Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os principais aspectos processuais envolvendo a chamada ação de querela nullitatis (ação de nulidade de sentença), e sua recepção e aplicação pela jurisprudência brasileira. A partir dessa análise, pretende-se buscar subsídios para compor uma estrutura teórica capaz de lidar com o problema da chamada “coisa julgada inconstitucional”. Para tanto, serão utilizados os postulados da teoria dos princípios jurídicos – sobretudo a partir de textos de Ronald Dworkin e Humberto Ávila – bem como elementos processuais referentes ao sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.
Palavras-chave: Querela nullitatis; coisa julgada inconstitucional; sistema de controle de constitucionalidade; teoria dos princípios jurídicos.
Sumário: Considerações Iniciais; I. Conceito, Natureza Jurídica e Objeto da Querela Nullitatis; II. O Sistema de Nulidades Processuais e o Instituto da Querela Nullitatis; III. A Ação Rescisória e a Querela Nullitatis; IV. Coisa Julgada Inconstitucional; IV. 1. O Sistema de Controle de Constitucionalidade Brasileiro e sua Repercussão sobre o Momento de Constituição da Coisa Julgada; IV. 2. Desconstituição da coisa julgada: a querela nullitatis como instrumento para afirmação de valores constitucionais; Considerações Finais; Bibliografia.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal estabelece que a “lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, erigindo estes institutos à qualidade de direitos fundamentais. Com efeito, a coisa julgada é um direito fundamental relacionado à segurança jurídica e a previsibilidade característica do Estado de Direito. Sem o fenômeno da coisa julgada a jurisdição perde força, uma vez que impossibilitada a afirmação de forma definitiva do direito do cidadão[1]. Por outro lado, assim como qualquer direito fundamental, a coisa julgada não tem caráter absoluto. Alguns instrumentos permitem a sua relativização em casos excepcionais, tais como a ação rescisória, a impugnação de sentença inconstitucional (artigo 475-L, §1º e artigo 741, parágrafo único do CPC[2]) e a chamada querela nullitatis (ação de nulidade de sentença). O que autoriza a relativização desse direito fundamental é a gravidade de uma eventual nulidade processual, que poderia até mesmo macular a própria existência do devido processo legal no caso concreto. Em uma ponderação de princípios fundamentais, o ordenamento jurídico optou por afastar a coisa julgada em detrimento da segurança jurídica em determinadas situações. Cada um dos instrumentos mencionados abarca uma situação específica de impugnação. A ação de nulidade da sentença visa atacar a decisão judicial dotada de vícios transrescisórios[3], como a ausência de citação ou citação defeituosa do réu. Nesse contexto, o presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade no ordenamento pátrio em se ajuizar a querela nullitatis para desconstituir a coisa julgada inconstitucional.
I. CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E OBJETO DA QUERELA NULLITATIS
Sobre a definição da querela nullitatis a doutrina processual brasileira ainda encontra campo fértil para divergências. Em linhas gerais, os seus principais característicos podem ser assim elencados: é o remédio adequado para impugnar os vícios de atividades (errores in procedendo) mais graves, relacionados com os pressupostos de existência do processo, que não são acobertados pela coisa julgada.
A natureza jurídica da querela nullitatis é de ação autônoma de impugnação da decisão judicial. É uma ação de natureza constitutiva que busca invalidar uma decisão judicial. Para Teresa Arruda Alvim Wambier, é uma ação de natureza declaratória, que busca declarar a inexistência de uma sentença.
Conforme lição de Alexander dos Santos Macedo, a chamada querela nullitatis constitui gênero dos remédios utilizáveis para impugnação de sentença eivada de vício de nulidade ou falta de citação do réu. Comentando essa questão ainda com base nos dispositivos do CPC anteriores à reforma promovida pela Lei Federal n. 11.232 de 2005, as espécies seriam:
“a) os embargos do executado do art. 741, inciso I, do CPC, nos quais a querela está inserta; e b) a ação declaratória da nulidade do processo, ou seja, a actio nullitatis, que consubstancia propriamente a querela nullitatis. Na hipótese mencionada por Pontes de Miranda e acima referida, entendemos que a exceptio nullitatis, de que se fala, há de ser arguida, não como defesa apenas, mas sob a forma de actio nullitatis incidental. Por seu pedido de declaração incidente formulada pelo autor, ela assumirá a feição de ação conexa.” [4][5]
Nesse sentido, caso se entenda correta a posição assumida por Pontes de Miranda, a querella nullitatis deverá ser compreendida como um instituto processual destinado a impugnar a formação da coisa julgada em uma relação processual que se desenvolveu de forma irregular, sem a citação do réu para apresentação de defesa.[6] Nesse sentido, em uma situação em que o réu está sendo executado com base em sentença condenatória proferida em processo no qual não foi citado, poderá impugnar a execução com base no art. 475-L, I do CPC. Essa impugnação exercerá, então, o papel da querela nullitatis, e poderá desconstituir a decisão ainda durante o prazo da ação rescisória:
“Mesmo se ainda estiver em curso o biênio relativo à ação rescisória, entendemos que esta deixa de ser necessária diante do ajuizamento da ação de embargos do executado; esta ação propicia ao devedor o mesmo resultado prático e algo mais. Propicia o mesmo resultado, porque faz cair a relação processual a partir da citação, que terá de ser renovada, e com ela, obviamente, a sentença.” [7]
Com relação ao seu objeto, a doutrina diverge com relação às hipóteses de cabimento da chamada querela nullitatis, ou ação declaratória de inexistência ou de nulidade do processo.
Alguns autores entendem ser a querela nullitatis uma modalidade de ação declaratória, voltada precisamente para a impugnação de sentenças inexistentes. Nesse sentido, Humberto Theodoro Jr. afirma sua tradicional posição no sentido de que “cabe, então, a ação comum declaratória de nulidade, se o caso for de sentença nula ipso iure ou inexistente, e cabe ação rescisória se a sentença válida como ato processual tiver incorrido em uma das hipóteses que a tornam desconstituível”[8].
Para Teresa Arruda Wambier, as sentenças inexistentes são fruto de processos inexistentes, e não podem transitar em julgado, razão pela qual contra elas não seria cabível a ação rescisória. Para a autora, as hipóteses de cabimento da ação de nulidade ou de inexistência abrangem[9]: (a) sentenças com ausência de decisório; (b) sentenças proferidas em processo instaurado com a falta de uma das condições da ação; (c) sentenças proferidas em processos aos quais tenha faltado pressuposto processual de existência: citação, petição inicial, jurisdição e capacidade postulatória; (d) sentenças em processo formado com citação nula aliada à revelia; (e) sentença em que não tenha sido citado um litisconsórcio necessário; (f) sentença que não contenha assinatura do juiz ou não esteja escrita.
Para outros autores, como Roque Komatsu[10] e Vicente Greco Filho[11], as sentenças tidas por inexistentes não são convalidadas pela coisa julgada, e, com isso, não precisam ser impugnadas via ação de nulidade específica. Para esses autores, o âmbito de incidência da querela nullitatis se restringe aos casos de sentença proferida por quem não é magistrado, quando há falta de procuração do advogado e, em regra, quando não houve citação.
Em um dos trabalhos pioneiros sobre o tema na literatura brasileira, Adroaldo Fabrício Furtado[12] restringe ainda mais o cabimento da querela nullitatis. Para o autor, somente serão impugnadas por essa ação aquelas sentenças em cujo processo não tenha havido citação da parte contrária ou em que essa seja nula. Esse também o entendimento de Alexander dos Santos Macedo, conforme acima exposto, e de Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha[13][14].
II. O SISTEMA DE NULIDADES PROCESSUAIS E O INSTITUTO DA QUERELA NULLITATIS
O estudo sobre a função da chamada querela nullitatis no sistema processual civil brasileiro perpassa pela compreensão das nulidades processuais[15]. Duas modalidades de vícios podem ocorrer no processo civil: os vícios in iudicando e os vícios in procedendo. Os primeiros estão relacionados com o conteúdo da decisão judicial, ou seja, decorrem de um julgamento em que houve a má apreciação da prova ou da aplicação equivocada da lei ao caso concreto. Os vícios ou errores in procedendo, por sua vez, são identificados por uma falha no procedimento de julgamento. Essa segunda categoria é também conhecida sob a denominação de vícios de atividade, por estar relacionada com a forma ou o modo como se opera um julgamento.
A ação de querela nullitatis está voltada para a correção de vícios de atividade. Estes podem ser agrupados conforme a intensidade com que geram seus efeitos sobre a relação processual. Segundo Alexander Macedo, esses vícios estão divididos em quatro grupos[16]:
(a) Os vícios de peso 1: aqueles caracterizados pela nulidade relativa, e se tornam sanados pela simples ocorrência da preclusão temporal, como dispõe o artigo 245 c/c os artigos 183 e 473, todos do CPC. Caso não tenham sido alegados tempestivamente pela parte interessada, não podem mais ser rediscutidos, quer no mesmo processo, ou em qualquer outro. São exemplos a incompetência relativa, que deve ser arguida pela parte, em apartado, no prazo de quinze dias (artigos 112 e 305 do CPC) ; assim também o compromisso arbitral, que será renunciado na medida em que o autor ajuíza a ação e o réu, deixa de arguir a questão em preliminar de contestação.
(b) Os vícios de peso 2: são mais graves e subsistem ao efeito sanatório da simples preclusão temporal, mas não resistem à eficácia preclusiva da coisa julgada material, caso não sejam arguidos em recurso. Exemplo dessa modalidade de vício consiste na omissão de ponto sobre que deveria se manifestar a sentença (omissão de decisão sobre um dos capítulos do pedido), que deve ser alegada em embargos de declaração ou apelação.
(c) Vícios de peso 3: são aqueles vícios de extrema gravidade que podem ser conhecidos de ofício pelo juiz e subsistem ao efeito sanatório da coisa julgada, podendo servir como causa de pedir da ação rescisória, como faculta o artigo 485 do CPC. Estão nesta classe, por exemplo, a incompetência absoluta (inciso II), a ofensa à coisa julgada (inciso IV), a violação de literal disposição de lei processual. São vícios que podem e devem ser reconhecidos de ofício pelo juiz; em relação a eles não se aplica a preclusão pro iudicato[17], podendo ser alegados em recurso ou mesmo em ação rescisória.
(d) Vícios de peso 4: podem ser impugnados mesmo após a perda do prazo da ação rescisória. José Carlos Barbosa Moreira agrupa-os na classe dos vícios que, dispensando o exercício da rescisória, são alegáveis como óbices à execução, através de embargos. Encontra-se nessa classe aquele que é considerado o mais grave vício de atividade: a falta ou nulidade de citação do réu, no processo de conhecimento, se a ação lhe correu à revelia.
A ausência ou a irregularidade na citação do réu é o mais grave erro de atividade que pode acometer a relação processual. No CPC, em relação ao processo de conhecimento, estatui o artigo 214 que “para a validade do processo é indispensável a citação inicial do réu”; no artigo 485, que “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: V - violar literal disposição de lei”; no artigo 475-L que “a impugnação somente versará sobre: I – falta ou nulidade de citação, se o processo correu à revelia”; e no artigo 741, que “na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: I - falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia”. Caso o vício ocorra em execução, o CPC determina que ela será nula (artigo 618, II).
Alguns autores consideram que a sentença proferida em processo de cognição no qual tenha ocorrido o vício na citação é inexistente. Essa é a posição de Liebman, Moniz de Aragão e Vicente Greco Filho. Dessa posição diverge Cândido Rangel Dinamarco, para quem a citação não pode ser vista como um pressuposto de existência do processo, porquanto no momento em que é realizada já existe processo. Segundo esse autor, a citação seria apenas condição de eficácia do processo em relação ao réu, e requisito de validade dos atos praticados no processo que lhe seguirem.
A questão que deve ser colocada, portanto, diz respeito ao réu que não foi citado para o processo de conhecimento, que correu à sua revelia, e que somente veio a tomar conhecimento do processo de execução contra si após mais de dois anos do trânsito em julgado da sentença. Moniz de Aragão coloca o problema da seguinte maneira:
“Suponha-se, no entanto, que o autor, maliciosamente, usa de um ardil para evitar a citação do réu e com isso, por não ter sido feita ou ser nula, obtenha, ante a revelia, sentença favorável. Contra esta também cabe, é natural, ação rescisória, para ser decretada a nulidade da sentença, como a de todo o processo. Admita-se que o vencido, todavia, não a proponha e, decorridos dois anos, a autor execute a sentença; pois bem, nessa ocasião, em embargos (art. 741, I), opor-lhe-á o vencido – independentemente de se haver escoado o prazo para a ação rescisória – que a sentença e bem assim o processo todo, é juridicamente inexistente, podendo o juiz, se acolher a alegação, decretar-lhe a invalidade.” [18]
Na situação cogitada, o réu já não teria qualquer recurso, bem como já lhe teria escoado o prazo da rescisória e, caso também não tenha sido citado em processo de execução, não poderia oferecer embargos. A solução para tais casos está somente no manejo da querela nullitatis[19][20]
III. A AÇÃO RESCISÓRIA E A QUERELA NULLITATIS
Para uma melhor compreensão acerca do cabimento da ação rescisória e da querela nullitatis convém, antes, anotar os traços que as diferenciam: (i) a ação rescisória possui um rol taxativo de causas de pedir, mais amplo, que está exposto no artigo 485, e deve ser proposta perante o tribunal; (ii) a ação rescisória permite a rescisão da sentença por motivos relacionados à sua validade e à sua justiça, enquanto a querela nullitatis restringe-se à invalidação da sentença; (iii) a ação rescisória deve ser interposta dentro do prazo de dois anos após o trânsito em julgado da decisão, conforme o art. 495 do CPC. A querela nullitatis, por sua vez, não possui prazo predeterminado para o seu ajuizamento. Com relação ao segundo ponto de diferenciação, a doutrina estabelece uma divisão entre os atos processuais inexistentes e os inválidos[21]. Para Pontes de Miranda, as decisões inexistentes são válidas, mas atacáveis por ação rescisória, enquanto as nulas são aquelas que, embora existentes, não valem e são atacáveis a qualquer tempo.
Parte da doutrina, orientada pelos trabalhos de José Carlos Barbosa Moreira, entende que a ação rescisória é cabível contra decisão que violou literal disposição de lei processual, com base no artigo 485, V, do CPC. Nesse sentido, em hipótese de processo no qual o réu não tenha sido citado para oferecer contestação, poderia este desconstituir a decisão rescindenda dentro do prazo bienal, mas o tribunal competente para a rescisória não poderá passar ao iudicium rescissorium:
“Após o julgamento de procedência no iudicium rescindens, que produz a invalidação da sentença, a regra é que, reaberto o litígio por esta julgado, caiba desde logo ao próprio tribunal emitir sobre ele novo pronunciamento, que de ordinário poderá favorecer ou não o autor vitorioso no iudicium rescindens. Em certas hipóteses, porém, não é assim que se passam as coisas. Com efeito, pode acontecer: a) que a rescisão da sentença, por si só, esgote toda a atividade jurisdicional concebível - por exemplo, se o pedido se fundou em ofensa à coisa julgada de decisão anterior sobre a mesma lide... b) que, embora insuficiente a rescisão, o remédio adequado à correção do que erradamente se fizera não consista na imediata reapreciação da causa pelo próprio tribunal que rescinde a sentença, tornando-se necessária a remessa a outro órgão - v. g., quando tiver ocorrido incompetência absoluta (art. 485, nº II, fine), hipótese em que a cognição deve ser devolvida ao juízo competente...; ou, ainda, quando a invalidade da sentença houver sido mera consequência de vício que afetara o processo anterior, de tal sorte que este precisará ser refeito, na medida em que aquele o haja comprometido (exemplos: a citação fora nula, sem convalidação; deixara de intimar-se o Ministério Público, apesar de obrigatória a sua intervenção).” [22]
Ultrapassada a análise sobre a natureza jurídica da querela nullitatis, podemos verificar que sua hipótese de cabimento mais aceita pela doutrina brasileira consiste na desconstituição da coisa julgada nas causas em que não houve citação do réu ou essa se deu de forma defeituosa. Nessa hipótese, a ação de nulidade de sentença se mostra como um instrumento essencial para assegurar garantias fundamentais do processo, como o contraditório, a ampla defesa e a isonomia entre as partes. Isso porque, a ausência da participação do réu em razão de defeitos no procedimento citatório leva à conclusão de que a relação processual não foi integralizada. Nada mais natural, que a decisão definitiva sobre essas causas possam ser revistas em sede de querela, com o objetivo de garantir a plena participação do réu – parte até então ausente – no curso do procedimento. O exame da querela nullitatis não pode se restringir, contudo, a essa única hipótese de cabimento. Precisamos, agora, avançar sobre a análise de um dos aspectos mais controvertidos na doutrina acerca do tema: a possibilidade de desconstituição da chamada coisa julgada inconstitucional.
IV. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
1. O Sistema de Controle de Constitucionalidade Brasileiro e sua Repercussão sobre o Momento de Constituição da Coisa Julgada
O controle de constitucionalidade no Brasil pode ocorrer de forma difusa cujo meio de impugnação do ato inconstitucional se dá incidentalmente no curso do processo, ou de forma concentrada diretamente no Supremo Tribunal Federal, por meio dos seguintes instrumentos processuais: a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual[23]; a ação direta de inconstitucionalidade por omissão[24]; a ação declaratória de constitucionalidade[25]; a ação direta interventiva[26]; e a arguição de descumprimento de preceito fundamental[27][28].
Em regra, a declaração de inconstitucionalidade da lei no controle difuso alcança apenas as partes e torna a lei nula de pleno direito, produzindo efeitos retroativos à sua edição[29][30]. Para que a decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso tenha efeitos erga omnes, ela deve ser definitiva, tomada pela maioria absoluta do pleno do tribunal, e o Senado, com base no artigo 52, X, da Constituição, deve suspender a sua execução por resolução[31]. Nesse caso, os efeitos da resolução do Senado são erga omnes e ex nunc, sem retroação.
Com relação ao controle concentrado de constitucionalidade, de uma maneira geral, os efeitos da decisão recaem contra todos e são retroativos, ou seja, trata-se de ato nulo. O artigo 27 da Lei 9.868/99, contudo, estabelece a exceção ao facultar ao Supremo Tribunal Federal, em caso de segurança jurídica ou excepcional interesse social, por maioria qualificada de dois terços de seus membros, restringir no tempo os efeitos da decisão, que terá sua eficácia determinada a partir do momento que os ministros fixarem. Ou seja, o referido dispositivo pretende conceder à corte a capacidade de restringir e limitar o campo temporal pretérito sobre o qual os efeitos da decisão de inconstitucionalidade recairão. Dessa forma, os ministros podem determinar uma data específica a partir da qual a decisão começará a produzir efeitos, com o objetivo de preservar atos jurídicos que eventualmente tenham sido celebrados ainda sob a vigência da lei impugnada[32].
Dessa forma, em linhas gerais, temos as seguintes possibilidades com relação aos efeitos das decisões em controle de constitucionalidade: (a) no controle difuso, os efeitos são produzidos entre as partes e retroativos à edição da lei inconstitucional; (b) no controle difuso com resolução do Senado (artigo 52, X da Constituição), os efeitos atingem todos (erga omnes) a partir da resolução; (c) no controle concentrado, os efeitos da decisão são também para todos e retroativos à edição da lei inconstitucional; (d) no controle concentrado com modulação no tempo (artigo 27 da Lei 9.868/99), os efeitos para todos passam a contar da data fixada pelo Supremo Tribunal Federal.
Nesse contexto, podemos observar a hipótese de uma demanda em que a sentença já com trânsito em julgado teve como fundamento lei posteriormente declarada inconstitucional pelo STF com efeitos erga omnes.
Com relação à situação acima configurada não surgem maiores problemas uma vez que a decisão ainda pode ser impugnada quando do cumprimento da sentença com base no artigo 475-L ou em sede de embargos à execução contra a Fazenda Pública nos termos do artigo 741, todos do Código de Processo Civil.
Cabe, contudo, analisar mais detidamente aquelas situações em que não há mecanismo jurídico predeterminado para impugnação da coisa julgada inconstitucional. Mais precisamente, essas situações podem ser classificadas da seguinte forma: (a) lei declarada inconstitucional antes de passados dois anos do trânsito em julgado de sentença declaratória; (b) lei declarada inconstitucional após o cumprimento da sentença, mas antes de passados dois anos do trânsito em julgado; (c) lei declarada inconstitucional após o cumprimento da sentença e depois de passados dois anos do trânsito em julgado.
A falta de instrumento literalmente previsto para impugnação da coisa julgada inconstitucional nas hipóteses acima é, em parte, aparente, uma vez que é assente na doutrina e na jurisprudência que o artigo 485, V, do Código de Processo Civil[33], deve ser lido de forma abrangente para contemplar tanto a norma infraconstitucional como a constitucional[34]. Nesse sentido, as sentenças proferidas com base em lei posteriormente declarada inconstitucional podem ser objeto de ação rescisória na hipótese do inciso V do artigo 485 do CPC, desde que atendido o requisito temporal referente ao prazo bienal, uma vez que tal dispositivo abrange também os casos de violação da própria norma constitucional[35]. Dito isso, é de se concluir que a única hipótese em que não se afigura possível relativizar a coisa julgada inconstitucional é a aquela em que houve o transcurso de mais de dois anos do trânsito em julgado.
A questão controvertida, então, é a de saber em que medida uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado ou controle difuso seguido de resolução do Senado Federal, declarando a inconstitucionalidade de uma norma, pode atingir aquelas decisões pretéritas tomadas com base na lei ora impugnada e já acobertadas pela coisa julgada. Vale lembrar que a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em controle concentrado – em ação direta – produz, em regra, efeitos retroativos (ex tunc), alcançando todas as relações jurídicas constituídas sob a vigência da lei ou ato normativo.
Essa questão deve ser desdobrada de acordo com as modalidades de situações jurídicas que foram definidas e reguladas sob a égide da lei ou ato normativo inconstitucional: (I) as relações jurídicas continuadas estendem os efeitos produzidos no tempo, e podem perfeitamente sofrer as repercussões geradas pela mudança do estado de constitucionalidade das leis ou atos normativos que as regem, que incidirão sobre os efeitos futuros da relação jurídica de trato continuado[36]; (II) as relações jurídicas definitivas com sentença transitada em julgado.
2. Desconstituição da coisa julgada: a querela nullitatis como instrumento para afirmação de valores constitucionais
Com efeito, para se afastar uma regra constitucional que protege o direito fundamental à inviolabilidade da coisa julgada devemos verificar se é possível a não aplicação da regra constitucional em determinados casos, quando uma ponderação entre os princípios constitucionais em jogo permitir que se afaste a tutela da segurança jurídica em prol de outro princípio não menos importante dentro da sistemática axiológica constitucional. Nessa medida, ao se adotar esse posicionamento, seria perfeitamente plausível o uso da querela nullitatis como forma de garantir o equilíbrio entre os valores constitucionais, quando uma decisão judicial tenha se pautado em lei declarada inconstitucional em momento posterior ao biênio previsto para a propositura da rescisória.
“É que o princípio da segurança jurídica, como os princípios em geral, não têm caráter absoluto. É possível cogitar, portanto, da necessidade de fazer sua ponderação com outros princípios de igual estatura, como o da justiça ou da moralidade, mediante a utilização do princípio instrumental da razoabilidade-proporcionalidade.”[37]
Todavia, ainda que haja entendimento no sentido de ser cabível a querela nullitatis para as situações referidas, a posição majoritária na doutrina processual e constitucional brasileira admite a relativização da coisa julgada tem caráter excepcional. E não poderia ser de outro modo. A regra geral está no sentido de que se deve preservar a estabilidade da jurisdição e, consequentemente, a proteção estabelecida pela coisa julgada.
Com relação á não aplicação da regra constitucional – protetora da coisa julgada –, vale consignar que o próprio ordenamento já autoriza a sua relativização nos casos já mencionados, além da hipótese da revisão criminal[38], o que já mostra a relatividade do direito fundamental em questão. Apesar de os exemplos servirem para mostrar tal possibilidade, não é suficiente para justificar o afastamento da coisa julgada por meio de ação da querela nullitatis.
Contudo, o fundamento para se defender a relativização da coisa julgada encontra campo fértil na teoria dos princípios jurídicos[39][40]. Na teoria do direito norte-americana, Ronald Dworkin traçou aquela que pode ser considerada uma das mais importantes viradas teóricas: a distinção entre regras e princípios jurídicos. Os princípios diferem das regras, segundo Dworkin, em alguns aspectos: (I) os princípios não funcionam de acordo com o modelo tudo ou nada, que constitui o modelo de aplicação das regras. Segundo esse modelo, uma regra deve prever exatamente todas as suas possibilidades de aplicação, incluindo, portanto, as possíveis exceções para o seu comando[41]. De outra forma, os princípios não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente, sob determinadas condições, uma vez que possuem uma textura normativa aberta. Um princípio pode regular um caso concreto no sentido de uma decisão, ao mesmo tempo em que afasta outro princípio, não menos válido, que produziria decisões contrárias caso fosse aplicado; (II) o primeiro aspecto caracterizador dos princípios revela seu segundo ponto de distinção em relação às regras, que consiste na característica de que os princípios não são mutuamente excluídos quando aplicados em um caso concreto. Quando um juiz se defronta com uma questão controvertida, em que dois ou mais princípios estão aparentemente em contraste, a sua opção por um deles não significa que o outro deve ser automaticamente excluído do sistema do direito. Pelo contrário, a operação hermenêutica nesses casos, em que princípios estão em conflito, envolve uma técnica conhecida como sopesamento[42]; (III) a técnica do sopesamento pressupõe que os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm: a dimensão de peso ou importância. As regras são funcionalmente importantes ou desimportantes, quer dizer, podem desempenhar um papel maior ou menor na regulação do comportamento. Uma regra que estabelece o sistema eleitoral majoritário ou proporcional tem maior importância do que a regra que define o critério de distribuição do tempo gratuito de cada partido nos meios de comunicação. As regras possuem maior ou menor importância na regulação do comportamento, mas do ponto de vista do sistema formal de regras, não se pode dizer que uma tem maior importância do que outra a ponto de suplantá-la. De outro modo, os princípios podem ser valorados, ou seja, indicam pesos normativos diferentes que devem ser ponderados de tal forma que, se dois princípios estão em conflito, um possa superar o outro em função de sua maior importância para o sistema, e não para a regulação do caso em concreto.
Na literatura brasileira, Humberto Ávila, em sua “Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos”, desconstrói a ideia de que as regras devem necessariamente ser aplicadas quando da sua hipótese de incidência, sem o cotejo das demais circunstâncias[43]. Ao tratar das regras, o autor dedica uma parte do tema para demonstrar a possibilidade da sua superação. O tema é introduzido pela justificativa da obediência a regras. Nesse ponto Humberto Ávila explica que as regras não devem ser obedecidas somente pelo simples fato de serem regras e por serem editadas por uma autoridade, mas também pelo aspecto moral positivo da sua obediência e sobretudo por prestigiar valores protegidos pelo ordenamento como a segurança e a igualdade. Ocorre que as regras envolveriam também valores que careceriam de ponderação, o que permitiria serem superadas em situações excepcionais, em razão de eventuais conflitos sobre valores de fundo.
Para se compreender o pensamento de Ávila acerca da possibilidade de superação das regras em situações específicas, é preciso analisar, antes, os tipos de valores que, segundo o autor, compõem a estrutura axiológica de uma regra: o valor substancial e o valor formal. O valor formal subjacente às regras pode ser sempre encontrado, segundo Ávila, na promoção da segurança. Nesse sentido, é característica comum às regras o fato de trazerem certo grau de previsibilidade para um sistema jurídico, uma vez que comportam uma descrição pormenorizada da hipótese fática sobre a qual pretendem incidir. Diferentemente dos princípios, as regras já trazem em sua própria estrutura, como um verdadeiro pressuposto para a sua normatividade, uma ponderação anterior sobre um conflito de razões que pretendem decidir de forma previsível para o futuro. Nesse sentido, Ávila explica que as regras são preliminarmente decisivas, ou seja, têm a pretensão de gerar uma solução específica, a priori, para o conflito entre razões que concorrem como diretrizes para a solução de casos concretos[44]. De forma distinta, os princípios estabelecem diretrizes valorativas gerais a serem atingidas, sem descrever preliminarmente qual o comportamento adequado para a sua realização. Diante disso, os princípios necessitam de alguma medida de complementação entre si, de um entrelaçamento entre eles que possa produzir uma ponderação necessária para a solução de cada caso individual. Assim, segundo Ávila, são normas com pretensão de complementaridade. As regras, por sua vez, possuem pretensão terminativa, uma vez que pretendem abranger todos os aspectos relevantes para a solução de situações conflituosas específicas e, dessa, forma, garantem maior previsibilidade para a decisão[45]. É essencial que seja destacado um elemento importante na estrutura sistêmica das regras de Ávila. A despeito de serem preliminarmente decisivas, as regras podem ter sua condição de aplicabilidade preenchida, mas ainda assim não serem aplicadas em determinados casos em razão de circunstâncias excepcionais. São circunstâncias que superam a razão que sustenta a aplicação normal da regra. As regras, portanto, são superáveis, ainda que somente em casos excepcionais. E como condições de superabilidade, Ávila propõe requisitos de ordem material e procedimental.
No que diz respeito aos requisitos materiais, a superação de uma regra – quando ela normalmente seria aplicada – está interligada aos valores que a compõem. Em primeiro lugar, qualquer hipótese de superação deve ter em conta o valor substancial que a regra busca promover, ou seja, a sua finalidade subjacente. Toda regra possui, como pando de fundo, a tentativa de promover uma finalidade específica que constitui a sua própria razão de ser. Nesse sentido, os casos excepcionais de superação não podem fugir ao complexo finalístico da regra, de maneira que o afastamento de uma regra não pode comprometer a sua finalidade subjacente. Em segundo lugar, toda regra tem como valor formal a segurança e, dessa forma, pretende garantir certo grau de previsibilidade para a decisão de conflitos futuros. Em virtude dessa necessidade de segurança formal, qualquer afastamento de uma regra deve mostrar o reduzido grau de probabilidade com que situações similares venham a ocorrer no futuro. Ou seja, a criação de uma exceção à aplicação normal da regra para um conflito específico deve mostra ser o menos prejudicial possível para a estabilidade do sistema jurídico como um todo[46]. Assim, Ávila propõe uma equação inversamente proporcional no sentido de que as regras, por serem instrumentos de solução previsível, eficiente e geralmente equânime de conflitos, a sua superação seria tanto mais flexível na medida em que sua aplicação as tornasse mais imprevisíveis, ineficientes e provocasse maior desigualdade geral.
Quanto ao aspecto procedimental, Humberto Ávila destaca que a superação da regra deve ter uma justificação condizente, que demonstre a incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente, bem como que demonstre que o afastamento da regra não acarretará expressiva insegurança jurídica[47]. Dessa forma, conclui Ávila que a superação da regra não é a uma questão apenas de ponderação entre o princípio da segurança jurídica com outro princípio constitucional, como acontece na ponderação entre princípios constitucionais:
“(...) a superação de uma regra não se circunscreve à solução de um caso, como ocorre na ponderação horizontal entre princípios mediante uma solução de um caso mediante a análise da sua repercussão para a maioria dos casos. A decisão individualizante de superar uma regra deve sempre levar em conta seu impacto para a aplicação das regras em geral. A superação de uma regra depende da aplicabilidade geral das regras e do equilíbrio pretendido pelo sistema jurídico entre justiça geral e justiça individual.”[48]
Com relação ao tema ora tratado, o da coisa julgada inconstitucional, vale destacar, preliminarmente, que a sua previsão normativa na Carta Constitucional brasileira está expressa no artigo 5º, XXXVI, com a seguinte redação: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A regra contida nesse dispositivo pode ser concebida como uma ponderação entre o valor da segurança jurídica e o valor da autonomia legislativa para a criação de novas leis. As razões que poderiam ser atribuídas a cada lado da disputa entre a proteção da segurança jurídica e da autonomia legislativa já estão dadas de forma preliminar com o conteúdo da regra, e levam à conclusão de que a proteção da coisa julgada tem prioridade sobre as novas leis produzidas de forma democrática pelo corpo legislativo.
Retomando os critérios de superação de regras estabelecidos por Humberto Ávila, a coisa julgada inconstitucional não resguarda o complexo finalístico da regra uma vez que, no caso, o valor formal trazido consiste na segurança jurídica, e o não afastamento da coisa julgada inconstitucional traz a insegurança consistente na manutenção no ordenamento de valores não conformados com a Constituição. Não atende a previsibilidade, uma vez que não se espera que o ordenamento vá sustentar uma decisão que contrarie a Constituição. É ineficiente na medida em que a norma privilegiada com a decisão transitada em julgado já teria sido extirpada do ordenamento a partir de decisão de inconstitucionalidade que gera efeitos retroativos, e acabaria por promover a desigualdade geral, uma vez que seria aplicada somente naquele caso concreto e não se aplicaria em abstrato em casos futuros. Em outras palavras, os princípios da segurança jurídica e da autoridade do poder judiciário cedem para o princípio da força normativa da Constituição, princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e para o princípio da isonomia, este último na medida em que a aplicação assimétrica da norma viola o referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema.
No caso da regra que estabelece a inviolabilidade da coisa julgada, a finalidade subjacente da regra é justamente a segurança jurídica. Nesse sentido, é um contrassenso pensar que a coisa julgada inconstitucional privilegia a segurança jurídica, sendo certo que não há maior insegurança para o ordenamento do que a manutenção no sistema dos efeitos de uma decisão judicial inconstitucional. O autor destaca também que a superação de uma regra deve ter uma fundamentação racional e transparente de modo a possibilitar seu controle, além de uma comprovação condizente.