países[207], inclusive do Brasil. A Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal manifestaram-se pela legalidade do medicamento, considerando que o direito reprodutivo tem fundamento constitucional, sento apto à mulher escolher se quer ou não engravidar (VIEIRA; OLIVEIRA, 2007, p. 12).

Adotando-se a nidação como critério indicativo do início da vida, não haveria razão para proteger aquilo que a precede como se pessoa humana fosse. A função da pílula do dia seguinte é evitar que o embrião recém fecundando consiga se fixar na parede uterina. Ou seja, o concepto fecundado intra corporis tem seu desenvolvimento interrompido pela expulsão do corpo da mulher em função da impossibilidade de fixação no endométrio.

4.5.2. O Concepto como Pessoa Humana

Reconhecer a natureza de pessoa humana do embrião em seus estágios iniciais de desenvolvimento equivale a atribuir-lhe dignidade e todos os demais direitos que lhe são inerentes desde a concepção.

De acordo com a doutrina jurídica, tudo que faz parte do “mundo do ser” ou é uma pessoa – sujeito de direitos – ou é um objeto – bem capaz de satisfazer uma necessidade –. Em se considerando a primeira hipótese, o que fazer com estes embriões excedentes considerados pessoas? (PUSSI, 2005, p. 313-314).

Sendo difícil definir que destino dar aos embriões supranumerários, pode-se iniciar pensando em o que não fazer com eles. Considerar o concepto como membro da espécie humana significa protegê-lo desde o momento da fecundação, não admitindo práticas tendentes a acabar com sua existência.

A pílula do dia seguinte, por impedir a nidação e expelir o embrião do corpo da genitora seria, portanto, uma técnica incompatível com a proteção do concepto enquanto pessoa humana.

Observe-se a impropriedade do CFM[208] ao autorizar “anticoncepção” de emergência como método alternativo para controle de natalidade. É que a pílula em questão não poderia sequer ser chamada de contraceptivo, pois sua função precípua não é evitar a concepção (que já ocorreu), mas sim retirar o concepto do ventre materno.

Renato Antônio Vieira (2007, p. 13) afirma que “a vida tem início com a fecundação, uma fez que o embrião traz em si a informação genética necessária a formação do indivíduo adulto [...]”. Conclui seu raciocínio reconhecendo o caráter abortivo da pílula do dia seguinte, recomendando controle por parte das autoridades da saúde.

Maria Celeste dos Santos defende que o embrião criopreservado “corporiza vida humana e que, portanto, merece proteção ilimitada” (apud FERNANDES, 2000, p. 93).

Se distoar, Loureiro (2006, p. 12) ressalta que “o embrião não pode e não deve ser considerado como coisa passível de ser comercializada e usada como meio para atingir determinados fins”. Isso significa que o direito não tolera a coisificação do embrião. Dessarte, faz-se necessária a ação do legislador no sentido de criar normas que exijam, coercitivamente a observância do princípio da dignidade da pessoa humana.

A “reificação” do embrião humano é, portanto, prática condenável, porquanto incompatível com sua essência ontológica e a ordem jurídico-consticional brasileira.

O próprio fato de pertencer ao gênero humano, por sua própria natureza, mesmo antes da consagração dos direitos inerentes à dignidade em qualquer postulado jurídico-positivo, confere ao indivíduo o direito ao reconhecimento e preservação da vida digna. A pessoa tem dignidade por ser pessoa, de modo que o princípio da dignidade é o primeiro de todos na escala axiológica – vale mais que qualquer outro direito. O homem possui em si mesmo um valor moral, intransferível e inalienável, que lhe foi atribuído pelo puro fato de ser homem, independentemente de suas qualidades individuais (pode se tratar até de um réu, de um fugitivo[209]) (ZISMAN, 2005, p. 34).

Transformar o embrião humano em um objeto representa retirar do homem aquilo que lhe é mais essencial – sua natureza humana. Caso se permita tal desconsideração nas etapas iniciais de desenvolvimento do ser humano, abrir-se-á o precedente para que a desumanização, sorrateiramente, generalize-se (AMARAL, 2006, p. 145).

Não se pode negar que o embrião, ainda que em estado pré-implantatório, pertence ao gênero humano. Tem, assim, garantida a sua dignidade pelo simples fato de ser humano.

A teoria dos direitos humanos considera que o homem, diferentemente dos animais e das coisas, não se sujeita ao domínio de outrem, nem tolera “que sua dignidade dependa de reconhecimento por uma ordem jurídica positiva” (SILVA, 2002, p. 194).

Por óbvio este reconhecimento de dignidade implica equiparar o embrião a um ser humano em qualquer outro estágio de desenvolvimento (um recém-nascido, uma criança, ou um adulto), atribuindo-lhe o status de sujeito de direitos[210].

É neste sentido que as discriminações são proscritas. Não se pode criar “categorias de pessoas em desenvolvimento, dividindo-as em um embrião inserido no útero da mulher e em um embrião que está se desenvolvendo in vitro, considerando o primeiro embrião uma pessoa e o segundo, não!” (SZANIAWSKY apud SÁ: TEIXEIRA, 2005, p. 89-90).

De acordo com o Dr. Jérôme Lejeune[211] (citado por KRAUSE, 2007, sp), não se pode atribuir outro momento para o início da vida senão a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. O ser oriundo deste processo, independente de qualquer fator (anencefalia, indiferenciação celular, crioconservação), é merecedor de toda a proteção legal. “O que define um ser humano é o fato de ser membro da nossa espécie. Assim, quer seja extremamente jovem (um embrião), quer seja mais idoso, ele não muda de uma espécie para outra. Ele é da nossa estirpe. Isto é uma definição” (LEJEUNE apud KRAUSE, 2007, sp).

Ao equiparar o embrião excedente ao nascituro, Genival de França fundamenta seu posicionamento afirmando que todos os já concebidos têm uma certa titularidade de direitos, a que ele chama personalidade especial ou provisória. “Se lhe é reconhecido algum direito, razoável falar-se em sujeito de direito dispensando-lhe tutela jurídica” (FRANÇA, 2004, p. 247-248)[212].

Shirley Lima parte da premissa de que se o embrião in vivo é pessoa, e se o embrião in vitro é o “mesmo embrião” em uma situação diferente, então, “por uma adequação lógica, o embrião in vitro seria pessoa”. A autora reconhece que a particularidade da criopreservação e da ausência de gestação tornam incerto o nascimento. Ainda assim, entende que o embrião extra corporis deve ter assegurados os direitos à vida digna e de ser adotado (ao invés de condenado à destruição) (2005, sp).

Não há que se falar, por exemplo, em direito a alimentos, pois o seu desenvolvimento foi suspenso e sua conservação se dá pelo congelamento, mas, naquilo que for pertinente a sua comparação à condição em que se encontra o embrião in vivo, ele deve ter igual tratamento. Não há fundamento em equipará-lo à prole eventual, pois já houve concepção; e, nem muito menos, às coisas, porquanto é detentor de vida humana como qualquer outro embrião in vivo (LIMA, 2005, sp)

De certa maneira, o princípio da dignidade da pessoa humana representa um verdadeiro escudo à busca incessante de lucro relacionado à “cada vez mais ameaçadora – e cada vez mais efetiva – tentativa de instrumentalização” do concepto (AMARAL, 2006, p. 144).

Reinaldo Pereira e Silva (2002, p. 192) leciona que o respeito devido à dignidade da pessoa humana ampara-se em dois pressupostos, a saber: “1) todas as pessoas humanas devem ser igualmente respeitadas (respeito destinado a toda a espécie humana)” e, finalmente, “2) o respeito deve ser assegurado independente do grau de desenvolvimento individual das potencialidades humanas”.

Importa, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana, e em conformidade com os progressos da medicina fetal e pré-natal (progressi della medicina fetale e prenatale), ‘poder dizer’, claramente, que o concepto é protagonista da vida jurídica (protagonista della vita giuridica) e titular dos direitos de nascer, de nascer são e de ser curado, quando for o caso (diritti di nascere, di nascere sano e di essere curato) (MANTOVANI apud SILVA, 2002, p. 192, sem grifos no original).

É evidente que, se o grau de desenvolvimento das potencialidades é indiferente, não se pode negar ao embrião extra corporis o reconhecimento de sua dignidade, porquanto sua natureza de membro da espécie homo sapiens sapiens preenche os requisitos necessários a tal tutela.

Afinal, é o embrião humano pessoa humana dotada de dignidade?

Na tentativa de se resolver a questão aventada, pode-se fazer uso de um raciocínio desenvolvido por Kant no que tange ao fato de preço e dignidade não se coadunarem.

Para o pensador, tudo tem ou um preço ou uma dignidade no reino dos fins. “Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade” (KANT, 2000, p. 77).

A legislação e a doutrina brasileira, bem como a totalidade dos projetos de lei em tramitação no Congresso[213], são unânimes em condenar a comercialização de embriões humanos. Trata-se de bens que estão fora do comércio aos quais não se pode atribuir um preço. Neste sentido, em não tendo um preço, têm eles dignidade.

Ora, conforme se verificou no Capítulo 3, todas as normas pertinentes, desde as jurídicas até as éticas, repudiam a comercialização de embriões humanos, permitindo, quando muito, a doação sem caráter lucrativo. Poder-se-ia afirmar, por este raciocínio, que os embriões excedentários são, sim, sujeitos de direito. Desde a concepção, os embriões humanos são pessoas dotadas de dignidade.

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Sobre a autora
Gabriela Lucena Andreazza

Advogada, professora de Direito Notarial e Registral.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDREAZZA, Gabriela Lucena. A personalidade jurídica dos embriões excedentários e a dignidade da pessoa humana . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3391, 13 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22778. Acesso em: 25 abr. 2024.

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