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O decreto legislativo como instrumento de controle da atividade normativa das agências reguladoras

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11/01/2013 às 11:53
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4. O decreto legislativo como elemento do processo legislativo constitucional

A ordem jurídica deriva da Constituição e os atos de nível inferior retiram da Carta Constitucional sua legitimidade.  FERREIRA FILHO[77] afirma que da Carta Constitucional “derivam outros atos que podem ser ditos primários, porque são os que, em sua eficácia, aparecem como o primeiro nível dos atos derivados da Constituição”. Caracterizam-se por serem atos fundados unicamente na Constituição. 

A própria Constituição explicita quais são esses atos normativos de primeiro nível. O art. 59 da Constituição relaciona as espécies normativas primárias, portanto capazes de inovar na ordem jurídica, passíveis de serem produzidas pelo processo legislativo federal[LXIV]. A norma define em numerus clausus como atos normativos primários: as emendas constitucionais (art. 60); as leis ordinárias e complementares (arts. 61, 63 a 67 e 69); as leis delegadas (art. 68); as medidas provisórias (art. 62); os decretos legislativos e as resoluções.

Existe hierarquia apenas entre as emendas constitucionais e os demais tipos de atos normativos relacionados no suso art. 59. Entre as demais espécies normativas não existe hierarquia, mas reserva de matéria. Assim, uma lei ordinária não pode tratar de matéria afeita à lei complementar, não por ser inferior hierarquicamente, mas porque a Constituição exige para aquela matéria lei complementar, que possui quórum de aprovação especifico.

O texto constitucional define o rito de elaboração e a reserva de matéria de cada um desses atos normativos primários, a exceção das resoluções e dos decretos legislativos. AFONSO DA SILVA[78] ensina que o decreto legislativo é prioritariamente destinado aos atos do Parlamento que tenham efeitos externos com o fito de regular matéria de competência do Congresso Nacional e de suas Casas. Na mesma linha, MORAES[79] escreve que os decretos legislativos são atos normativos primários veiculadores da competência exclusiva do Congresso Nacional, cabendo ao Parlamento discipliná-lo, pois o seu rito não é tratado pela Constituição.

No dizer de Afonso da SILVA[80], a diferença entre a competência “exclusiva” e a competência “privativa” é que aquela é indelegável e esta, ao contrário, é delegável. Alerte-se, no entanto, que o mencionado doutrinador reconhece que falta rigor técnico à Constituição nesse assunto. Logo, a definição se a competência atribuída é privativa ou exclusiva decorre muito mais de sua materialidade do que do texto constitucional.

Coerentes com essa posição, os Regimentos Internos das duas Casas do Congresso Nacional disciplinam o rito e as matérias a serem veiculadas pela via do decreto legislativo. Assim, na forma do art. 109 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados[LXV] e do art. 213 do Regimento Interno do Senado Federal[LXVI], o decreto legislativo é a espécie normativa que tem como conteúdo as matérias de competência exclusiva do Congresso Nacional, especialmente as previstas no art. 49 da Constituição. Ainda conforme os mencionados Regimentos Internos, o projeto de decreto legislativo pode ser apresentado por qualquer deputado, senador ou comissão de qualquer das Casas do Congresso Nacional, quando não seja de iniciativa privativa da Mesa Diretora ou de outro colegiado específico.

Quanto ao rito, o RICD e o RISF estabelecem que a proposta de projeto de decreto legislativo tramita igual a qualquer projeto de lei ordinária, devendo ser examinado e aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal por maioria simples[LXVII]. Observe-se, porém, que o decreto legislativo não está sujeito à sanção do Presidente da República, pois é expressão da competência exclusiva do Congresso Nacional. Assim, aprovado nas duas Casas ele entra em vigor tão logo promulgado pelo Presidente do Congresso Nacional.

O decreto legislativo possui duas características básicas que o distinguem. Primeiro, diferentemente do decreto do Chefe do Poder Executivo, que é ato normativo secundário, o decreto legislativo é ato normativo primário e não está subordinado à lei. Pode assim criar direito novo, inovar no mundo jurídico. Segundo, a lei e o decreto legislativo estão posicionados no mesmo degrau formal da hierarquia do ordenamento jurídico. O que os diferencia é a reserva de matéria de cada um. Nesse sentido, Ribeiro BASTOS[81] leciona que o decreto legislativo possui a mesma força hierárquica da lei, sendo certo, contudo, que um não revoga o outro, porque têm campos materiais próprios não existindo, portanto, área comum onde possam atuar e, assim, chocar-se.

O decreto legislativo é utilizado para, dentre outros objetivos, ratificar atos internacionais; sustar atos normativos do Executivo; julgar anualmente as contas prestadas pelo Chefe do Poder Executivo; autorizar o Presidente da República e o Vice-Presidente a se ausentarem do país por mais de 15 dias; apreciar a concessão de emissoras de rádio e televisão; autorizar a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas; e para regular as relações jurídicas decorrentes da reprovação de medida provisória, conforme o art. 62 da Constituição[LXVIII].

Observe-se, contudo, que, no decreto legislativo que susta regulamento do Poder Executivo, o Parlamento atua como legislador negativo, semelhante ao que ocorre com o STF na declaração de inconstitucionalidade[LXIX], protegendo e defendendo sua competência constitucional contra investidas do Executivo.

Logo, o decreto legislativo aprovado com amparo no inciso V do art. 49 da Constituição inova no sistema jurídico não para criar direito, mas antes para afastar normas extraídas de atos normativos do Poder Executivo.


5. O decreto legislativo como instrumento de controle da atividade normativa do Poder Executivo

A Constituição reservou ao Poder Legislativo, como órgão da soberania Estatal e delegado da vontade popular, a função legislativa, que é essencialmente política e que se subdivide em três subfunções: a legislativa, como centro emanador de normas; a representativa, que decorre da escolha do Constituinte pelo modelo estado democrático de direito; e a fiscalizadora, por meio da qual exerce a crítica dos atos do Poder Executivo e a defesa do interesse coletivo.

A Constituição definiu que as normas de auto-organização, de funcionamento do processo legislativo, no âmbito das Casas do Parlamento e das demais competências constitucionais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, aí incluídas as de fiscalização, estariam previstas nos respectivos Regimentos Internos.

O regimento interno é, por definição, o conjunto de normas editadas nas quais estão disciplinadas o gerenciamento, o trâmite e a conduta das entidades.

O STF reconhece a soberania de pronunciamentos e de deliberações como competência constitucional discricionária exclusiva do Poder Legislativo. Assim, os Regimentos Internos extraem sua competência diretamente da Constituição e, por isto, têm status hierárquico próprio. O STF tem proclamado que as normas do RICD e RISF são imunes à crítica judiciária, pois se circunscrevem no domínio interna corporis[82].

A Constituição estabelece que é atribuição exclusiva do Congresso Nacional zelar pela preservação de sua competência legislativa, em face da atribuição normativa dos outros Poderes[LXX].Essa atribuição permite ao Parlamento sustar os atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa[LXXI].

Destaque-se que a prerrogativa de sustar os atos normativos do Poder Executivo esteve presente também na Constituição de 1934, no art. 91[LXXII], que permitia ao Senado Federal examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Executivo, e suspender a execução dos dispositivos ilegais.

Trata-se do poder/dever de exercer o controle político de constitucionalidade dos atos normativos do Poder Executivo. Conforme estabelecido anteriormente, não se admite o manejo da competência dos incisos V e XI do art. 49, em razão de ato político administrativo de efeito concreto, desprovido de atributos de abstração, generalidade ou normatividade e destinados a disciplinar relações jurídicas em abstrato.

O Parlamento recebeu dos cidadãos não só o poder de representação política e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes do Estado, respeitados nesse processo de fiscalização, os limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição Federal[83].

No caso do inciso V do art. 49, resta claro tratar-se de competência exclusiva, pois o poder/dever do Poder Legislativo de controlar os atos do Executivo, suspendendo-lhes a eficácia normativa, decorre do sistema de checks and balances[LXXIII] previsto na Constituição.

A norma exige a presença de duas circunstâncias para atrair a competência do Parlamento, a saber: que o ato tenha conteúdo normativo e que tenha ocorrido o desbordamento do poder regulamentar ou dos limites da delegação conferida ao Poder Executivo.

Concernentemente a definição dos atos administrativos normativos que ultrapassam o limite do poder regulamentar, a ultra vires doctrine[LXXIV] (doutrina ultra vires) do direito norte-americano defende que o exercício do poder administrativo é ultra vires[LXXV] não só se não autorizado em substância, mas também quando é formalmente irregular, impropriamente motivado, ou viola regras de direito natural

  O RICD e o RISF estabelecem que o decreto legislativo é o instrumento legal adequado para sustar os efeitos normativos de ato do Poder Executivo, da Administração Pública direta e indireta, aí incluída, por óbvio, os atos das Agências Reguladoras.

O STF já decidiu que o abuso do poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Poder Executivo atua contra legem ou praeter legem, expõe o ato transgressor ao exercício, pelo Congresso Nacional, da competência exclusiva que lhe confere o art. 49, inciso V, da Constituição[84].

Entende a excelsa Corte que o decreto legislativo também expressa função normativa tal qual a lei, apesar de limitar-se materialmente à suspensão da eficácia de ato oriundo do Poder Executivo[85].

A competência conferida ao Congresso Nacional só deve ser utilizada em atos de natureza normativa, independente do nomem iuris adotado. Assim, qualquer que seja o tipo de ato, deve-se examiná-lo para identificar a existência dos atributos da impessoalidade e da generalidade abstrata que lhe conferem a natureza normativa autônoma.

Isso porque não se admite a sustação de ato administrativo concreto e sem conteúdo normativo, sob pena de inconstitucionalidade por quebra do princípio da separação dos Poderes. Os atos estatais de efeitos concretos não são passíveis de fiscalização, em tese, quanto à sua legitimidade constitucional. “No controle abstrato de normas visa-se, tão somente, à tutela de ordem constitucional, sem vinculações quaisquer a situações jurídicas de caráter individual ou concreto”[86].

No julgamento do RE 486.748/PI, cujo Relator foi o Ministro Menezes Direito, a 1º Turma do STF, por maioria, decidiu que é inconstitucional o decreto legislativo que susta ato jurídico perfeito. No caso, o decreto legislativo estadual anulou a adesão de servidores ao Programa de Demissão Voluntária (PDV), por vislumbrar coação nos desligamentos, e determinou a reintegração dos mesmos ao serviço público. No caso, STF decidiu que o decreto legislativo não poderia prosperar, porquanto invadira a competência específica do Poder Executivo que dá cumprimento à legislação própria instituidora desse programa especial de desligamento espontâneo. Ademais, enfatizou-se que, na presente situação, o Poder Legislativo estadual praticara ato próprio do Poder Judiciário ao reconhecer que teria havido coação, independentemente da provocação dos interessados.

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Também no julgamento de medida cautelar na ADI 834/MT, quando se analisou a possibilidade da edição de Decreto Legislativo para sustar concorrência instaurada pelo Poder Executivo, o STF externou o entendimento de que o Decreto legislativo que susta a realização de licitação pública convocada pelo Estado, ainda que formalmente legislativo, não se impregna de essência normativa, precisamente porque seu conteúdo veicula determinação materialmente administrativa. Em razão disso a Corte concedeu a medida cautelar, com base na “necessidade de preservar a incolumidade da ordem politica local e de manter, no plano jurídico-institucional, a harmonia e a independência entre os Poderes Executivo e Legislativo do Estado-membro.”[87]

 Ao analisar os regulamentos e as exigências da legalidade, ROMAN assevera que é preciso distinguir os conceitos e o regime jurídico do ato administrativo e do regulamento. Segundo ROMAN a distinção mais obvia é que o ato administrativo é mera aplicação do ordenamento e o regulamento forma uma parte secundária do ordenamento jurídico. “O ato administrativo é concreto, pessoal e individualizado; o regulamento é geral, impessoal e abstrato.” 97 ROMAN acrescenta que não se deve confundir ato administrativo e função administrativa, ou competência para editar regulamentos. O regulamento é norma de direito objetivo e o ato administrativo não. “O regulamento, portanto, integra o ordenamento jurídico objetivo, enquanto o ato administrativo não. O regulamento e abstrato e tem eficácia erga omnes, já o ato administrativo, não”.[88]

No julgamento da ADI 1.552/DF, proposta pelo Governador do DF contra o Decreto Legislativo nº 111/96, da Câmara Legislativa do DF, que sustou o Decreto nº 17.128/96, o qual regulamenta o teto remuneratório dos servidores públicos locais, o Ministro Marco Aurélio, assinalou que o decreto legislativo só pode sustar o ato normativo que contraria a lei, não estender-se ao controle do ato normativo que ataque diretamente a Constituição.

5.1. Os atributos do ato normativo

A melhor técnica para identificar se um ato possui atributos normativos é utilizar os elementos já sedimentados pelo STF na jurisprudência, para efeito de controle concentrado de constitucionalidade, pois tanto o Poder Legislativo quanto o Judiciário agem na declaração de inconstitucionalidade e na sustação de atos do Poder Executivo, respectivamente, como legislador negativo.

Nesse sentido, a Corte firmou entendimento de que o ato passível de ser examinado pelo STF quanto à sua constitucionalidade deve, além da autonomia jurídica da deliberação estatal, possuir coeficiente de generalidade abstrata e de impessoalidade.

No julgamento da ADIn nº 643, o Ministro CELSO DE MELLO pontificou que o controle concentrado de constitucionalidade tem uma só finalidade, qual seja: propiciar o julgamento, em tese, da validade de um ato estatal de conteúdo normativo, em face da Constituição, viabilizando, assim, a defesa objetiva da ordem constitucional. Para tanto, o Ministro ensina que não se tipificam como normativos os atos estatais desvestidos de abstração, generalidade e impessoalidade, não importando a forma. No caso da ADIn nº 643, o Ministro CELSO DE MELLO não enxergou atributos normativos porque, não obstante formalmente legislativo, o ato impugnado atuou como “instrumento concretizador da translação dominial dos bens móveis que enuncia, definindo, em sua extensão subjetiva, o único destinatário desse gesto de liberdade estatal: uma entidade de classe revestida de personalidade de direito privado.”[89]

Esse mesmo entendimento foi reiterado no julgamento da ADIn n.º 842[90], quando o Ministro CELSO DE MELLO reafirmou que o objeto “do controle normativo abstrato, perante a Suprema Corte, são, em nosso sistema de direito positivo, exclusivamente, os atos normativos federais, distritais ou estaduais. Refogem a essa jurisdição excepcional de controle os atos materialmente administrativos, ainda que incorporados ao texto de lei formal”.

No julgamento da ADI 1937 MC-QO, o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, Relator, reafirmou que é da jurisprudência do STF que só constitui ato normativo idôneo a submeter-se ao controle abstrato da ação direta aquele dotado de um coeficiente mínimo de abstração ou, pelo menos, de generalidade.

Cite-se como exemplo o julgamento da ADI nº 2.321-MC/DF[91] contra Resolução do TSE que reconheceu o direito dos servidores ativos e inativos da Secretaria da Corte Eleitoral à diferença de 11,98% em sua remuneração, oriunda da conversão em URV dos valores expressos em cruzeiros reais. Naquela assentada, o STF decidiu que a abstração, a generalidade, a autonomia e a impessoalidade “qualificam-se como requisitos essenciais que conferem, ao ato estatal, a necessária aptidão para atuar, no plano do direito positivo, como norma revestida de eficácia subordinante de comportamentos estatais ou de condutas individuais.” No mesmo sentido examine-se a ADI n° 2.195/MT[92].

O julgamento da ADPF nº 186, por sua vez, é o maior exemplo da pouca importância que o STF dá ao nomem iuris do ato impugnado. Nesse decisum a Corte reconheceu conteúdo normativo na Ata da Reunião Extraordinária do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNB, realizada no dia 6/6/2003, e no Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial, que resultaram na instituição de cotas raciais na UNB.

Destaque-se que, no direito comparado, a noção de ato normativo sujeito ao controle de constitucionalidade também é ampliada. Com efeito, o Tribunal Constitucional Português há muito abandonou o conceito puramente formal de lei e desenvolveu uma acepção mais ampla de norma, simultaneamente formal e funcional, por ele designado de conceito de norma funcionalmente adequado. O respectivo alcance foi precisado na jurisprudência do Tribunal, como é exemplo o Acórdão n.º 26/85[93].

O Tribunal Constitucional Português entende, na aplicação desta nova concepção de norma, que o controle de um ato jurídico depende da verificação cumulativa de alguns requisitos: primeiro, a sua natureza prescritiva, designadamente, a fixação de uma regra de conduta ou de comportamento; em segundo lugar, o seu caráter heterônomo; em terceiro, o seu caráter vinculativo, ou seja, seu conteúdo obrigatório.

Assim, segundo a jurisprudência da Corte Portuguesa, podem ser objeto de controle de constitucionalidade variados tipos de atos normativos. Para além das normas públicas compreendidas num sentido tradicional (regras de conduta gerais e abstratas, vinculativas e editadas por entidades públicas), podem ter sua constitucionalidade aferida outros atos jurídicos públicos de efeito externo vinculativo de caráter individual e concreto e mesmo as normas produzidas por entidades privadas no exercício de um poder normativo público[LXXVI].

Assim, qualquer ato do Poder Executivo dotado de abstração, imperatividade e normatividade pode ser sustado pelo Congresso Nacional pela adoção de decreto legislativo.

Ressalte-se que não podem ser sustados pelo Congresso Nacional os atos políticos de governo, as decisões jurisdicionais, os atos administrativos de efeitos concretos, os atos jurídicos de direito privado das empresas públicas e das sociedades de economia mista, tal como os contratos e as decisões de caráter privado, ainda que contrários à Constituição.

Quanto aos efeitos do decreto legislativo, entende-se que se destina a sustar as consequências jurídicas do ato e não a revogar o ato em si. Em razão do princípio da separação dos poderes, não poderia o Parlamento extinguir do mundo jurídico ato de competência exclusiva do Poder Executivo.

5.2. Efeitos da sustação pelo decreto legislativo

A competência prevista no inciso V do art. 49 da Constituição é uma espécie de controle de constitucionalidade político repressivo, ou a posteriori. Assim, o decreto legislativo inibe as consequências jurídicas do ato impugnado desde o seu nascedouro, com efeitos ex tunc e erga omnes, tal como ocorre na declaração de inconstitucionalidade pelo STF em sede de controle concentrado.

O controle de constitucionalidade no sistema brasileiro comporta duas dimensões, uma preventiva e outra repressiva.

A preventiva, também designada controle político ou controle a priori, é realizada pelo Congresso Nacional, pelo Chefe do Poder Executivo e, eventualmente, pelo STF. Esse controle destina-se a impedir o ingresso no sistema jurídico de normas consideradas inconstitucionais. Nessa hipótese o ato legislativo está inacabado e não surte qualquer efeito jurídico. MORAES ensina que o controle de constitucionalidade preventivo político, é aquele realizado durante da elaboração de qualquer espécie normativa, visando impedir que um projeto de Lei inconstitucional venha a ser promulgado. Segundo o autor pode-se vislumbrar duas hipóteses de controle preventivo de constitucionalidade, as comissões de constituição e justiça e o veto jurídico.[94]

A Câmara dos Deputados e o Senado Federal realizam um controle prévio de constitucionalidade por intermédio das respectivas comissões permanentes de constituição e justiça[LXXVII] às quais incumbe examinar as proposições e decidir quanto a juridicidade e a constitucionalidade de cada uma. A decisão das respectivas comissões é terminativa, ou seja, se a comissão decidir pela inconstitucionalidade a propositura vai ao arquivo.

O Chefe do Executivo realiza o controle prévio de constitucionalidade quando exercita o poder de veto a projeto de lei que considere inconstitucional, com base na competência prevista no inciso V do art. 84 c/c § 1º do art. 66, ambos da Constituição.

A outra dimensão do controle de constitucionalidade é a chamada repressiva, ou a posteriori, realizado principalmente pelo STF e eventualmente pelo Parlamento, destinada a atacar atos normativos em vigor considerados inconstitucionais. Nesse caso, a norma está produzindo efeitos jurídicos e o controle realizado pelo Poder Judiciário, na forma concentrada ou na forma difusa, e pelo Poder Legislativo visa reprimir e retirar os efeitos jurídicos da norma inconstitucional.

Conforme explanado no item 1.10 deste trabalho, em nossa opinião, o regulamento que exorbita do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa é, em última análise, inconstitucional. A exemplo do que ocorre no controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo STF, o Congresso realiza uma avaliação abstrata da norma, pois não há direito subjetivo individual tutelado, quando exerce a competência prevista no inciso V do art. 49 da Constituição de reprimir “os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. Por isso, os efeitos do inciso V do art. 49 são, em regra, ex tunc e erga omnes. A principal diferença é que o controle concentrado repressivo do Parlamento não pode ser exercitado em face de ato normativo primário.

Todavia, admite-se a possibilidade de modulação dos efeitos temporais do decreto legislativo que susta ato normativo do Poder Executivo, com base nas premissas da boa-fé e da segurança jurídica, por analogia ao art. 27 da Lei nº 9.868, de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF.[LXXVIII]

Destaque-se que o § 3º e o § 11 do art. 62 da Constituição, ao tratarem da hipótese de perda de eficácia ou rejeição de Medida Provisória, estabelecem que o Congresso Nacional edite Decreto Legislativo disciplinando as relações jurídicas decorrentes da aplicação do ato político-administrativo que perdeu a validade, seja por decurso de prazo, seja pela sua rejeição.

A Constituição, em respeito à boa-fé e à segurança jurídica, estabelece que as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a vigência de Medida Provisória continuem por ela regidos se não for editado o Decreto Legislativo a que se refere o mencionado § 3º, no prazo de até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia.

Muito embora este dispositivo trate especificamente da perda de eficácia ou da rejeição de Medidas Provisórias, entende-se que o Decreto Legislativo que susta ato normativo do Poder Executivo também pode conter cláusula específica que discipline as relações jurídicas decorrentes do ato sustado.

Sustar um ato normativo do Poder Executivo é exercitar o controle de constitucionalidade político repressivo. Implica atacar a validade do ato normativo porque este ultrapassou a sua competência constitucional. Consequentemente, ao aprovar o Decreto Legislativo previsto no inciso V do art. 49 da Constituição o Congresso Nacional retira a eficácia da norma desde a sua edição ou a partir da aprovação do decreto, se estiver previsto explicitamente a modulação dos efeitos temporais da sustação. Nessa última hipótese, permanecem válidos todos os atos e as relações jurídicas adotadas até a sustação do ato normativo.

Destaque-se que o inciso V do art. 49 da Constituição não é a única hipótese de controle político de constitucionalidade repressivo, pois a Carta prevê, ainda, no inciso X do art. 52, outra forma de controle político repressivo a posteriori. Com efeito, cabe ao Senado Federal, por intermédio de Resolução, “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva” do STF em sede de controle difuso. Nessa hipótese a Corte Constitucional atua no julgamento inter partes e não possui competência para retirar a executoriedade da norma, mas para tirar a eficácia no caso concreto.

É o Senado Federal quem confere efeito erga omnes à decisão proferida pelo STF no caso concreto, aproximando o controle difuso do controle concentrado[95]. Essa atribuição do Poder Legislativo é decorrência direta do princípio da separação dos poderes, pois o Senado Federal retira a eficácia da norma se lhe aprouver. Caso decida suspender a norma impugnada pelo STF, o conteúdo da resolução deve ater-se aos limites do julgamento pela Suprema Corte e a Resolução inibe as consequências jurídicas do ato impugnado desde o seu nascedouro, ou seja, com efeito ex tunc[96].

5.3. O déficit democrático das Agências Reguladoras

Democracia significa soberania popular e governo do povo. É o poder fundado na vontade da maioria, exercido por representantes legítimos. A Constituição brasileira de 1988, de forte viés democrático, garante uma série de direitos sociais, culturais e econômicos que, independentemente de serem autoaplicáveis ou não, expressam a necessidade de se estabelecerem políticas públicas destinadas a conferir-lhes efetividade.

As normas programáticas da Constituição indicam os fins sociais e econômicos que o Estado deve buscar. Essas normas têm por característica possuir baixo grau de densificação normativa, pois dizem respeito a planos e diretrizes futuras a serem implementados pelos governantes.  Sobre as normas programáticas, Pontes de Miranda[97] afirma que são "aquelas em que o legislador, constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses ditames. que são programas dados à sua função."

Barroso[98] ensina que, modernamente, é reconhecido às normas programáticas valor jurídico idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição, como cláusulas vinculativas, contribuindo para o sistema através dos princípios, dos fins e dos valores que incorporam. BAROSO[99] escreve, também, que as normas programáticas geram efeitos que atestam sua efetividade/concretização: “a) revogam os atos normativos anteriores que disponham em sentido colidente com o principio que substanciam; b) carreiam um juízo de inconstitucionalidade para os atos normativos editados posteriormente, se com elas incompatíveis."

As normas programáticas obrigam o Governo a definir suas políticas públicas tendo como pano de fundo o cenário político, econômico e social que se apresenta durante o período do mandato eletivo. Política pública nada mais é do que o conjunto de ações estabelecidas pelo Estado para materializar os direitos constitucionais da sociedade. Por isso, na democracia representativa como a brasileira, a definição da política pública a ser desencadeada está estritamente relacionada à escolha política feita pelos representantes dos cidadãos legitimamente eleitos para tal função.

Numa democracia representativa a ação política, ou a liberdade positiva, deve basear-se no voto. O representante eleito democraticamente deve constituir-se sob duas acepções: um agente cuja ação está sob o controle do povo; e um agente que reproduz as características do eleitor e, por isso, é capaz de substituí-lo ao agir. A legitimidade desse agente pressupõe que a sua ação se identifique com o desejo do povo, o que significa igualá-la à ação política dos próprios cidadãos.[100]

Os dirigentes das Agências Reguladoras não são eleitos e não possuem, por isto, legitimidade democrática para definir as políticas públicas. Assim, a atuação das Agências deve ser legitimada pela estrita vinculação do órgão às políticas públicas estabelecidas pelos agentes eleitos e legalmente constituídos para dirigir o Estado. Em suma, as Agências não têm legitimidade para traçar as políticas de Estado e estas (as políticas) são o marco limitador da atividade dos órgãos reguladores. Qualquer norma ou decisão regulatória que desborde esse limite é ilegítima.

O Ministro GILMAR MENDES, em palestra proferida no Seminário “As Agências Reguladoras”, organizado pela Escola de Magistratura Federal da 1ª Região (ESMAF) e pelo Centro de Memória Jurídica (MEMORY), afirma, com propriedade, estar convencido que o poder regulatório, em algumas áreas, é tão amplamente reconhecido que não se questiona se a norma regulatória está a observar um marco institucional determinado. Escreve o Ministro que “a clara violação de autorizações legislativas por parte do Poder Executivo, especialmente quando impõem obrigações, não se traduz apenas no descumprimento da lei. Na verdade, fere a própria Constituição, de forma elementar, a ideia de reserva legal. Então, não há como dizer que aqui estamos diante de uma questão tipicamente de legalidade.”

A falta de legitimidade dos dirigentes das Agências cria um flagrante déficit democrático, normalmente justificado pela premissa de que estes agentes reguladores são mais bem preparados, mais eficientes e tecnicamente superiores para lidar com as práticas sofisticadas dos mercados que regulam. Segundo os que defendem essa tese, permitir a participação de representantes dos usuários/consumidores prejudicaria a eficiência dos órgãos reguladores, pois não teriam experiência e conhecimentos especializados. Nada mais falso.

O caso mais patente dessa defasagem democrática e da necessidade de vinculação das Agências às políticas de Estado foi a chamada “crise aérea” ocorrida em 2007. Naquela oportunidade, a direção da ANAC ficou inviabilizada técnica e politicamente devido a várias omissões que redundaram na violação de direitos dos usuários de transporte aéreo. Em razão disso o Ministério da Defesa, utilizando o poder de supervisão ministerial, decidiu redirecionar a atuação da ANAC para conformá-la à nova política de Estado que estava sendo engendrada para o setor.

Como os diretores das Agências gozam de estabilidade nos mandatos, o Poder Executivo solicitou aos titulares dos cargos da diretoria que renunciassem, de maneira a permitir a reestruturação do órgão. Quatro dos cinco diretores atenderam ao pedido. O único a permanecer no cargo foi o Diretor-Geral. Devido a sua intransigência em renunciar, o Executivo ventilou a hipótese de editar uma Medida Provisória alterando a Lei da ANAC para extinguir o mandato dos diretores. O impasse só chegou ao fim depois de quase um ano, com a renúncia do então titular da Diretoria-Geral da ANAC.

A suposta especialização técnica não tornou mais segura e estável a prestação de serviços públicos. A lista das deficiências das Agências Reguladoras é longa. Blecautes, repetidos problemas nos serviços de telecomunicações, deficiências na infraestrutura, falta de modicidade tarifária e a sequência de falhas regulatórias marca a atuação das Agências e são exemplos do fracasso técnico dos Órgãos reguladores.

As Agências Reguladoras devem encarregar-se da elaboração e implementação de parâmetros técnicos para atender aos fins e objetivos fixados na lei, tendo em consideração as escolhas feitas pelas políticas públicas. Os órgãos reguladores não têm legitimidade para fixar os fins e objetivos dessas políticas.

Os órgãos reguladores, de um modo geral, detém competência para estabelecer suas políticas regulatórias, as quais consistem na maneira de utilização das ferramentas que a autoridade reguladora dispõe para implementar as políticas públicas fixadas pelo Governo. Políticas públicas não se confundem com as políticas regulatórias, pois estas são o meio, enquanto aquelas são o fim a ser atingido.

Assim, as Agências dispõem de discricionariedade para fixar a política regulatória pelo fato de ser dado a estes órgãos competência para ponderar entre as diversas opções técnicas disponíveis para atingir o fim proposto pela politica pública que o órgão regulador está executando, sendo-lhe permitido ponderar os interesses regulados e equilibrar os instrumentos de intervenção no setor regulado para não inviabilizá-lo.

É essencial a submissão da atividade normativa dos órgãos de regulação ao controle do Chefe do Poder Executivo e do Poder Legislativo e à supervisão dos Ministros de Estado. A obrigação de prestar contas e, consequentemente, de submeter-se ao controle, é princípio republicano a que toda a Administração Pública está sujeita. Os atributos de independência e discricionariedade técnica das Agências não tornam a atividade normativa regulatória imune ao controle, por ser incompatível com a natureza administrativa destes órgãos e contrário ao princípio do Estado Democrático de Direito. JUSTEN FILHO[101], ao analisar a questão da legitimidade democrática das Agências Reguladoras, refuta qualquer possibilidade de se pretender que o exercício da regulação implique em qualquer forma de fuga de controle.

As normas regulatórias são legitimadas pela sua aderência às políticas públicas e pela sua eficiência, eficácia e efetividade. A norma será eficiente, quando sopesar os custos e os benefícios de sua adoção, pois a eficiência está voltada para o método (forma) e exige que os recursos, públicos ou privados, sejam aplicados da maneira mais racional possível. Eficaz, se a norma regulatória alcançar os objetivos propostos. O ato normativo regulatório será efetivo se trouxer melhorias para a população, ou seja, a efetividade é mais abrangente que a eficácia, pois afere em que medida os resultados foram benéficos. A falta de qualquer dos elementos aqui citados torna a norma regulatória ilegítima.

Cabe aos representantes do povo, democraticamente eleitos, a formulação das políticas públicas dos diversos setores regulados. A violação pelas Agências dessas políticas atrai a incidência da revisão ministerial, como instrumento para realinhar suas decisões às políticas públicas estabelecidas para esses setores, e a competência do Congresso Nacional de sustar os atos normativos dos órgãos reguladores.

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Sobre o autor
Alexis Sales de Paula e Souza

Economista, advogado e servidor público em Brasília (DF). Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pós-graduado em direito público pelo Instituto Processus/DF. Pós-graduado em Direito da Regulação pelo IDP/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alexis Sales Paula. O decreto legislativo como instrumento de controle da atividade normativa das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3481, 11 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23428. Acesso em: 18 abr. 2024.

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