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Privatização do sistema penitenciário brasileiro

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23/12/2012 às 10:04
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4 O IDEÁRIO DA PRIVATIZAÇÃO NO BRASIL

É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade, visitando suas prisões. 

 Dostoiévski.

4.1 O surgimento do ideário privatizador no Brasil

 Nacionalmente, embora não se buscasse transpor fidedignamente os modelos estrangeiros ao contexto pátrio, o propósito privatizador do sistema penitenciário foi aderido por parte da comunidade jurídica, cujo estudo pioneiro nesse sentido foi elaborado por Edmundo de Oliveira. Este, à época  Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, apresentou em 27 de janeiro de 1992, a chamada Proposta de Regras Básicas para o Programa de Privatização do Sistema Penitenciário do Brasil[206].

 Dentre seus enfoques, propunha um modelo de privatização dos serviços penitenciários, com base em um sistema misto, não conferindo, portanto, “plena delegação de poderes à iniciativa privada”[207]. Nesses termos, seria implantada gestão híbrida nas unidades prisionais, “envolvendo a administração pública e a administração privada, representada por grupo ou empresa particular instalada no País”[208].

Em comentário à compilação, Suleima Gomes Bredow alude que essa tinha por escopo viabilizar a redução dos gastos públicos, bem como os encargos trabalhistas, que somada à intenção de melhoria das condições do apenado, visava o devido cumprimento dos ditames legislativos[209]. Ainda, mediante a adoção desse modelo oportunizaria a diminuição das atribuições dos Estados e a conseqüente transferência à iniciativa privada, bem como maior eficiência e desempenho da aplicação da pena[210].

 Contudo, o referido projeto foi recebido negativamente pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, sob a justificativa da incompatibilidade entre o ordenamento jurídico vigente e os termos da proposta. Desse modo, o órgão de classe dos causídicos, através de manifesto datado de 09 de abril de 1992, repudiou formalmente a proposição, cujo documento também foi firmado por representantes da Magistratura Nacional e do Ministério Público[211].

O Estado de São Paulo foi o primeiro a inserir em sua legislação, através da Lei n.º 7.835/92, sancionada em 08 de maio de 1992 pelo então Governador Luiz Antônio Fleury Filho, autorização quanto à privatização dos serviços públicos em estabelecimentos penais daquela unidade federativa[212].

 Segundo César Barros, pela Resolução 01, de 24 de março de 1993, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária reiniciou a discussão a respeito da privatização da execução penal[213]. A indigitada manifestação daquele colegiado objetivou uma decisão atinente à proposta de Edmundo de Oliveira, que restou firmada nos seguintes termos:

I – submeter a proposta a amplo debate nacional pelos diversos segmentos da sociedade;

II – deixar que os Governos Estaduais avaliem a iniciativa de adotar ou não a experiência, em conformidade com as peculiaridades regionais[214].

Em 1993, os magistrados brasileiros manifestaram-se negativamente à proposta privatizadora através da Carta de Joinville, por ocasião do I Simpósio Nacional sobre Execuções Penais e Privatização dos Presídios, realizado de 25 a 27 de março de 1993, divulgando que:

 Considerando os princípios da indelegabilidade da jurisdição e jurisdicionalidade da execução penal, rejeitam a tese da privatização dos presídios, sem embargo de recomendar sejam estimuladas as soluções que visem incremento do trabalho do apenado[215].

 A partir de então, se acirrou a divergência quanto à legalidade da inserção da iniciativa privada, através da privatização total ou parcial das unidades prisionais[216].

Todavia, a discricionariedade conferida diante da lacuna existente pela ausência de disposição normativa que padronizasse a adoção da privatização da execução penal, favoreceu que as unidades federativas a adotassem, conforme seus encaminhamentos. Nesta senda, alguns Estados incorporaram as suas rotinas tais contratos, mediante processo licitatório, outros “atropelaram as normas vigentes e contrataram diretamente, a título de emergência, empresas privadas para a gestão dos cárceres”[217]

A pioneira experiência deu-se com a inauguração da Penitenciária Industrial de Guarapuava, no Paraná, em 12 de novembro de 1999,  formalizada a encampação no cenário nacional  da privatização parcial ou terceirização prisional, logo se transformando em um fenômeno em ascensão. O segundo Estado a adotar o modelo foi o Ceará, com a Penitenciária Industrial do Cariri, seguido por Santa Catarina, Pernambuco, Minas Gerais e Bahia[218].

Merece destaque o Projeto de Lei n.º 2.146/99, da Câmara dos Deputados, de autoria do então Deputado Federal Luiz Barbosa Alves, propondo aquela Casa Legislativa a privatização do sistema penitenciário nacional. Como justificativa, o  parlamentar destacava a necessidade de inovar diante a calamitosa situação carcerária do país, especialmente destacando que:

Embora a segurança pública seja dever do Estado, o presente Projeto de Lei visa compartilhar o gerenciamento e a participação da iniciativa privada na solução de um grave problema que não tem encontrado resposta enquanto limitado à exclusiva competência do poder público[219].

A proposta restou rechaçada,  através do parecer exarado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP[220], o qual, dentre outros pontos, destacou a ausência no referido Projeto de Lei de qualquer alusão em seu conteúdo de disposição normativa da Constituição Federal, Código Penal ou da Lei 7.210/84, Lei de Execução Penal.  Maurício Küehne, signatário do posicionamento em comento, alude que as justificativas de Luiz Barbosa Alves eram insuficientes para um diploma daquela envergadura, pois estavam pautadas, exclusivamente, em apontamentos a respeito das mazelas do sistema prisional pátrio, carecendo de “referência aos aspectos que suscita a execução; omissão completa, por assim dizer, do ordenamento jurídico”[221],

Em 09 de dezembro de 2002, através da Resolução de n.º 8, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária chancela seu entendimento, passando a recomendar pela rejeição de quaisquer propostas tendentes à privatização do  sistema prisional brasileiro, a que colaciona-se o artigo 2º,caput e parágrafo único, in verbis:

Art. 2º – Considerar admissível que os serviços penitenciários não relacionados à segurança, à administração e ao gerenciamento de unidades, bem como à disciplina, ao efetivo acompanhamento e à avaliação da individualização da execução penal, possam ser executados por empresa privada.

Parágrafo único – Os serviços técnicos relacionados ao acompanhamento e à avaliação da individualização da execução penal, assim compreendidos os relativos à assistência jurídica; médica, psicológica e social, por se inserirem em atividades administrativas destinadas a instruir decisões judiciais, sob nenhuma hipótese ou pretexto  deverão ser realizadas por empresas privadas, de forma direta ou delegada, uma vez que compõem requisitos da avaliação  do mérito dos condenados[222].

 Destaca Grecianny Cordeiro,  que, a despeito da determinação manifestada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, segue em plena expansão a articulação das co-administrações com o particular, salvo raras exceções, “sob o silêncio conveniente das autoridades competentes e habitual apatia dos mais diversos segmentos da sociedade”[223].

Contudo, perpassados mais de uma década desde que o temário foi trazido formalmente à baila, ainda seguem as divergências a respeito da inserção da iniciativa privada por ocasião da aplicação da pena, no tocante à privatização total ou parcial (terceirização) das unidades carcerárias[224].

Paulo Hélder Bordin manifesta que os resultados atingidos no Brasil pelos contratos de privatização parcial  são animadores, a indicar o sucesso da inserção do empresariado na melhoria das condições das unidades prisionais que são co-administradas. Comprovando tais constatações, o autor ressalta a inexistência de rebeliões e fugas nas unidades em que a co-gestão incide, destacando ainda as baixas taxas de reincidência de egressos desses estabelecimentos, quantificadas em aproximadamente 2%, enquanto naqueles administrados pelo poder público permanecem com altíssimos números, firmados em 82%[225]

Todavia, episódios envolvendo as terceirizações firmadas entre o Governo do Estado de São Paulo e Organizações Não-Governamentais – ONG's demonstraram que a corrupção também pode eivar as relações estabelecidas entre o ente público e a iniciativa privada por ocasião da execução da pena. Amplamente divulgado na imprensa daquela unidade federativa, o fato de uma entidade, do município de Bragança Paulista, foi “acusada pelo desvio de 16 mil refeições destinadas aos presos”[226].

A partir do ano de 2006, o Governo do Paraná decidiu por retomar a gestão das unidades prisionais co-administradas com a iniciativa privada[227]. Atualmente, todos os estabelecimentos prisionais daquele Estado estão sob a égide da administração pública. A justificativa para tal, de acordo com Suleima Gomes Bredow, se deve aos altos custos, à precarização dos serviços oferecidos pelo particular, bem como â ausência da rentabilidade esperada pelo setor privado[228].

O processo de reestatização das administrações prisionais pelo poder público também acontece no Ceará[229], mediante o provimento de uma ação civil pública, movida pelo Ministério Público daquela unidade federativa, “insurgindo-se contra o funcionamento das penitenciárias ditas terceirizadas”[230]. Definido por inconstitucional o sistema adotado, a Administração retomou a gestão de tais unidades.

Em via contrária, os Estados de Pernambuco, Minas Gerais e Bahia, dentro das peculiaridades dos sistemas respectivamente adotados, estão atualmente em tratativas para o estabelecimento das parcerias com as empresas do setor, visando à construção e a co-administração das futuras instalações[231].  

 Atualmente, o Governo Federal, através do Ministério da Justiça, não recomenda a implementação da iniciativa privada no contexto penitenciário, especialmente diante da intenção do Governo do Estado de São Paulo de veicular a privatização carcerária. Em manifestação a respeito da inclinação paulista, Luiz Paulo Barreto Teles, Secretário Executivo daquele ministério, mencionou que “o Brasil precisa fazer muito para pensar em adotar algum modelo de privatização”[232]. Refere ainda que a privatização poderia servir como meio de mercantilização dos cárceres, o que poderia fomentar o aumento das penas com o fito de maior lucratividade à iniciativa privada. Por fim, destaca que “antes de pensar em presídio-empresa, devia-se investir nos chamados presídio-escola, com aprendizado agrícola, industrial e técnico dos detentos”[233].

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Entretanto, o Deputado Domingos Dutra (PT-MA), relator da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI do Sistema Carcerário, da Câmara dos Deputados, se posiciona favoravelmente à incidência da privatização, como medida de emergência, para atenuar as mazelas estruturais das celas e galerias nacionais[234].

Publicizada em 29 de setembro de 2008, a recente pesquisa divulgada pelo CNI/Ibope, realizada entre os dias 19 e 22 de setembro último, teve por objeto o levantamento da opinião pública a respeito da privatização dos presídios. Desenvolvida em 141 municípios brasileiros, 26% dos entrevistados manifestaram-se favoravelmente ao ingresso da iniciativa privada ao sistema, percentual 10% inferior as averiguações no mesmo sentido tabuladas no mês março[235].  

Por fim, César Barros destaca que as divergências a respeito da privatização da execução penal no Brasil tratam-se de incontestável  fonte de divergências[236]. Tal contexto roga por emergencial transformação a ser encampada pelo Estado, a bem da população detenta e da coletividade, como forma de ascensão de condições mais justas e igualitárias para o fomento de uma sociedade humanitariamente reconhecida.

4.2 Privatização Parcial ou Terceirização: o Sistema adotado pelo Brasil

Edmundo de Oliveira menciona que as dificuldades de uma cadeia humana transcendem a destinação do ambiente a coibição de delitos. Tão difícil quanto, é oferecer ao apenado  seus direitos não atingidos pela sentença penal condenatória, quais sejam, a promoção dos meios materiais adequados ao cumprimento da pena e o preparo deste individuo ao retorno ao convívio social[237].

A respeito das relações estabelecidas entre o Poder Público e a iniciativa privada, Marcelo Figueiredo Freire destaca que:

As relações entre particulares e o Estado encontram-se em um período de extrema mutabilidade, os conceitos do que é competência privativa estatal e o que pode ser feito por particulares estão se transformando a cada dia. E é neste contexto que o tema da privatização das prisões se torna atual, ele nada mais é do que uma parte (um plano) dentro de um assunto mais genérico, que se refere à forma de cooperação e interação entre os particulares e o Estado em prol da coletividade[238].

 Alçada como alternativa à realidade prisional brasileira, a privatização prisional parcial, ou igualmente denominada terceirização, passa a vigorar no país objetivando o cumprimento das disposições normativas consubstanciadas na Constituição Federal, Código Penal e Lei de Execução Penal.

A respeito do estreitamento de relações entre o Poder Público e a iniciativa privada por ocasião da aplicação da pena, assenta Paulo Hélder Bordin:

Há muito a Administração Pública vem utilizando parcerias com a iniciativa privada para a execução de suas atribuições. Sempre se disse que podem ser terceirizadas as atividades-meio, de que não decorram atos administrativos e onde não há delegação de parcela do poder estatal. É o caso da operacionalização das penitenciárias pela iniciativa privada, um sistema de co-gestão ou gestão compartilhada. Mas, neste caso, a ação da empresa privada se restringe à execução de serviços operacionais, onde há diferença entre a atuação do servidor público e de um empregado da empresa. A diferença (vantagem) está na eficiência da iniciativa privada[239].

Grecianny Cordeiro, discorrendo a respeito do modelo de terceirização penitenciária pátria, refere se tratar de acordo firmado entre os entes público e privado, os quais restam vinculados à co-gestão da unidade prisional objeto do contrato. Nesses termos, o diretor da prisão é indicado e nomeado pelo Estado, dentre aqueles que compõem o quadro de agentes públicos, sendo incumbida a empresa privada a prestação dos demais serviços, de caráter material e logístico. Ainda, “a segurança interna da penitenciária compete ao particular e a segurança externa é feita pela polícia militar”[240].

Desse modo, a terceirização não minimiza a competência ou as prerrogativas do Poder Público, vez que “a responsabilidade pela administração permanece íntegra como poder-dever do Estado, já que indelegável”[241]. As vantagens para o Estado com a inserção da terceirização se perfectibiliza ao fato de que a este não compete o envolvimento em questões de administração logística da unidade prisional, enquanto ao particular, diz respeito aos ganhos percebidos pelo desempenho do serviço prestado, pagos  diretamente pelo Poder Público.

A terceirização é defendida por Maurício Küehne, na medida em que este refere a inexistência de obstaculização normativa a sua operacionalização, dispensando para tal qualquer reforma legislativa. Ou seja, é perfeitamente possível  a execução material da pena (alimentação, vestuário, assistência médica, jurídica, odontológica, vigilância etc.) permanecendo sob o comando da Administração Pública  quanto à direção, controle e disciplina, na medida em que a jurisdição e as questões de caráter administrativo judiciário são mantidas ao controle do Estado[242].

Em comentário a respeito da privatização parcial do sistema carcerário no Brasil, Rita Tourinho não coloca nenhuma objeção quanto a terceirização daquelas que chama atividades acessórias da rotina penitenciária (alimentação, limpeza, dentre outras). Porém, ao analisar os termos de vigência dos acordos dessa natureza firmados no país, a autora refere que estes infringem as disposições contidas nos artigos 75, 76 e 77, da Lei n.º 7.210/84, Lei de Execução Penal[243]. Sobre esse enfoque, assevera o “desvirtuamento ilícito da terceirização de serviços penitenciários, explicitado na tentativa de solucionar a intransponível impossibilidade de terceirização de funções de direção de presídio"[244], bem como no tocante à segurança interna no estabelecimento penitenciário[245]. Desse ponto, as prerrogativas da Administração estão sendo desrespeitadas, especialmente o disposto no artigo 37, II, da Constituição Federal[246].

Grecianny Carvalho Cordeiro classifica os contratos de terceirização dos serviços penitenciários, firmados pelos os entes público e privado, como forma de “driblar a ausência de permissivo legal”[247], bem como forma de mascarar “uma verdadeira privatização, onde o Estado vem transferindo a total execução da pena prisional a empresas particulares”[248].

Merece relevo a possibilidade de serem firmadas Parcerias Público- Privadas – PPP's, no âmbito da execução penal, forte nas previsões da Lei n.º 11.079/04, mesmo que ainda não operacionalizada no curso da execução penal do país, “em virtude da lenta implantação da Lei Federal das PPP's. Notadamente, no mesmo quilate que a terceirização, as Parcerias Público-Privadas não são conferidas ao exercício daquelas atividades de caráter indelegável, tidas como função pública, com fulcro no artigo 4º, inciso III, da respectiva Lei[249].

Por fim, cumpre pontuar que o modelo de privatização parcial ou terceirização utilizada pelo Brasil se assemelha-se com aquele operacionalizado na França.

4.2.1 A Penitenciária Industrial de Guarapuava - PIG

A primeira instituição prisional brasileira nesses moldes foi a Penitenciária Industrial de Guarapuava - PIG, mediante contrato firmado entre o Estado do Paraná e a Humanitas – Administração Prisional Privada S/A Ltda[250].

O Departamento Penitenciário do Estado do Paraná assenta ter sido a PIG a primeira penitenciária industrial do país, destinada a detentos do sexo masculino, ao cumprimento de penas privativas de liberdade. Foi a precursora das Unidades Prisionais do Brasil, que através de processo licitatório, vinculou a iniciativa privada a rotina da administração e execução penal[251].

 Com capacidade para abrigar 240 presos, a construção do estabelecimento prisional em comento foi viabilizada mediante investimentos oriundos da União,  80% provenientes do convênio com o Ministério da Justiça e 20% provenientes do Governo Estadual.[252]

Dentre os objetivos da Penitenciária, inaugurada em 12 de novembro de 1999, estava propiciar ao apenado o oferecimento de “novas alternativas, proporcionando-lhes trabalho e profissionalização, viabilizando além de melhores condições para sua reintegração à sociedade, o benefício da redução da pena”[253]. Embasada nessa filosofia, a PIG abriga uma fábrica moveleira, onde a maioria dos detentos executa suas atividades laborais. Aqueles apenados não envolvidos no canteiro da fábrica desempenham atividades laborais em outros setores da própria unidade, tais como os serviços de cozinha, lavanderia, limpeza e conservação da instituição[254].

Durante a vigência da gestão híbrida, à Administração Pública competia o controle e a supervisão geral da penitenciária, bem como a custódia do preso. À empresa privada tocava a execução dos chamados serviços de hotelaria (hospedagem, alimentação, recreação, saúde, serviço psicológico, educacional e jurídico), bem como a administração logística e segurança interna do estabelecimento.

Dados oficiais do Governo do Estado do Paraná referem que todos os presos envolvidos com trabalho na Penitenciária desenvolvem suas atividades em três turnos diários de seis horas, percebendo como remuneração 75% do salário mínimo, dos quais 25% são repassados “ao Fundo Penitenciário do Paraná, como taxa de administração, revertendo esses recursos para a melhoria das condições de vida do encarcerado”[255]. O restante é destinado à família e para um fundo, que só poderá ser sacado após o cumprimento da pena.

Considerada até então bem-sucedida, a terceirização no Paraná ultrapassou os limites territoriais daquele Estado, chegando ao Ceará, com a inauguração, nos mesmos moldes da Penitenciária do Cariri (PIRC), em Juazeiro do Norte, em 22 de janeiro de 2001. Ademais, a experiência pioneira fomentou a expansão da privatização parcial da execução penal, a qual chegou a atingir 50% dos estabelecimentos paranaenses.[256]

Entretanto, Maurício Küehne sinalizava a necessidade de que fosse revisto e corrigido o aspecto da questão disciplinar dos detentos, que estava sob a responsabilidade da empresa administradora da Penitenciária. Afora essa ressalva, o autor sustentou que Guarapuava reunia “todas as condições necessárias para prestar a assistência prevista em Lei”[257].

Da inauguração, até o ano de 2006, a Penitenciária Industrial de Guarapuava foi co-administrada com a inserção da Humanitas. No entanto,  por decisão do Poder Executivo Paranaense, ocorrem a reestatização desta e dos demais estabelecimentos que dispunham vinculo com a iniciativa privada[258].

Segundo Jair Ramos Braga, Secretário de Justiça do Estado do Paraná, a reestatização da gestão das penitenciárias terceirizadas se deu, dentre outros fatores, por questões de segurança. Sustenta que “O salário baixo e a alta rotatividade dos agentes muito grande, o que provocava problemas de segurança, Com a retomada, eliminamos o lucro da empresa, e investimos esse dinheiro na melhoria dos presídios”[259].

Merece relevo o fato de as favoráveis condições tidas em Guarapuava, não foram uníssonas nas experiências terceirizadas no Estado do Paraná, embora os valores despendidos pelo erário público as empresas fosse equivalente. Embora o custo mensal aproximado por detento fosse auferido em R$ 1.415,00, as condições oferecidas não correspondiam ao investimento, o que também motivou ao Estado a retomada da gestão exclusiva[260].

Posto que recente a reestatização dos estabelecimentos prisionais paranaenses, resta aguardar a veiculação dos respectivos dados oficiais atualizados pela Administração daquele Estado, para que assim seja possível avaliar se vantajosa foi ou não a retomada  para o Poder Público..

A respeito da situação carcerária brasileira, aduz Augusto Thompson:

A questão penitenciaria não tem solução “em si”, porque não se trata de um problema “em si”, mas parte integrante de outro maior, a questão criminal, com referência ao qual não desfruta qualquer autonomia. A seu turno a questão criminal nada mais é que mero elemento de um outro problema mais amplo: o das estruturas sócio-político-econômicas. Sem mexer nessas, coisa alguma vai alterar-se em sede criminal e, menos ainda, na área penitenciária[261]

Infelizmente, a solução do impasse ainda tardará a ser definida, especialmente, por carece-se, por ora, de dados mais apurados e estudos mais efetivos nesse campo. Indiscutivelmente, se percebe que enquanto se travam discussões se positiva e/ou negativa é a participação do ente privado no sistema penitenciário, as situações das carceragens brasileiras permanecem vergonhosamente ultrajantes, sem qualquer perspectiva, a curto ou médio prazo, de mudança ou aprimoramento.  

4.3 Posicionamentos doutrinários a respeito da Privatização da Execução Penal no Brasil: Favoráveis e Contrários

4.3.1 Posicionamentos Favoráveis:

Os favoráveis à incursão da iniciativa privada defendem o fracasso do Estado através dos tempos como detentor do monopólio da execução penal. Sustentam que a atuação particular tem por primado a excelência em agilidade na prestação do serviço, visto que não está adstrita à morosidade e formalidades de estilo características do ente público. Pelo contrário, seria de interesse da empresa demonstrar o zelo e eficiência, não apenas para “garantir a manutenção do contrato, como também para receber credibilidade pública”[262].

Edmundo de Oliveira, talvez o principal defensor brasileiro da inserção do ente privado na rotina penitenciária, refere que “dizer não à privatização, precipitadamente, é concordar com o caos instalado em prisões que são verdadeiras universidades do crime”[263].

Júlio Fabbrini Mirabete destaca a inexistência de quaisquer óbices ou a necessidade de alteração legislativa para viabilizar a execução material pela iniciativa privada por ocasião da aplicação da pena privativa de liberdade[264]. Ademais, a competência jurisdicional e as atividades de competência administrativa do Estado mantém-se soberanas, sendo essas indelegáveis de todo modo[265].  Assim, a interação do particular é admitida através da privatização, para com a assistência material de saúde, jurídica, educacional, social e religiosa do apenado, consubstanciadas nos artigos 5º ao 9º do mesmo diploma, bem comofomento ao trabalho dos condenados, forte nos artigos 26 a 37 da Lei de Execução Penal[266].

Nesta senda, de acordo com Carlos José de Souza Guimarães, a privatização em nada alteraria a responsabilidade estatal. Ou seja, o Estado, enquanto único detentor do direito de punir e a quem compete processar o acusado, permaneceria, sem qualquer alteração de seu status quo, mantendo a sua égide e responsabilidade pelas garantias constitucionalmente firmadas ao apenado[267].  

Mauro Bley Pereira Júnior, ao destacar a Lei n.º 7.210/84, Lei de Execução Penal, não veda que a gerência dos estabelecimentos penais seja realizada por empresas privadas, não sendo legalmente consubstanciada a gestão exclusivamente pública das unidades prisionais[268]. Segundo o autor, da leitura da lei em comento “deduz-se, assim, que há possibilidade legal para a intervenção privada dos presídios”[269]. Ainda, salienta a impossibilidade de serem os apenados expostos às condições defasadas, e aos efeitos devastadores das carceragens, mormente diante da perspectiva de que iniciativa particular possa viabilizar planos de recuperação mais eficazes que o oferecido pelo ente público. Ademais, o lucro tido com a prestação do trabalho “não pode ser observado como imoral, desde que respeitadas as garantias individuais dos presidiários”[270]

Laurindo Dias Minhoto destaca que aqueles que advogam pela privatização apostam no sucesso do que o autor denomina “fertilização cruzada”[271]. Por ela se estabelece um diálogo de fontes entre o ente público e a iniciativa privada, possibilitando para ambas, interação e benefício, ensejados pela absorção de técnicas e práticas de gestão de uma a outra, simultaneamente.

A respeito do trabalho produtivo do detento, na modalidade privatizada, discorre Edmundo de Oliveira que se permitiria a geração e conversão de recursos em benefício do próprio sistema, bem como a manutenção dos presos[272].

Igor de Mesquita Pípolo destaca a benéfica adoção da privatização, tendo em vista a promoção  ao detento das condições mais favoráveis de que as oferecidas pelo Estado, assim proporcionando “uma expectativa plausível de diminuição das taxas de reincidência e, conseqüentemente, da violência dentro e fora dos presídios”[273].

4.3.2 Posicionamentos Contrários

Aqueles severamente contrários à inserção do ente privado sustentam a existência de obstáculos éticos, jurídicos e políticos para tal. Nesse prisma,  pontua João Marcello de Araújo Júnior que “o Estado, seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista jurídico não está legitimado para transferir a uma pessoa física ou jurídica o poder de coação que é exclusivamente seu”[274].

Ao referir as disposições fixadas na Carta Magna, precipuamente no artigo 1º e incisos, Luís Fernando Camargo de Barros Vidal destaca a incompatibilidade tida entre essas e o propósito privatizador da execução penal, sobretudo tendo como bases norteadoras os princípios da soberania, do monopólio da força e da dignidade humana[275]. Segundo o autor, “a liberdade, e por conversão a privação da liberdade, é de tutela indeclinável do Estado”[276], considerando totalmente inadequada a fixação do conceito de atos executivos materiais para justificar o ideário privatizador. [277]  

Tal posicionamento é corroborado por Rômulo de Andrade Moreira, quando refere a impossibilidade do uso da força de coação a outrem pelo particular, sendo tão-somente válido em situações pontuais e excepcionais, tais como a prisão em flagrante ou o uso imediato permitido, uma vez que exclusivamente “tal munus cabe à Administração Pública”[278].

Ademais, as funções de segurança pública e de justiça, estão segundo Pedro Armando Egydio de Carvalho, “na lista dos atributos indeclináveis do Estado[279], não podendo ser sua prestação, mesmo que deficitária conferida à iniciativa privada como medida destinada a eficiência. Destaca o fato de que as empresas por suas naturezas, seriam incapazes de equalizar da melhor forma “a delicada tensão entre o império da lei penal e a pessoa que deve cumprir certo gravame determinado pelo juiz”[280].

Ainda, críticos como Erivan Santiago França Filho explicitam a inconstitucionalidade da pretensão privatizadora no que diz respeito à atividade laboral do sentenciado gerenciada por empresas privadas. Ademais, tal posicionamento, segundo o referido autor, encontra respaldo na negativa ao trabalho prisional nesses moldes, afirmando trata-se de “exploração do trabalho do preso para custear as despesas do estabelecimento e do negócio como um todo e, partindo daí, o principal: o lucro, a ganância, o capital”[281].

Em outras palavras, sustenta o autor  a incidência do trabalho escravo, que caso admitido fosse, feriria o disposto no artigo 34 da Lei de Execução Penal[282], bem como o artigo 6º, inciso III, letra “a”, da Convenção Americana dos Direitos Humanos, que firma entendimento de que os serviços prestados pela pessoa reclusa devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas.

Analisando a questão pelo prisma da atividade laboral, o ideário da privatização seria vindoura e rentável fonte de lucrativa aos empresários e investidores em potencial, os quais enriqueceriam mediante sofrimento e castigo do apenado. Através da exploração da mão-de-obra carcerária, a baixos custos e sem obrigação de quaisquer encargos sociais ou trabalhistas[283], a iniciativa privada passaria a auferir vantajosas cifras.

Ainda, cumpre destacar a disposição da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 14, o qual é colaciona-se in verbis:

Artigo 14. Todos os cidadãos têm direito de constatar, por eles mesmos ou por seus representantes, a necessidade de contribuição pública de consentir livremente, de seguir seu emprego e de determinar a quantidade, a distribuição, sua cobrança e duração.

Tabulando argumentos contrários à privatização, Edmundo de Oliveira explicita o temor daqueles que sustentam a possibilidade de que o controle das penitenciárias sejam conferidas a “empresas particulares controladas por segmento do crime organizado”[284]. De acordo com tal compreensão, a privatização seria a porta de acesso para que esses grupos passassem a ter poder de mando na estrutura das penitenciárias, concessão de benefícios, ou seja, a execução da pena sob o crivo dos próprios detentos. Ademais, a privatização importaria na perda da isonomia entre os sentenciados, tendo em vista que as empresas privadas não admitiriam detentos com alto grau de periculosidade, cabendo a custódia desses ao Estado, sobrevindo uma sobrecarga de dificuldades à Administração. 

Reforça o entendimento contrário Fernando Schimidt de Paula, acrescenta que o objetivo a priori da administração penitenciária é o combate ao crime e a conseqüente recuperação do sentenciado. Assim, a criminalidade não pode servir de vetor gerador de lucros, visto que se descaracterizaria a funcionalidade da pena, mesmo porque não seria do interesse da empresa a diminuição da população carcerária, o que decorreria na diminuição de seus ganhos[285].

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Sobre a autora
Jianine Simões Rodrigues

Advogada, inscrita junto ao quadro da OAB/RS Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Pós-graduanda em Gestão Pública - Fundação Escola do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Jianine Simões. Privatização do sistema penitenciário brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3462, 23 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22979. Acesso em: 22 nov. 2024.

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