Artigo Destaque dos editores

O devido processo legal na dinâmica jurisprudencial do STF.

Uma breve análise do sentido jurídico e do alcance normativo do inciso LIV do artigo 5º da Constituição da República, a partir dos textos normativos, do magistério doutrinário e dos precedentes judiciais, sob as luzes do realismo jurídico de Alf Ross

Exibindo página 2 de 3
Leia nesta página:

5 A RELEVÂNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A IMPORTÂNCIA DE SUA JURISPRUDÊNCIA

Como aludido, é cediço que a adequada compreensão de todo e qualquer enunciado constitucional pressupõe o conhecimento e a análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois é a decisão do STF a norma definitiva sobre a controvérsia constitucional.

Nada obstante, convém lembrar que as prescrições normativas estão irmanadas e devem ser compreendidas em conjunto, pois, na linha do preconizado por Eros Grau[31], não se interpreta o Direito em tiras, pois se interpreta todo o Direito como um todo, daí que  deve o Tribunal, no momento da decisão, considerar, além das palavras contidas nos textos normativos, as circunstâncias fáticas e os valores socialmente institucionalizados.

O Tribunal não pode esquecer o insuplantável magistério doutrinário de Miguel Reale[32] com a sua “Teoria Tridimensional do Direito”: fato, valor e norma.

Tenho ousado dizer que além dos referidos três aspectos do fenômeno jurídico (fato, valor e norma) deve-se levar em consideração um quarto aspecto: as idiossincrasias do intérprete/julgador. Ou seja, os prismas individuais do magistrado: a sua ciência, a sua experiência e a sua consciência. Logo, para mim, o fenômeno jurídico é tetradimensional: as circunstâncias fáticas, os textos normativos, os valores sociais e as idiossincrasias subjetivas (ou prismas individuais). [33]  Se assim não fosse, como justificar a multiplicidade de interpretações (e soluções) que se atribuem ao mesmo fenômeno (problema) normativo?

Nada obstante a diversidade de interpretações (e compreensões) se faz imperioso definir o alcance normativo e o sentido válido das prescrições constitucionais. Essa definição e alcance são estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, na qualidade de “Guarda da Constituição”, cuja missão precípua é a de garantir a supremacia normativa da Constituição e defender os direitos fundamentais da pessoa humana.

Mas, quem são os guardiões da Constituição brasileira? No regime democrático, em situação de absoluta normalidade institucional, a definitiva palavra sobre a guarda e a defesa do texto constitucional compete aos ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 101, caput, CF).

Nos termos da Constituição, o ministro deve ser brasileiro nato, com mais de 35 anos de idade, de notável saber jurídico e de reputação ilibada. Ele é aposentado compulsoriamente aos 70 anos. Sua escolha é feita pelo Presidente da República. Sua nomeação depende de aprovação da maioria absoluta dos Senadores da República (art. 101, CF).

Qualquer brasileiro nato com mais de 35 anos pode ser ministro do STF? Não. Não é qualquer um que pode ser alçado às elevadas funções de ministro da Corte. Tem de ser possuidor de notável saber jurídico e de reputação ilibada. A razão de ser desses requisitos consiste na missão que se lhe destina: palavra definitiva do que seja a Constituição. É uma missão por demais honrosa e de grave impacto  nas relações sociais e institucionais dos brasileiros e do Brasil.[34]

No pertinente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vale ressaltar que a sua importância não se dá apenas no aspecto normativo, enquanto decisão definitiva em matéria constitucional, mas tem caráter pedagógico e simbólico, pois a partir das decisões do STF, tanto o Poder Público quanto os indivíduos e as instituições podem criar justas expectativas comportamentais acerca do real sentido das normas constitucionais. É possível “calcular” com razoável grau de certeza e segurança as escolhas normativas que devem ser feitas.

Também tem caráter simbólico a jurisprudência da Corte para revelar os valores ideológicos que estão contidos nas decisões e que plasmam o ordenamento jurídico, a servir de vetor compreensivo de todos quantos vivenciam o Direito brasileiro.  O STF ao julgar uma controvérsia não decide apenas um caso posto ao seu crivo, mas indica a direção normativa que devem seguir os indivíduos (e as autoridades) e as instituições (públicas ou particulares). 

Mas como deve julgar o STF? Em rigorosa obediência ao texto constitucional. Os ministros devem se pautar pelo respeito à Constituição. O ministro está no Tribunal para fazer valer a força normativa da Constituição e não para impor as suas idiossincrasias ou ideologias particulares. O ministro é escravo da Constituição.

Como verificar se os ministros do STF estão cumprindo com a tarefa de guardar a Constituição? Acompanhando as suas decisões e as suas manifestações. Verificando a coerência narrativa e argumentativa. Estudando os precedentes individuais e coletivos da Corte. Descobrindo as razões implícitas e explícitas contidas nas manifestações e votos proferidos.  

O único controle possível é o da coerência normativa. Cuide-se que o ato de criação do direito é eminentemente político. O ato de decisão também o é. O político não necessita de ser coerente, pois para sobreviver politicamente ele deve se adaptar às circunstâncias e oportunidades eleitorais. O magistrado não deve se curvar aos interesses circunstanciais da política. O magistrado deve se submeter ao ordenamento jurídico.

O político deve tomar suas decisões pautadas nos interesses de seus eleitores. O magistrado deve decidir sem receio de contrariar os eleitores ou grupos poderosos. O magistrado deve decidir em conformidade com o Direito e de acordo com a sua consciência jurídica, mesmo que venha a desagradar setores socialmente relevantes.

O político deve se comprometer com os interesses da maioria que o elegeu. A sobrevivência eleitoral do político pressupõe agradar, nem que seja na aparência, o seu eleitorado. O magistrado deve se comprometer com a busca da verdade.  O político deve servir às maiorias. O magistrado deve ser o refúgio das minorias. Os regimes políticos democráticos há de ser o governo das maiorias, mas sem prejuízo ou menoscabo dos direitos das minorias, como preconizava Hans Kelsen[35].

Democracia constitucional é prevalência da maioria, mas de acordo com a “Lei”, sem aniquilamento das minorias. Só há Estado Democrático de Direito onde houver convivência entre grupos majoritários e grupos minoritários. Democracia é convivência no dissenso. É consenso construído. Não é consenso imposto. É dissenso consensual, por mais paradoxal que isso possa ser.   

Direito na democracia implica o respeito pelo outro, sobretudo se o outro for diferente quanto à condição econômica, étnica, racial, cor, sexo ou orientação sexual, credos e crenças religiosas. A democracia, para ser verdadeiramente democrática, tem de ser pluralista e nela – na democracia – a lei não poderia ceder jamais, como ensinava Norberto Bobbio[36].  

Na democracia, a força serve ao direito. O direito é de quem possui os melhores argumentos, de quem está com a razão e com a “verdade” possível e alcançável. No jogo verdadeiramente democrático, as “cartas” não devem estar previamente marcadas. Em síntese, na democracia constitucional o papel da “justiça constitucional” é o de garantir a idoneidade do jogo democrático, viabilizando o governo da maioria e permitindo o respeito às minorias. Essa missão da “corte constitucional” decorre do aspecto “dual” do regime democrático constitucional. De um lado a vontade vencedora da maioria política. Doutro lado os direitos dos grupos minoritários, como tem acentuado Bruce Ackerman[37].  

Na democracia constitucional, o STF deve defender a coletividade e o indivíduo protegendo a Constituição, mesmo que decida em contrariedade a setores influentes da sociedade e da opinião pública. Para garantir a democracia, o Tribunal tem de ter a coragem de ser contramajoritário, e isto não quer dizer antidemocrático.

A única preocupação do Tribunal deve ser a de cumprir a Constituição e garantir o seu respeito, sobretudo em face daqueles que são acostumados a ignorá-la, pois na experiência jurídica brasileira, infelizmente, a Lei não intimida os poderosos. Desgraçadamente, neste País, cumprir ou temer a Lei é coisa de “pobre”, de “preto”, de “prostituta” ou de “pateta”. É uma lástima!

Nada obstante as dificuldades sociais, culturais, políticas e normativas para a concretização das promessas constitucionais, a experiência do STF tem dado sinais de que seja possível vislumbrar uma mudança na mentalidade cultural e nas práticas sociais brasileiras, mesmo que ainda sejam tímidas.

É isso que se espera dos ministros do STF: que julguem as causas em conformidade com o ordenamento jurídico, obedecendo à Constituição, às “leis internacionais”, às leis nacionais e aos precedentes judiciais, em obséquio ao Estado Democrático de Direito e de acordo com o devido, porque razoável, processo legal. 


6 O DEVIDO PROCESSO LEGAL NA JURISPRUDÊNCIA DO STF

A relevância normativa do princípio do “devido processo legal” faz dele, segundo Nelson Nery Júnior, a base sobre a qual todos os outros princípios se sustentam.[38] Diz mais o ilustrado processualista:

Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as conseqüências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies.

Em precioso livro sobre o princípio do “devido processo legal substantivo”, Ruitemberg Nunes Pereira[39]  quebra a tradição doutrinária brasileira para defender a tese de que as raízes do “devido processo legal” não se encontram na Magna Carta inglesa de 1215, mas nas “leis” germânicas no período da “Alta idade média”, especificamente o Decreto de 1037 expedido pelo imperador Conrado II, do Sacro Império Romano Germânico.

Segundo Ruitemberg Nunes Pereira[40], nesse aludido Decreto de 1037, o imperador Conrado II determinava:

que nenhum homem seria privado de um feudo sob o domínio do Imperador ou de um senhor feudal (mesne lord), senão pelas leis do Império (laws of empire) e pelo julgamento de seus pares (judgment of his peers).

Com efeito, diante desse aludido texto é forçoso convir que o enunciado estampado no capítulo 39 da Magna Carta de 1215 lhe guarda imensa similitude. Eis a tradução de Paulo Fernando Silveira[41]:

Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra.

Do medieval direito inglês, cuja fonte, na linha do citado magistério de Ruitemberg Nunes Pereira foi o medieval direito germânico, essa cláusula vicejou nos Estados Unidos da América onde se estampou no Bill of Rigths de 1791 (Emendas Constitucionais I a X da Constituição norte-americana de 1787).  Colho do opúsculo de Saul K. Padover[42] o seguinte sentido vernacular à Emenda V:

Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças  terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço ativo; nenhuma pessoa será, pelo mesmo crime, submetida duas vezes a julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de algum membro; nem será obrigada a depor contra si própria em processo criminal ou ser privada da vida, da liberdade ou propriedade sem processo legal regular (due process of law); a propriedade não será desapropriada para uso público sem justa indenização.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A experiência jurídica norte-americana construiu uma sólida compreensão dessa cláusula constitucional que influenciou sobremaneira o direito constitucional brasileiro, especialmente no concernente ao intitulado “devido processo legal substantivo”, cuja principal finalidade consistia no controle da proporcionalidade e da razoabilidade das leis, como pontificado por Carlos Roberto de Siqueira Castro[43].

Nessa perspectiva, convém diferenciar o “devido processo legal processual” do “devido processo legal substantivo”, pois a dinâmica da jurisprudência do STF tem enfrentado essa questão de modo distinto.

Com efeito, na prática judicial do STF o tema do “devido processo legal processual” tem sido objeto de uma jurisprudência defensiva da Corte no sentido de não apreciar a questão sob o fundamento de que a eventual inconstitucionalidade seria indireta ou reflexa, pois demandaria a análise do conteúdo das normas infraconstitucionais, o que seria inviável nas estreitas vias do contencioso constitucional.[44]

Essa é a “pedra de toque” da jurisprudência do STF acerca do alcance normativo do “devido processo legal processual”. A Corte tem uma jurisprudência defensiva e praticamente não conhece dos feitos que se fundamentam em violação ao devido processo legal, se acaso essa violação for de caráter procedimental ou formal. O argumento esgrimido pela Corte, ao meu sentir é frágil e esvazia o conteúdo normativo da proteção constitucional do “devido processo legal processual”.[45]

No julgamento do RE 560.477, que visitou o tema da exclusão de contribuintes do REFIS, o relator originário do feito, Ministro Marco Aurélio, entendeu que a exclusão do programa sem prévia notificação ou sem oportunizar contraditório e ampla defesa, violava o devido processo legal administrativo.

A dissidência foi inaugurada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que se tornou o redator do acórdão, no sentido de que a controvérsia tinha caráter infraconstitucional, por versar questão relativa à aplicação da Lei 9.964/2000.

O Ministro Menezes Direito acompanhou o voto do Ministro Marco Aurélio e assinalou importante – e certeira – manifestação:

Mas como disse, Senhor Presidente, Vossa Excelência, a meu sentir, pôs corretamente que o que se está examinando é apenas a violação do artigo 5º no que diz respeito ao devido processo legal, ou seja, o contraditório e a ampla defesa.

E aí pouco importa, pelo menos na minha compreensão, que o tema esteja numa legislação infraconstitucional, porque o princípio é constitucional. Então, se existe uma legislação infraconstitucional que atenta contra esse princípio, evidentemente que nós temos de examiná-la primeiro para saber se ele foi ou não foi violado. Se foi violado, é o caso, como Vossa Excelência pôs, a meu sentir, reitero, com a devida vênia dos que possam entender em sentido contrário, corretamente, porque existe, sim, viabilidade de conhecimento para que se apure se esse princípio foi ou não violado.

A Ministra Cármen Lúcia acompanhou a divergência inaugurada pelo Ministro Ricardo Lewandowski sob o fundamento de que houve o respeito ao devido processo legal da “Lei do REFIS”.

O Ministro Marco Aurélio chegou a questionar à Ministra Cármen Lúcia se ela não entendia que a notificação de exclusão, sem prévio contraditório e defesa, não violava o devido processo legal, no que ela respondeu que não porque o procedimento estabelecido na lei foi respeitado.

O último a votar foi o Ministro Ayres Britto, uma das vozes mais liberais da Corte. Todavia, em sua manifestação assinalou:

Estou entendendo também, Senhor Presidente, que neste caso – como em quase todos os casos – o tamanho do devido processo legal se mede com a trena da lei que o institua.

Vou repetir: tamanho do devido processo legal se mede com a trena da lei que o institua.

O Ministro Marco Aurélio apelou para o direito natural, alegando que o cidadão tem esse direito a ser ouvido para ter afastada uma situação jurídica formalizada.  Nada obstante os apelos do Ministro Marco Aurélio e a adesão do Ministro Menezes Direito, a Turma entendeu que não houve violação direta ao princípio constitucional do devido processo legal e não conheceu do recurso do contribuinte.

No caso específico do “REFIS”, o Plenário do Tribunal rejeitou, em questão de ordem, o reconhecimento de repercussão geral da controvérsia sob o mesmo fundamento de cuidar-se de matéria infraconstitucional, nos autos do Recurso Extraordinário n. 611.230.[46]

Essa orientação da Corte frustrou as expectativas dos contribuintes que julgavam que seria aplicado o entendimento consagrado nas “razões de decidir” dos acórdãos que resultaram na edição da Súmula Vinculante n. 21 (É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo).[47]

No julgamento do RE 388.359, que estabeleceu essa nova orientação da Corte, sumulada de modo vinculante, o único voto dissidente foi proferido pelo Ministro Sepúlveda Pertence, outra voz liberal do Tribunal, fiel às manifestações anteriores no sentido de que não há a garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição, seja a administrativa, seja a judicial.  Ou seja, segundo o Tribunal, nada obstante a previsibilidade legal da exigência de depósito prévio ou de arrolamento de bens, essa exigência se revelaria violadora do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Com esteio nesse aludido precedente, havia uma justa e razoável expectativa de que o Tribunal também julgaria inconstitucional a exclusão do REFIS sem o prévio contraditório e ampla defesa, por violação ao devido processo legal.

Pois bem, se no plano estritamente procedimental a jurisprudência da Corte é defensiva na aplicação da cláusula constitucional do “devido processo legal”, salvo em situações excepcionalíssimas como a que resultou na edição da SV 21, no âmbito da substância outro tem sido o caminho palmilhado pelo Tribunal, dando um robusto elastério à referida cláusula, com o reconhecimento do “devido processo legal substantivo”.

É com estribo nesse postulado do “devido processo legal substantivo” que o Tribunal tem apreciado a proporcionalidade e a razoabilidade de todos provimentos normativos submetidos ao seu crivo, sejam emendas constitucionais, tratados internacionais, leis (federais, estaduais ou municipais), medidas provisórias, atos administrativos, regulamentos privados ou decisões judiciais. Ou seja, toda e qualquer norma jurídica poderá ter sindicada a sua validade constitucional se acusada de violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (ou do devido processo legal substantivo).

De efeito, se se ativer somente aos princípios e direitos fundamentais pode-se estabelecer um critério interpretativo, tanto em relação ao conceito do que sejam os direitos fundamentais quanto ao modo de compreendê-los.

Por direitos fundamentais tenho entendido que seja o conjunto de enunciados normativos (regras, princípios e postulados) que devem regular a vida e a liberdade das pessoas, e que devem viabilizar com igualdade de condições e oportunidades, de acordo com as necessidades e possibilidades individuais e coletivas, a todos - e a cada um - dignidade na mútua convivência, com os devidos, decentes, necessários, recíprocos respeito e consideração.

Alicerçado nessa concepção de direitos fundamentais, entendo, por conseguinte, que todo e qualquer sacrifício (ou restrição) de direito fundamental deverá ser razoável e proporcional (compatível, aceitável, necessário e adequado), a revelar a prudência e o bom senso do intérprete (aplicador), segundo as circunstâncias fáticas, os enunciados prescritivos, os paradigmas coletivos e os prismas individuais, na solução do caso concreto.

Esse, ao meu sentir, é o fio-condutor para uma adequada compreensão (e aplicação) dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Penso que para uma adequada verificação de eventual desrespeito ao “devido processo legal substantivo”, consubstanciado nos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, devem ser considerados os aludidos critérios.

No STF, um dos ministros mais entusiasmados com o princípio do “devido processo legal”, seja na vertente processual seja na material ou substantiva é o Ministro Celso de Mello, como se percebe em passagens de acórdãos ou decisões de sua relatoria.[48] Na mesma toada seguem os demais ministros da Corte, em sede de “devido processo legal substantivo” (ou substantive due process of law).[49]

O Tribunal tem afastado o uso de “sanções políticas” como instrumento de cobrança de tributos por entender violado o princípio do devido processo legal substantivo.[50]

Discussão semelhante está ocorrendo na Corte nos autos do Recurso Extraordinário n. 550.769 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.952, ambos sob a relatoria do Ministro Joaquim Barbosa.  Nesses aludidos feitos questiona-se a validade constitucional do “regime especial de IPI das empresas tabagistas” regulado pelo Decreto-Lei n. 1.593/1977.[51]

As teses no sentido da invalidade do citado “regime especial” sustentam a violação dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da vedação de sanções políticas, da livre iniciativa, da proporcionalidade e da razoabilidade.

Oficiando na qualidade de procurador da Fazenda Nacional apresentei parecer, nos autos dos aludidos feitos, cuja ementa tem o subseqüente teor:

Constitucional. Tributário. IPI. Regime Especial. Decreto-Lei n. 1.593/1977.

Devido processo legal substantivo respeitado.

Indústria tabagista. Atividade econômica tolerada pelo Estado.

Razoabilidade e proporcionalidade das restrições legais inquinadas.

Ponderação de interesses. Saúde pública.  Defesa do consumidor.  Liberdade de concorrência.

A livre iniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna.

Todas as normas e medidas jurídicas para controlar com rigor e austeridade a produção de cigarros são constitucionalmente válidas, politicamente legítimas, moralmente aceitáveis e socialmente desejáveis.[52]

O julgamento dos mencionados feitos já se iniciou. No referido RE 550.769, o relator Ministro Joaquim Barbosa votou pelo desprovimento do recurso, por entender que no caso concreto não se vislumbrava a alegada inconstitucionalidade. Após o seu voto, pediu vista do feito o Ministro Ricardo Lewandowski. No julgamento da ADIN 3952, o relator Ministro Joaquim Barbosa votou pela procedência parcial do pedido. Após o seu voto, pediu vista a Ministra Cármen Lúcia. [53]

Se a Corte vier a decretar a inconstitucionalidade do aludido dispositivo estará assemelhando as situações às mesmas hipóteses dos precedentes relativos às “sanções políticas”. Se acaso o Tribunal julgar válido o conjunto normativo estará fazendo uma delicada e relevante distinção no sentido de que a finalidade precípua do regime especial não é a cobrança do tributo, mas a regularidade da atividade econômica.

Nada obstante tenha oficiado no sentido da validade constitucional das normas jurídicas impugnadas, parece-me aceitável eventual decisão em sentido contrário.

Nessa perspectiva, à luz do que foi exposto, é de ver que a jurisprudência da Corte, em sede de “devido processo legal processual” é defensiva e praticamente não conhece das controvérsias que lhe são submetidas sob o fundamento de cuidar-se de matéria infraconstitucional.

Já em sede de “devido processo legal substantivo”, o Tribunal avançar no conhecimento das causas e verifica se as normas jurídicas estão em conformidade com os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade (compatibilidade, aceitabilidade, necessidade e adequação).

Finalizo este tópico recordando o já citado Nelson Nery Júnior[54]:

Resumindo o que foi dito sobre esse importante princípio, verifica-se que a cláusula procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível, isto é, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e a maioria dos incisos do art. 5º seriam absolutamente despiciendos. De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5º, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores indagações.

Como aludido no referido magistério doutrinário, os temas do “contraditório”, da “ampla defesa” e das “provas ilícitas”, indiscutíveis derivações do “devido processo legal”, também têm sido objeto de apreciação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois a tradição autoritária do direito brasileiro pressupõe a explicitação de garantias fundamentais. Não são prescrições meramente expletivas, mas dispositivos prenhes de forte conteúdo normativo.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O devido processo legal na dinâmica jurisprudencial do STF.: Uma breve análise do sentido jurídico e do alcance normativo do inciso LIV do artigo 5º da Constituição da República, a partir dos textos normativos, do magistério doutrinário e dos precedentes judiciais, sob as luzes do realismo jurídico de Alf Ross. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3492, 22 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23513. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos