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A presunção de paternidade na união estável

04/12/2012 às 15:03
Leia nesta página:

Ao fazer referência expressa à presunção de filiação durante a constância do casamento, o legislador perdeu a oportunidade de garantir idêntica proteção aos filhos nascidos durante a constância de uma união estável.

O artigo 1.597, incisos I ao V, do Código Civil de 2002, previu 05 (cinco) hipóteses de presunção de paternidade dos filhos concebidos na constância do casamento. Este dispositivo é o que a doutrina chama de presunção pater is est. Para melhor entendimento, vale transcrever sua redação:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

O dispositivo em testilha, ante sua objetividade textual, não traz maiores questionamentos. De outro lado, peca por dizer menos do que deveria, ao menos sob o viés constitucional de proteção à família e à criança.

Quer-se dizer que, ao fazer referência expressa à presunção de filiação durante a constância do casamento, o legislador perdeu a oportunidade de garantir idêntica proteção aos filhos nascidos durante a constância de uma união estável. Desta forma, há aparente tratamento desigual em situações iguais. Diz-se aparente porque, numa interpretação do dispositivo em comento, sob filtragem constitucional, a presunção deve incidir em ambas as situações, sob pena de cometer-se odiosa injustiça.

Basta a análise do seguinte exemplo para se enxergar a necessidade da aplicação do artigo 1.597 do Código Civil às uniões estáveis. Imagine-se que uma mulher viveu em união estável - comprovada por escritura pública lavrada no tabelionato de notas -  por dez anos com seu companheiro, o qual faleceu e deixou três filhos em comum. Dos três filhos, dois foram reconhecidos e registrados sob a paternidade do finado. O mais novo, porém, nascido um dia antes do falecimento do pai, não teve sua paternidade registrada. Se esta mulher fosse casada com o falecido, quanto a paternidade não haveria maiores problemas, pois, por influxo de expressa disposição legal, o fato se adequaria à hipótese normativa abstratamente prevista. Todavia, como no exemplo dado a mulher não mantinha vínculo matrimonial com o falecido, poderia ser sustentado que diante da falta de previsão legal seria necessário o ajuizamento de ação de investigação de paternidade post mortem. Entretanto, como adiante se verá, esta não é a solução adequada.

A Constituição da República de 1988 conferiu tratamento ímpar à família e, expressamente, elegeu a união estável à condição de entidade familiar, senão, veja-se:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

A leitura do dispositivo acima conduz o intérprete à conclusão de que o casamento e a união estável devem receber idêntica proteção estatal. E a conclusão não poderia ser distinta, uma vez que ambos são espécies do gênero instituição familiar. Tamanha é a importância da união estável que o legislador constituinte, prevendo a possibilidade do intérprete fazer distinções de tratamentos irrazoáveis entre o casamento e a união estável, previu explicitamente em relação a esta a proteção do Estado.

Veja que a previsão contida no § 3º em relação à proteção estatal da união estável não se repetiu em relação ao casamento, embora pareça óbvio que o casamento indiscutivelmente receberá a proteção do Estado. Pensamos que ao legislador constituinte pareceu que a obviedade da proteção conferida ao casamento poderia não se repetir quando do trato da união estável. Por isso, com o fim de não deixar margens às dúvidas, foi expresso e claro.

A proteção à família insculpida no texto constitucional vai ao encontro da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Observe-se que somente haverá dignidade se todas as formas de arranjos familiares forem reconhecidos e protegidos pelo Estado. O princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, abre o conceito de família(s).

Sem a pretensão de adentrar nos diversos arranjos familiares (socioafetivo, homoafetivo, monoparental, anaparental, pluriparental etc), que não são o enfoque desta breve análise, vamos nos delimitar à união estável formada entre homem e mulher. A união estável é definida pelo artigo 1.723 do Código Civil nos seguintes moldes:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

Deflagra-se da norma acima que a união estável, sob o prisma sociológico, identifica-se com o casamento. Ora, se o cotidiano da nossa sociedade demonstra que no plano fático a união se equipara ao casamento, posto que é configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, não cabe ao legislador, muito menos ao exegeta, negar esta realidade.

Não cabe ao intérprete negar aquilo que o legislador constituinte expressamente determinou, ou seja, a proteção tanto do casamento quanto da união estável.

Importante considerar que não é a formalidade do casamento que faz presumir filiação, mas sim a situação fática, a coabitação do casal. Tanto é verdade que a presunção de filiação permanece intacta ainda que o casamento venha a ser declarado nulo ou se trate de casamento putativo.

Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos até o dia da sentença anulatória.

§ 1o Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só a ele e aos filhos aproveitarão.

§ 2o Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos civis só aos filhos aproveitarão.

E se o legislador optou por dar maior proteção à situação fática no casamento, mesmo raciocínio deve ser empregado em relação à união estável. É por isso que onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito. Portanto, se há a presunção legal da paternidade no casamento, não há motivos para que esta regra não incida sobre a união estável.

Ao discorrer sobre a possibilidade de presunção legal de paternidade na união estável, leciona Paulo Luiz Netto Lôbo que:

Ainda que o artigo sob comento refira-se à "constância do casamento", a presunção de filiação, paternidade e maternidade aplica-se integralmente à união estável. A redação originária do projeto do Código Civil de 2002 reproduziu a equivalente do Código de 1916, que apenas contemplava a família constituída pelo casamento e a filiação legítima, não tendo sido feita a atualização pelo Congresso Nacional ao disposto no art. 226 da Constituição Federal (AZEVEDO, Álvaro Villaça (coordenador). Código Civil Comentado: Direito de Família, Relações de Parentesco, Direito Patrimonial – artigos 1.591 a 1.693. 15 v. São Paulo: Atlas, 2003. p.59).

A análise de Paulo Lôbo sobre a origem do texto legal denota que o legislador infraconstitucional, ainda apegado aos vetustos valores da nossa sociedade passada, não trouxe ao Código Civil a roupagem constitucional merecida. Aliás, diga-se de passagem, há inúmeros dispositivos espraiados no dito código que certamente serão alterados por projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional, com o escopo de adequa-lo à nossa realidade.

É preciso fazer uma interpretação da lei conforme a Constituição da República.

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Mais grave ainda do que deixar a união estável desguarnecida, a interpretação que nega a presunção legal da paternidade à união estável deixa desprotegida a criança fruto deste relacionamento.

Não há a menor dúvida de que a ratio do artigo 1.597 do Código Civil não é a proteção ao casamento, mas sim à prole. O objetivo é garantir que esta criança não fique sem um pai reconhecido e que este reconhecimento de paternidade seja feito sem burocracia e questionamentos. A paternidade é relativamente presumida. Relativa porque admite prova em contrário, que deverá ser produzida por quem alegar estado contrário à presunção legal.

Perceba-se que o foco legal é justamente evitar que a criança, que foi concebida durante o período de convivência entre seus genitores, seja submetida a um longo e tormentoso processo judicial de investigação de paternidade.

Do mesmo modo que a união estável, a proteção à criança tem status constitucional e cabe à família, à sociedade e ao Estado efetivar esta proteção com prioridade absoluta.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Atento a questão que aqui discutimos, o Superior Tribunal de Justiça publicou recentemente acórdão enfrentando esta matéria. No caso concreto, reconheceu a presunção da paternidade de prole concebida na constância de união estável.

DIREITO CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. PRESUNÇÃO DE CONCEPÇÃO DE FILHOS. A presunção de concepção dos filhos na constância do casamento prevista no art. 1.597, II, do CC se estende à união estável. Para a identificação da união estável como entidade familiar, exige-se a convivência pública, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família com atenção aos deveres de lealdade, respeito, assistência, de guarda, sustento e educação dos filhos em comum. O art. 1.597, II, do CC dispõe que os filhos nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal presumem-se concebidos na constância do casamento. Assim, admitida pelo ordenamento jurídico pátrio (art. 1.723 do CC), inclusive pela CF (art. 226, § 3º), a união estável e reconhecendo-se nela a existência de entidade familiar, aplicam-se as disposições contidas no art. 1.597, II, do CC ao regime de união estável. Precedentes citados do STF: ADPF 132-RJ, DJe 14/10/2011; do STJ: REsp 1.263.015-RN, DJe 26/6/2012, e REsp 646.259-RS, DJe 24/8/2010. REsp 1.194.059-SP, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 6/11/2012.

Por fim, é importante lembrar que para que haja a presunção da paternidade e o registro do nascimento independentemente do ajuizamento da ação de investigação de paternidade, imprescindível que haja prova pré-constituída da união estável, sob pena do ordenamento deixar margens ao cometimento de fraudes.

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Sobre o autor
Rafael de Souza Miranda

Defensor Público do Estado de São Paulo. Membro do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Coordenador Regional da Escola da Defensoria Pública – Regional Mogi das Cruzes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Rafael Souza. A presunção de paternidade na união estável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3443, 4 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23155. Acesso em: 28 mar. 2024.

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