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O devido processo legal na dinâmica jurisprudencial do STF.

Uma breve análise do sentido jurídico e do alcance normativo do inciso LIV do artigo 5º da Constituição da República, a partir dos textos normativos, do magistério doutrinário e dos precedentes judiciais, sob as luzes do realismo jurídico de Alf Ross

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Analisa-se o sentido jurídico e o alcance normativo da expressão “devido processo legal” no STF, tendo em perspectiva os textos normativos, o magistério doutrinário e os precedentes judiciais, sob as luzes do realismo jurídico ensinado por Alf Ross.

Resumo: O presente texto visa analisar o sentido jurídico e o alcance normativo da expressão “devido processo legal” na dinâmica jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo em perspectiva os textos normativos, o magistério doutrinário e os precedentes judiciais do STF, sob as luzes do realismo jurídico ensinado por Alf Ross.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Processual. Devido Processo Legal. Supremo Tribunal Federal. Realismo Jurídico. Alf Ross.

Sumário: 1 Introdução; 2 O direito constitucional e moral de um julgamento justo, imparcial e convincente; 3 Os enunciados normativos supranacionais; 4 O realismo jurídico de Alf Ross e o livro “Direito e Justiça”; 5 A relevância do Supremo Tribunal Federal e a importância de sua jurisprudência; 6 O devido processo legal na jurisprudência do STF; 7 Considerações finais; 8 Referências.


1 INTRODUÇÃO

O artigo tem como objeto o sentido jurídico e o alcance normativo da expressão constitucional “devido processo legal”, explicitado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, à luz do realismo jurídico de Alf Ross, exposto em seu livro “Direito e Justiça”[1].

A justificativa desse tema descansa no fato incontestável de que o direito fundamental e moral a uma prestação jurisdicional justa e imparcial pressupõe a concretização da aludida promessa constitucional, fiada na seriedade comportamental e na sinceridade de propósitos dos magistrados, em particular os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). 

A finalidade desta análise consiste em apresentar, de modo crítico, o entendimento dominante do Tribunal acerca do referido termo constitucional, verificando a consistência argumentativa e a coerência normativa das manifestações e narrativas dos ministros do STF na aplicação dos citados vocábulos constitucionais na solução dos conflitos submetidos à apreciação da Corte.

O caminho a ser percorrido visitará o texto constitucional, textos normativos infraconstitucionais, textos normativos internacionais, textos doutrinários e, especialmente, decisões e manifestações dos ministros do STF. O principal prisma teórico será o realismo jurídico de Alf Ross.

Com efeito, o estudo sério acerca dos institutos normativos e das instituições jurídicas não pode ficar preso às palavras contidas nas “Leis” (aqui no sentido de texto normativo prescritivo), mas requer a análise de como efetiva e realmente se dá a aplicação normativa pelos Tribunais na solução dos casos concretos, como ensinado por Alf Ross e o seu realismo jurídico.

Daí porque o preciso magistério de Dimitri Dimoulis[2] acerca do papel desempenhado pelos tribunais na realização normativa do Direito. Peço licença para recordar longa, porém indispensável, passagem de profunda advertência pedagógica do “professor Wendelin” (personagem criada pelo citado Dimitri Dimoulis na obra “O caso dos denunciantes invejosos”, de Lon Fuller) que elucida a indispensabilidade do estudo dos precedentes judiciais:

Decidir sobre a “verdade” no direito é um exclusivo privilégio dos juízes. Os políticos que atuam como legisladores e nós, doutrinadores, não temos o poder de decidir sobre o que é o direito. Quem fala do direito sem ser juiz parece com aqueles debatedores das emissões esportivas de domingo que discutem por horas e horas sobre pênaltis e impedimentos, sem poder alterar em nada as decisões dos árbitros!

O positivismo jurídico ensinou que o direito depende da vontade do legislador, sendo aleatório e mutável. O realismo jurídico fez um passo a mais. Demonstrou que o direito realmente aplicado, o “direito em ação”, não depende das palavras do legislador nem dos livros dos doutrinadores. Depende da vontade do juiz que dá sentido às palavras dos legisladores e dos doutrinadores, podendo mesmo invertê-las por completo.

Por essa razão, as propostas formuladas nessa mesa, assim como as eventuais leis retroativas sobre os Denunciantes Invejosos, não passam de meros desejos. O poder de decisão pertence aos juízes que criam o direito. Eles dirão se aquele que fez uma denúncia para se livrar de um inimigo foi um cidadão respeitoso da lei ou um criminoso que merece castigo. Nenhuma lei e nenhuma reflexão teórica serão mais poderosas do que a decisão do magistrado mais humilde.

Se não existe nem verdade, nem justiça, nem certeza na aplicação do direito, se esses conceitos são propagandas enganosas dos juristas que querem enaltecer sua profissão, devemos concluir que é inútil estudar o direito? Penso que não.

Estudar os regulamentos do legislador e a jurisprudência permite prever as futuras decisões e explica como decidem os juízes, quais são os elementos sociais, políticos e psicológicos que os fazem tomar determinada decisão. Em outras palavras, o direito é uma questão da prática que depende das circunstâncias, dos interesses em jogo e da personalidade de quem decide. Quanto mais estudamos esses elementos, maiores são as chances de prever as decisões do Judiciário.

Além disso, me parece que os doutrinadores devem formular propostas sobre a correta aplicação do direito, já que eles possuem um valioso conhecimento técnico sobre os conceitos e os métodos de interpretação do direito que pode ajudar o Judiciário em suas decisões.

Quais são os critérios para formular essas propostas? Alguns doutrinadores opinam por defender os interesses de seus clientes; outros fazem propostas acreditando que falam em nome da verdade e da justiça; há também doutrinadores que defendem as interpretações socialmente úteis. Eu sigo essa última orientação, porque considero o direito como instrumento para melhorar a vida social.

Pois bem, o Supremo Tribunal Federal já foi instado a se manifestar em diversas oportunidades acerca do alcance normativo dos enunciados objetos da presente análise, estampados no inciso LIV da Constituição Federal:

ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Nessa perspectiva, verificar a compatibilidade das decisões do STF com o ordenamento jurídico, a consistência argumentativa dos ministros e a coerência normativa de suas manifestações na aplicação dos aludidos dispositivos constitucionais, de modo crítico, é a missão acadêmica que se propõe realizar.


2 O DIREITO CONSTITUCIONAL E MORAL DE UM JULGAMENTO JUSTO, IMPARCIAL E CONVINCENTE

Somente há direito se houver amparo no (do) ordenamento jurídico. Não há direito fora do ordenamento jurídico. Todavia, há direitos tão fortes, tão consistentes, tão incorporados na consciência cívica da comunidade, que não são apenas “direitos jurídicos”, mas verdadeiros “direitos morais”, graças à alta carga valorativa que possuem. São direitos civilizatórios. No entanto, é importante assinalar que o ordenamento jurídico não se esgota na “Lei escrita”, como pontifica Alf Ross.[3]

Dentre esses cogitados “direitos morais” tem-se o direito fundamental a um julgamento justo (porque imparcial) e o direito constitucional da inafastabilidade da jurisdição nas hipóteses de ameaças ou lesões a direitos (art. 5º, inciso XXXV, CF),[4] bem como o direito a ser convencido publicamente pelo magistrado, conforme dispõe o inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal.[5]

Para realizar essa promessa de um julgamento justo, o ordenamento jurídico exige o “devido processo legal”. Com efeito, para absolver ou condenar (ou para julgar procedente ou improcedente um pedido judicial), o magistrado deve formar suas convicções apreciando com liberdade as provas lícitas, viabilizando o contraditório e a mais ampla defesa, de acordo com o devido processo legal.

Nesse específico tema da formação da convicção do julgador, o magistério de Lenio Luiz Streck[6] traz uma importante reflexão sobre o ato judicial de interpretar e decidir:

a decisão jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador das diversas possibilidades de solução as causas submetidas ao seu crivo. Ela se dá como um processo em que o julgador deve estruturar sua interpretação – como a melhor, a mais adequada – de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade política.

No plano legal, essa prerrogativa (ou verdadeiro dever) - de livre apreciação das provas - do magistrado brasileiro pode ser vislumbrada, a título ilustrativo e prescritivo, nos artigos 155, do Código de Processo Penal, e 131, do Código de Processo Civil.[7]

Essa livre apreciação das provas - reitera-se - não significa arbítrio absoluto, mas relativa discricionariedade. Ou seja, deve o magistrado justificar razoável e racionalmente com apoio em evidências comprováveis e aceitáveis e fundamentando com base no ordenamento jurídico (Tratados, Constituição, Leis, Decretos, precedentes judiciais etc.), o porquê de sua decisão, seja a condenatória seja a absolutória, no plano penal, seja a da procedência ou improcedência do pedido, na seara cível.

Essas evidências deverão se consubstanciar em provas lícitas obtidas de modo legítimo, sendo, por conseqüência, válidas e idôneas para a formação da convicção do magistrado.  Não são quaisquer provas que influenciarão o magistrado, mas apenas as que forem válidas e idôneas, porque obtidas de modo legítimo e com procedimentos lícitos. Do contrário, se a prova não for válida, poderá ser decretada a nulidade do processo tendo em vista o julgamento viciado do magistrado, por violação ao devido processo legal.

Eis uma das maiores garantias fundamentais da pessoa humana: o julgamento sem vícios, porque fundado em provas válidas e mediante um procedimento em conformidade com o ordenamento jurídico, e proferido por alguém imbuído do desejo de ser justo ao praticar a verdadeira justiça (ou a justiça possível para a humanidade).

Indiscutivelmente essa aludida garantia é uma das maiores conquistas evolutivas da humanidade organizada em sociedade civil.

Nesse prisma, no plano penal, por exemplo, não deve o magistrado ser parceiro da Polícia ou do Ministério Público na busca da condenação. Tampouco deve ser condescendente ou leniente com a Advocacia ou com a Defensoria na tentativa da absolvição. O magistrado deve procurar ser justo e imparcial.

Deve - ainda no exemplo da seara penal - o magistrado buscar a realização da justiça, apreciando com rigor as circunstâncias fáticas e as provas colacionadas, examinando com atenção, consideração e respeito os testemunhos e as argumentações da acusação e da defesa, e estudando com dedicação e seriedade os fundamentos jurídico-normativos que justificarão sua decisão.

Essa deve ser a postura de um magistrado digno da toga que veste e que honra a confiança que nele depositam as pessoas e toda a sociedade. É um conforto tanto para o inocente quanto para o culpado ser destinatário de uma sentença que buscou concretizar a justiça. Essa tranquilidade serve para todos os conflitos judiciais ou controvérsias normativas, independentemente de sua natureza ou caráter.

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Pois bem, para a concretização desse postulado civilizatório da humanidade que é o julgamento justo, o sistema jurídico brasileiro possui um cabedal significativo de instrumentos normativos: a Constituição Federal, a legislação processual nacional, os textos normativos internacionais e os precedentes jurisprudenciais.

Todo esse aparato normativo - reitere-se - simboliza a idéia de civilidade que deve permear a convivência humana em sociedade. É intuitivo que na sociedade contemporânea a justa punição - ou a correta absolvição - fundada racionalmente em provas válidas (porque lícitas e legítimas) é o que nos diferencia das sociedades bárbaras e incivilizadas.

Esse modo de proceder dá – inclusive - eventual superioridade moral que permita a difícil e dolorosa tarefa de segregar aqueles que ao agredirem outras pessoas - violando as normas de proteção do convívio social - cometeram crimes.

A moralidade objetiva da força do direito pressupõe a tentativa desesperada de um julgamento justo (porque imparcial e convincente), de acordo com o preceito do “devido processo legal”, e seus consectários do “contraditório e da ampla defesa” e da “proscrição das provas ilícitas”.

Não sem razão que Karl Olivecrona[8]  e Ronald Dworkin[9]  foram buscar na mitologia grega as representações do magistrado justo: Atlas para Olivecrona e Hércules para Dworkin.

Induvidosamente, a tarefa de concretização da justiça exige um esforço sobre-humano, quase divino. No entanto, em que pesem as dificuldades, o magistrado sinceramente comprometido com a busca da verdade racional, razoável, convincente e coletivamente aceitável, poderá facilitar a sua tarefa (e confortar a sua consciência moral) se respeitar e aplicar os referidos preceitos processuais constitucionais, mormente a garantia do “devido processo legal”.


3 OS ENUNCIADOS NORMATIVOS SUPRANACIONAIS

  Não somente no plano nacional há diretivas em busca do julgamento justo e civilizado, especialmente no âmbito penal, conforme o disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.[10]  Cuide-se que tanto a Declaração Universal quanto a Declaração e a Convenção Americanas reconhecem a importância dos deveres – e não só dos direitos – inerentes a cada pessoa.[11]

Continuo ainda na seara penal. Nada obstante o descumprimento pelos culpados dos seus deveres jurídicos, isso não lhes tolda os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, pois, repete-se à exaustão, a superioridade moral de nossa civilização decorre do respeito e consideração destinados mesmo àqueles que desrespeitaram e violaram as nossas leis.

Esse relevante aspecto simbólico foi bem capturado pelo ministro Eros Grau no julgamento do Habeas Corpus n. 94.408[12], que confirmou o entendimento consagrado no Habeas Corpus n. 84.078[13], no qual o Supremo Tribunal Federal decretou a inconstitucionalidade da “execução antecipada da pena”.  O ministro Eros Grau relembrou o magistério de Evandro Lins, outrora ministro do STF, para quem:

Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente.

E disse mais o citado ministro Eros Grau:

8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil).

Ante esse quadro, segundo o Supremo Tribunal Federal, se nem mesmo o condenado pode ser privado das prerrogativas inerentes à dignidade da pessoa humana, com muito maior razão deverá ser protegido o que ainda se encontra apenas acusado ou processado, portanto, sequer condenado.

Esse é o cuidado que se deve ter com o investigado ou acusado penalmente, uma vez tratar-se de indivíduo dotado de igual dignidade humana, na esteira do magistério jurisprudencial do STF.

Nessa senda, recorda-se o que disse o ministro Gilmar Mendes no julgamento do Habeas Corpus n. 84.409[14]:

(...) não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo, daí a necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.

À toda evidência, no rastro da jurisprudência do STF, o indivíduo que está sob investigação policial ou que se encontra criminalmente processado deverá ter garantida as franquias processuais constitucionais, sobretudo o direito de ser julgado por magistrado convencido por meio de provas válidas, isto é, juridicamente lícitas e obtidas de modo legítimo, viabilizando-se o contraditório e a mais ampla defesa, dentro de um devido processo legal.

Tudo isso em obediência ao ordenamento jurídico (Constituição, Leis, Tratados, precedentes) e em homenagem à dignidade da pessoa humana, porque todos somos merecedores de mútuo respeito e consideração, porquanto somos todos iguais, inexistindo superioridade ou inferioridade valorativa entre os homens.

Nessa linha, após visitar textos normativos supranacionais, dispositivos da Constituição Federal e da legislação nacional, deve-se buscar o amparo normativo dessas mencionadas garantias na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.

Antes, contudo, será surpreendido o magistério doutrinário  de Alf Ross, um dos principais expoentes do realismo jurídico, uma corrente teórica que atribui importância capital ao estudo e conhecimento das práticas judiciais na concretização e compreensão do Direito, no sentido de que o direito positivo não se esgota no texto normativo, mas deve ser observado na realidade e na dinâmica dos tribunais.


4 O REALISMO JURÍDICO DE ALF ROSS E O LIVRO “DIREITO E JUSTIÇA”

Na apresentação de Alaôr Caffé Alves à edição brasileira do referido livro “Direito e Justiça”, que foi originariamente publicado na Dinamarca, em 1953, com o título “Om Ret og Retfærdighed”, revela-se que o professor danês Alf Ross teve como método a análise do Direito como fenômeno jurídico experimental, tendo como principal objeto de estudo as práticas judiciais.[15]

No prefácio que escreveu, em 1958, à edição inglesa do aludido livro, cujo título naquele idioma é “On Law and Justice”, Alf Ross externou:

A principal idéia deste trabalho é levar no campo do direito os princípios do empirismo às suas conclusões últimas. Desta idéia emerge a exigência metodológica do estudo do direito seguir os padrões  tradicionais de observação e verificação que animam toda a moderna ciência empirista, e a exigência analítica das noções jurídicas fundamentais serem interpretadas obrigatoriamente como concepções da realidade social, do comportamento do homem em sociedade e nada mais. Por esta razão e que rejeito a idéia de uma “validade” a priori específica que coloca o direito acima do mundo dos fatos e reinterpreto a validade em termos de fatos sociais; rejeito a idéia de um princípio a priori de justiça como guia para a legislação (política jurídica) e ventilo os problemas da política jurídica dentro de um espírito relativista, quer dizer, em relação a valores hipotéticos aceitos por grupos influentes na sociedade; e finalmente, rejeito a idéia segundo a qual o conhecimento jurídico constitui um conhecimento normativo específico, expresso em proposições de dever ser, e interpreto o pensamento jurídico formalmente em termos da mesma lógica que dá fundamento a outras ciências empíricas (proposições de ser).

(....)

Durante os mais trinta anos em que me ocupei dos estudos jusfilosóficos, tenho, é claro, recebido orientação e inspiração procedentes de muitos lugares. Sem elas teria sido impossível escrever este livro. Tais débitos são esquecidos facilmente, o que me torna incapaz de apresentar uma lista completa. Mas devo mencionar dois mestres que tiveram para mim uma maior significação do que quaisquer outros: Hans Kelsen, que me iniciou na filosofia do direito e me ensinou, acima de tudo, a importância da coerência, e Axel Hägerström, que me abriu os olhos para o vazio das especulações metafísicas no campo do direito e da moral. [16]

Alf Ross se preocupa com as relações entre o que ele chama de “direito vivo” (o direito que realmente se desenvolve no seio da comunidade) e o “direito teórico ou dos livros”, e às forças que de fato motivam a aplicação do direito em contraposição aos fundamentos racionalizados presentes nas decisões judiciais.[17]

Para Alf Ross as leis são expressões lingüísticas. As expressões lingüísticas podem ser divisadas em três categorias: a) asserções; b) exclamações e c) diretivas.[18]

Segundo Alf Ross, as asserções são as expressões lingüísticas que indicam um certo estado de coisas, como sucede com a expressão “meu pai está morto”. As exclamações são as expressões lingüísticas que não têm significado representativo não exercem qualquer influência, como sucede com a expressão “ai!”. As diretivas são as expressões lingüísticas sem significado representativo, mas com intenção de exercer influência, como sucede com a expressão “feche a porta”.[19]

Nessa batida, segundo Alf Ross as regras jurídicas são obviamente “diretivas”, que visam exercer influência sobre as condutas humanas:

As leis não são promulgadas a fim de comunicar verdades teóricas, mas sim a fim de dirigir as pessoas – tanto juízes quanto cidadãos particulares – no sentido de agirem de uma certa maneira desejada. Um parlamento não é um escritório de informações, mas sim um órgão central de direção social.[20]

Segundo Ross, a regra jurídica não é verdadeira nem falsa, é diretiva, pois a sua finalidade é prescrever comportamentos, de sorte que há uma distinção entre (a) o próprio direito enquanto regras jurídica e (b) o conhecimento acerca do direito enquanto proposições acerca das regras jurídicas.[21]

Alf Ross, em tópico sobre o “conceito de direito vigente”, faz uma interessante aproximação entre as regras jurídicas e as regras do xadrez, a revelar o aspecto de fenômeno social de ambos os sistemas normativos, tanto o direito quanto o xadrez. Para ele, as regras normativas são convencionais e estabelecem uma “conexão de significados” entre os participantes do “jogo” social. O conhecimento das regras do xadrez não implica que se ganhe o jogo. Assim como o conhecimento das normas jurídicas não implica a sua obediência nem a vitória nas demandas judiciais.[22]

Segundo Alf Ross, as regras se apresentam como “esquemas interpretativos”. Daí porque:

‘direito vigente’ significa o conjunto abstrato de idéias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação, o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias.[23]

Discorrendo sobre o ordenamento jurídico, Alf Ross entende, resumidamente, que ele – o ordenamento jurídico – é o conjunto de regras para o estabelecimento e funcionamento do aparato de força do Estado.[24]

Quanto à “ciência jurídica”, Alf Ross defende que ela não pode ser separada da “política jurídica”, na medida em que a descrição científica está imbuída de prescrição política. Ou seja, o cientista ao descrever prescreve e, portanto, procura influenciar a compreensão e a concretização do direito.[25]

Segundo Alf Ross há uma relação entre “temor e respeito”, que são os dois motivos que caracterizam a experiência do direito. Isso significa que a obediência ou adesão ao Direito tem um fundamento ideológico e político. Daí porque, segundo ele, o poder político é competência jurídica, de modo que não existe poder político independente do direito.[26]

Dissertando sobre variados temas da teoria do direito, Alf Ross visita um que é especialmente caro para os nossos propósitos: o método jurídico ou interpretação. Na linha kelseniana, para ele a interpretação é política jurídica e não ciência do direito.[27]

Alf Ross aborda os aspectos sintáticos, lógicos, semânticos e pragmáticos dos problemas da interpretação do direito. Com isso pretende ele revelar o real alcance da administração da justiça praticada pelos magistrados, independentemente dos “critérios” interpretativos, e tendo em vista a “eterna” tensão entre a vontade subjetiva do legislador e a vontade objetiva da lei.[28]

É contundente a insistência de Alf Ross no dever de conhecer a jurisprudência e a prática dos tribunais, de sorte que somente assim seria possível estabelecer um eventual critério seguro de como o direito realmente tem funcionado e como poderá vir a funcionar na solução de problemas futuros.

Alf Ross discorre sobre os postulados da “consciência jurídica” e nos convida a refletir sobre o papel social desempenhado pelo jurista na defesa dos interesses políticos refletidos no ordenamento jurídico e na prática dos tribunais, e acusa o jurista de estar à disposição de quem segura as rédeas do poder.[29]

Em sociedades democráticas, digo eu, onde deve reinar o primado da liberdade, da alteridade, da pluralidade, da aceitação do outro e da força do diálogo e do argumento convincente, o jurista deve estar a serviço do poder e do direito na defesa dos valores normatizados e protegidos pelo ordenamento jurídico.

No Estado Democrático de Direito que se tem vivenciado desde 1988, conhecer a Constituição e o alcance normativo de suas disposições significa conhecer a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e conhecer as argumentações esgrimidas pelos principais personagens do Tribunal: os seus ministros. 

 Nesse quadro, atual e relevante a advertência formulada por Lênio Luiz Streck contida no capítulo 6 de sua referida obra[30]:

UMA ADVERTÊNCIA: CONTROLAR AS DECISÕES JUDICIAIS É UMA QUESTÃO DE DEMOCRACIA, O QUE NÃO IMPLICA “PROIBIÇÃO DE INTERPRETAR”...!

Com razão Lênio Luiz Streck. Com efeito, haja vista o indiscutível papel político desenvolvido pelo Poder Judiciário, especialmente o protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal, conhecer a sua jurisprudência e controlar a consistência argumentativa e a coerência normativa de suas decisões e manifestações é fatalidade inescapável de todos que prezamos conviver em um Estado que se quer e que se diz Democrático e de Direito.

Além desse conhecimento da dogmática e da realidade jurídica, conhecer e estudar os fundamentos, os valores e as finalidades do ordenamento jurídico é relevante. Com a palavra Alf Ross:

Acredito que estudar filosofia deve encontrar em si mesmo sua recompensa, na medida em que satisfaz um inveterado anseio de clareza e nos permite saborear os puros prazeres do espírito. Se, além disto, esse estudo nos proporciona um entendimento mais completo do mecanismo e da lógica do direito e aumenta nossa capacidade para o cumprimento da tarefa, teórica e prática a que nos devotamos, tanto melhor. 

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O devido processo legal na dinâmica jurisprudencial do STF.: Uma breve análise do sentido jurídico e do alcance normativo do inciso LIV do artigo 5º da Constituição da República, a partir dos textos normativos, do magistério doutrinário e dos precedentes judiciais, sob as luzes do realismo jurídico de Alf Ross. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3492, 22 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23513. Acesso em: 21 nov. 2024.

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