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A adoção do modelo antimanicomial nas medidas de segurança: uma questão de direitos humanos

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28/01/2013 às 10:59
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A legislação penal aplicável à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei é incompatível com a Lei nº 10.216/2001 e com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo demonstrar que a legislação penal aplicável à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei é incompatível com a lei n. 10.216/2001 e com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao ordenamento com status de emenda constitucional. Defende-se a aplicação do modelo antimanicomial, das normas internacionais garantidoras de Direitos Humanos, e a necessidade de transformação do modelo jurídico-penal vigente para que a pessoa com transtorno mental possa alcançar a recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade.

Palavras-chave: Direitos Humanos – Medida de Segurança – Lei Federal n. 10.216/2001 – Modelo Antimanicomial – Pessoa com Transtorno Mental – Direitos.

Sumário: Introdução. - 1. A luta antimanicomial e o advento da lei federal N. 10.216/2001. 2 Dos direitos das pessoas com transtorno mental. 2.1 Das formas de internação. 3 O tratamento jurídico-penal da pessoa com transtorno mental em face dos direitos humanos. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

O primeiro contato com os temas relacionados aos direitos humanos revela, de imediato, a sua amplitude. Esta pode ser resumida na conhecida expressão que afirma que “direitos humanos é o direito das pessoas em condição de vulnerabilidade”.

As pessoas nestas condições são as mais variadas e ostentam todo o tipo de vulnerabilidade, que lhes afligem os fatores econômicos, sociais, biológicos, familiares, históricos, entre tantos outros. Um conceito de pessoa em condição de vulnerabilidade pode ser visto no texto aprovado pela XIV Conferência Judicial Ibero-Americana, ocorrida em Brasília, que no ano de 2008 proclamou as 100 Regras de Acesso à Justiça:

(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, género, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de  justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.

(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o género e a privação de liberdade. 

A concreta determinação das pessoas em condição de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou inclusive do seu nível de desenvolvimento social e económico. [1]

É fato que essas vulnerabilidades afligem severamente a todos os seres humanos, mas como introdução ao tema cabe formular a seguintes pergunta: cabe a pergunta: há uma categoria de pessoas que pode ser considerada acentuadamente vulnerável, mais sujeita a violações, mais desprotegida? A resposta é afirmativa e não é difícil entender o motivo: quanto menos condição de se reconhecer como sujeito de direitos mais vulnerável é o ser humano.

É do autoreconhecimento como pessoa que advém sua capacidade de resistir à exclusão, à violência e a discriminação que lhe são impostas. Em um raciocínio amplo, empírico, pode-se reconhecer tal incapacidade, a priori, nas crianças mais jovens e no paciente com transtorno mental. As primeiras ainda gozam de uma rede de proteção moral, passando pelo instinto humano de preservação da espécie, do afeto dos demais familiares, dos vizinhos, da escola, da sociedade e mesmo do Estado. Na falha de um mecanismo há outro em potencial que pode atuar na defesa da criança.

No entanto, esta proteção é esvaziada quando se trata de uma pessoa com transtorno mental, e mais ainda quando esta pessoa entra em conflito com a lei, no caso, a lei penal.

É inegável que somos herdeiros de uma tradição segregatória e totalmente preconceituosa em relação à pessoa com transtorno mental. Nosso modelo estes seres humanos até os anos de 1970 podia ser resumido em uma única expressão: “trancar e jogar a chave fora”.

Tal como afirma Eric Rosenthal, expert internacional na matéria de direitos humanos das pessoas com deficiência mental, e perito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

As pessoas com deficiência mental estão sujeitas a discriminação e fortes estigmas, constituindo um grupo vulnerável a violações de direitos humanos a nível global. Quatro relatores das nações unidas constataram que as pessoas com deficiências mentais sofrem as mais perversas formas de discriminação, assim como difíceis condições de vida, se comparados a qualquer outro grupo vulnerável da sociedade. As práticas violatórias dos direitos de pessoas com deficiências mentais seguem padrões similares em todo o mundo. Essas pessoas são arbitraria e desnecessariamente segregadas da sociedade em instituições psiquiátricas, onde se encontram sujeitas a tratamento desumano e degradante ou a tortura.[2] (Sem destaques no original).

Mas uma situação como esta não pode e nunca poderá ser aceitável. Nos tempos atuais é notório o avanço da medicina em relação à primeira metade do século XX; a psicologia e a farmacologia também evoluíram e, sob o prisma jurídico, a dignidade humana se constitui em fundamento da Constituição Federal.

O presente trabalho tem como escopo analisar, brevemente, a mudança no paradigma de tratamento da pessoa com transtorno mental; as disposições humanitárias da Lei Federal n. 10.216/2001; o caráter arcaico da legislação penal voltada para estas pessoas e sua flagrante incompatibilidade com a Constituição e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que também é norma constitucional, pois incorporada ao ordenamento na forma do art. 5º, §3º da Constituição Federal.[3]

Pretende-se, por fim, demonstrar a urgência da aplicação da Lei Federal n. 10.216/2001 em relação àqueles submetidos à medida de segurança, bem como indicar a mudança de pensamento que vem ocorrendo entre os operadores do direito em relação ao tratamento a ser dispensado para a pessoa com transtorno mental em conflito com a lei.


1. A LUTA ANTIMANICOMIAL E O ADVENTO DA LEI FEDERAL N. 10.216/2001

A luta antimanicomial pode ser definida como a busca incessante pela melhoria das condições de tratamento da pessoa com transtorno mental, no Brasil e no mundo. É travada há longa data, e pode-se dizer, sem medo de errar, que estamos muito distantes de vencê-la.

Nos dias atuais é consenso geral a necessidade de combate ao modelo segregatório e desumanizante das chamadas instituições totais e suas características asilares, que longe, muito longe de recuperar, apenas agravam a situação do ser humano ali submetido a tratamento.

A edição da lei 10.216 no ano de 2001[4] trouxe avanços no campo das políticas públicas, mas o Brasil ainda é herdeiro de um sistema de saúde mental impregnado da cultura de desrespeito aos direitos humanos dos pacientes.

Em um breve apanhado histórico que nos ajuda a compreender a extensão do problema, pode-se dizer que a história da saúde mental no Brasil revela que a preocupação com o tratamento dos doentes mentais remonta à chegada família real portuguesa no Brasil, nos idos de 1808.

Até esta época os doentes vagavam pelas ruas da capital do reino, quando então, por ordem real passaram a ser tratados na Santa Casa de Misericórdia ou mesmo nas prisões. Em 1852 é inaugurado no Rio de Janeiro o Hospício D. Pedro II, primeiro estabelecimento para abrigar doentes mentais. No período entre o final do século XIX e o início do XX, a medicina veria o avanço do pensamento pseudocientífico de caráter notadamente eugenista, racista e preconceituoso em relação ao paciente com transtorno mental.

Com o avanço do século XX o cenário não melhora e ganham amplitude as práticas dos choques elétricos indiscriminados, das barbáries das cirurgias de leucotomia (lobotomia), a ascensão dos tratamentos com medicamentos neurolépticos como a panaceia, que depois não se concretizou plenamente, visto que a “loucura” não é um fenômeno relacionado exclusivamente à química cerebral.[5]

Encerrando este breve panorama histórico, pode-se dizer que na redemocratização do Brasil do início da década 1980, um novo modelo de tratamento começa a ser discutido e defendido perante a sociedade. O movimento antimanicomial é proveniente de congressos, simpósios, realizados desde os anos setenta, com abordagem notadamente multidisciplinar e plural, que foi convergindo e se unificando em uma agenda comum em relação à atenção à saúde mental. Como explicam Carlos Frederico Alves:

O movimento nomeado de Luta Antimanicomial tem na superação do Manicômio, não apenas em sua estrutura física, mas, sobretudo, ideológica, seu grande objetivo. Busca-se a desconstrução da lógica manicomial como sinônimo de exclusão e violência institucional, bem como a criação de um novo lugar social para a loucura, dando ao portador de transtorno psíquico a possibilidade do exercício de sua cidadania. Neste sentido, a reinserção social passa a ser o principal objetivo da Reforma Psiquiátrica, tendo em vista potencializar a rede de relações do sujeito, através do resgate da noção de complexidade do fenômeno humano e reafirmação da capacidade de contratualidade do sujeito, criando assim um ambiente favorável para que aquele que sofre psiquicamente possa ter o suporte necessário para reinscrever-se no mundo como ator social.[6] (Sem destaques no original).

Paulo Duarte de Carvalho Amarante e de Walter Ferreira de Oliveira, explicando o núcleo essencial das ideias do movimento:

A luta antimanicomial definia o movimento pela saúde mental como um processo cultural no qual a produção social da qualidade da vida não corresponde a um território exclusivo de tecnocracias, mas a um campo aberto aos cidadãos; a idéia central de que as pessoas com transtorno mental integram o coletivo da cidade se estabelece então como parâmetro de inclusão, essencial a todo e qualquer projeto terapêutico. Nessa concepção, um sistema terapêutico deve ser um centro organizador de pessoas, saberes e práticas que visam à qualidade de vida do coletivo comunitário, a partir do ponto de vista daqueles que são usuários do sistema, seus sujeitos primordiais, e na perspectiva de uma ação contínua, crítica e transformadora das realidades pessoais, sociais e institucionais.[7] (Sem destaques no original)

Como dito, este movimento propiciou a aprovação da Lei n. 10.216/2001, que gerou uma importante mudança nas políticas públicas, conforme se verá adiante. O ícone da necessidade extrema de mudanças pode ser apontado no caso conhecido internacionalmente como Damião Ximenes Lopes, que resultou na primeira condenação do Brasil por uma Corte Internacional de Direitos Humanos.

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Como modo de chamar a atenção para o problema, faz-se um breve relato dos fatos, extraídos da sentença condenatória[8], especialmente quanto ao tratamento recebido pelo paciente:

Em 4 de outubro de 1999 a mãe da vítima chegou para visitá-lo e o encontrou sangrando, com hematomas, a roupa rasgada, sujo e cheirando a excremento, com as mãos amarradas para trás. Estava com dificuldade para respirar, agonizante, gritando e pedindo socorro à polícia. Damião continuava submetido à contenção física a ele aplicada desde a noite anterior. Apresentava escoriações e feridas e foi deitado num colchonete no chão. Sua mãe então solicitou aos funcionários da Casa de Repouso Guararapes que procurassem um médico que o atendesse. O Diretor Clínico e médico da Casa de Repouso, que, sem realizar exames físicos em Damião Ximenes Lopes, receitou-lhe alguns remédios e em seguida se retirou dali, sem que nenhum médico ficasse a cargo da instituição dali em diante.

Por volta das onze e trinta da manhã Damião faleceu, aproximadamente duas horas depois de haver sido medicado pelo Diretor Clínico do hospital, sem ser assistido por médico algum no momento de sua morte, “em virtude da falta de cuidados, à mercê de todo tipo de agressão e acidentes que poderiam colocar em risco sua vida”.[9]

O que resultou na condenação não foi apenas um caso isolado, mesmo porque a Corte privilegia em seus julgamentos os casos de maior repercussão e amplitude. O mais grave é a constatação de fatos como estes ocorreram com frequência espantosa, a ponto de beirar o senso comum.  Uma rápida consulta na literatura sobre o tema revela esta triste realidade[10].

O que vitimou Damião Ximenes não foi apenas a violência, a covardia e o descaso daqueles que o deveriam proteger, mas um sistema truculento, que no interior dos muros das instituições totais e longe dos olhos de uma sociedade desinteressada, transforma seres humanos em “coisa”. E diga-se “coisa”, pois a nenhum ser vivo se cogita dispensar um tratamento como o abaixo descrito:

112.56. Na Casa de Repouso Guararapes havia um contexto de violência, agressões e maus-tratos, em que diversos internos freqüentemente apresentavam lesões nos membros superiores e inferiores, causadas pelos empregados do hospital; os auxiliares de enfermagem e vigilância utilizavam pacientes para conter outros; aplicavam a “gravata” (manobra que implica possibilidade de asfixia) em alguns pacientes, os quais pensavam que essa prática “era a lei” ou que era “para manter a ordem”; determinavam a contenção física de forma indiscriminada, independentemente de este procedimento ter ou não sido indicado pelo médico responsável, e incentivavam enfrentamentos físicos entre os pacientes.

112.57. As condições de confinamento na Casa de Repouso Guararapes eram desumanas e degradantes, a atenção médica aos pacientes era freqüentemente prestada na recepção, inclusive em presença de visitantes, já que por muito tempo o hospital não dispôs de um consultório médico, e freqüentemente faltava a medicação adequada aos pacientes. O hospital não oferecia as condições necessárias e era incompatível com o exercício ético-profissional da medicina.

112.58. No contexto de violência contra os pacientes, e anteriormente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes, ocorreram na Casa de Repouso Guararapes pelo menos duas mortes em circunstâncias violentas, que teriam incluído golpes na cabeça com objetos contundentes e em que os pacientes ingressavam na Casa de Repouso em boas condições físicas e faleciam durante o período de internação.[11] (Sem destaques no original).

A pergunta é inevitável: quantas instituições semelhantes existiram ou ainda existem no Brasil? A pergunta é incômoda, mas não pode ficar sem resposta.

Do ponto de vista médico, a reforma psiquiátrica veio para superar o paradigma de que a internação do “louco” é um ato terapêutico na busca da “cura” para a loucura, e que possui duplo efeito: proteger a sociedade do “louco” e proteger o “louco” dos graves problemas que sua doença pode ocasionar pela perda da noção de realidade, autoviolências e suicídios.

Paulo Jacobina explica que a convivência médico e paciente aos poucos foi revelando que esta abordagem terapêutica era, em verdade, insuficiente e que a internação apenas cronifica a doença:

O mandato social dado ao psiquiatra, para considerá-lo como tutor universal do louco e, principalmente, como escudo protetor entre a sociedade e a loucura (e entre o louco e sua própria loucura), foi insuficiente para trazer a cura – objetivo mítico de restabelecer um padrão de normalidade capaz de eliminar a periculosidade do psicótico. O que se viu e se vê, na prática, é o agravamento da condição psicótica e a perda da possibilidade de retorno social ao louco que penetra nesse sistema.[12]

Sob o ponto de vista legal, a mudança de paradigma no tratamento psiquiátrico, ocorreu com a edição da lei n. 10.216/2001, que ainda está pendente de implementação plena, visto que a mentalidade segregadora e estigmatizante ainda impera em nossa sociedade, inegavelmente em relação à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei.

A Lei Federal n. 10.216/2001 foi publicada no Diário Oficial da União em nove de abril de 2001, tendo ingressado no ordenamento com o objetivo de regular “a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.”

Do texto legal sobressaem seus dois objetivos principais: proteger direitos e redirecionar o modelo de assistência aos pacientes com transtorno mental.

Os temas por ela tratados estabelecem os direitos de todas as pessoas que padecem de transtorno mental; a responsabilidade estatal pela implementação das políticas públicas de saúde mental e assistência, sempre prestadas com a participação da família e da sociedade; as formas de ingresso e as regras de permanência dos pacientes nas instituições psiquiátricas. No próximo capítulo, passa-se a análise destas disposições, especialmente à luz da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.


2 DOS DIREITOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNO MENTAL

Como toda lei que visa proteger direitos[13], seu artigo primeiro faz uma exortação do direito ao tratamento isonômico de todos os tutelados, vedando qualquer forma de discriminação baseada em raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno mental.

Na sequência, a lei fixa, em rol exemplificativo, os direitos dos pacientes com transtorno mental. Interessante notar que no momento da internação é obrigatória a ciência de tais direitos aos pacientes e seus familiares ou responsáveis, o que deve ser feito de modo formal, ou seja, em documento escrito.

De certa forma, a lista dos direitos destes pacientes remete a direitos já tutelados pela ordem constitucional, tais como receber tratamento digno e humano; ter acesso aos recursos da saúde pública adequados à suas necessidades; sigilo sobre suas informações médicas (prontuários); proteção contra qualquer forma de abuso enquanto pessoa vulnerável; livre acesso aos meios de comunicação como forma de evitar o isolamento do paciente; além de direitos peculiares a condição de paciente tais como o direito a presença médica permanente para esclarecer sobre a necessidade de internação; o direito de receber todas as informações sobre sua doença; de ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Outro grande destaque da lei, fruto da longa luta antimanicomial, consta do seu artigo quarto, que por indispensável se transcreve abaixo:

Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º. (Sem destaques no original)

Do excerto acima se extrai que a internação do paciente com transtorno mental é, de fato, um recurso extremo, e que mesmo segregatório não pode deixar de visar a sua reinserção social. E mais, a lei indica que o mínimo que o Estado deve oferecer aos pacientes internados é um rol de serviços médicos, psicológicos, de assistência social, ocupacional, de lazer, assegurando o que a lei denomina de assistência integral.

Na implementação da política de atendimento a saúde mental em instituições não asilares, o Ministério da Saúde editou a Portaria n.º 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002, que criou os chamados CAPS - Centros de Atenção Psicossocial, com a finalidade de fornecer serviços ambulatoriais de atenção diária. E mais, que tais centros devem estar capacitados para o acompanhamento dos pacientes de forma intensiva, semi-intensiva e não-intensiva, dentro de limites quantitativos mensais que serão fixados em ato normativo da Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde.

No art. 5º, § único a Portaria define as formas de atendimento levando em conta o estado clínico do paciente e frequência com a qual necessita de atendimento ambulatorial, sendo que nos casos de cuidados intensivos o atendimento deve ser diário.

A criação do modelo CAPS foi a resposta governamental quanto ao modelo de atendimento à saúde mental, implementando a política antimanicomial. Ainda neste plano, a diretriz adotada[14] consiste na redução gradual dos leitos hospitalares acompanhada de alternativas de modelo comunitário, e a garantia de que os recursos financeiros que deixem progressivamente de ser utilizados nos hospitais para serem direcionados às ações territoriais e comunitárias de saúde mental, centros de atenção psicossocial, serviços residenciais terapêuticos, ambulatórios, atenção básica e outros.

Obviamente que tal redução não pode, em hipótese alguma, causar prejuízos aos pacientes em situação de grave dependência da instituição, fato este de assustadora frequência tanto nos hospitais psiquiátricos quanto nos hospitais de custódia e tratamento, que serão objeto de estudo posterior. A lei 10.216/2001 contém disposição expressa para proteger os direitos das pessoas em tais condições, conforme se vê abaixo transcrito:

Art. 5º O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário. (Sem destaques no original).

Em outras palavras, a lei protege aqueles que impedidos de cuidar de si próprios, em razão do estado clínico que demanda cuidados intensivos, ou por incapacidade cognitiva irreversível, ou ainda pelo fato de terem perdido os vínculos familiares em razão do tempo de internação.

O enfraquecimento ou perda dos vínculos sociais e familiares é, de fato, uma das graves consequências dos longos internamentos em hospitais psiquiátricos asilares, é justamente o oposto do que almeja a lei e, sem sombra de dúvidas, o resultado mais perverso e negador dos direitos humanos de um paciente com transtorno mental.

Não há definição legal para o que seja estabelecimento asilar, a lei se refere de modo negativo, ou seja, asilar é o lugar em que não se respeitam os direitos dos pacientes e nos quais estão presentes os recursos citados no parágrafo anterior.

Emprestando a visão sociológica de Erving Goffman, pode se dizer que o estabelecimento asilar, chamado pelo autor de instituição total, é “um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam a uma vida fechada e formalmente administrada.”[15]

Sobre o isolamento dos internos o autor comenta:

Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse dos seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes instituições da nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são muito mais “fechadas” que outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira com relação ao mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arames farpados, fossos, água, florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais, e desejo explorar suas características gerais.[16]

Quando se olha para o tratamento que o Brasil dispensa aos seus pacientes da saúde mental podem ser usadas definições mais contundentes para um estabelecimento “asilar”. Sem meias palavras, pode-se dizer asilar é o local em que se trancam seres humanos para que sejam esquecidos e para que eles mesmos se esqueçam da sua condição humana.

O fato, é que a lei n. 10.216/2001 representou um extraordinário avanço no sentido de garantir os direitos humanos dos pacientes, adotando um modelo que ao menos na teoria, possui instrumentos mínimos para evitar a segregação dos pacientes em estabelecimentos asilares. Mas a implementação destes instrumentos e a mudança da mentalidade discriminatória e segregatória não ocorrem com a mera edição de lei, o que certamente exigirá tempo e conscientização da sociedade e dos profissionais envolvidos.

2.1 Das formas de internação

Com muito acerto, a Lei Federal n. 10.216/2001 disciplina as formas e os procedimentos de ingresso e permanência dos pacientes.

Toda e qualquer internação em hospital psiquiátrico pressupõe a insuficiência de outros recursos terapêuticos (art. 4º) e não é por outro motivo que toda internação deve vir acompanhada de um “laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos” (art.6 º).

Por tal documento deve-se entender um laudo que indique os motivos de ordem comportamental, de ordem clínica, necessidade de medicação, a existência de perigo para a integridade física do paciente, entre outros. Trata-se de ato que importa a privação da liberdade do paciente, por isso exige a plena demonstração dos motivos e da necessidade da internação.

Caracterizada a necessidade de internação, três são as modalidades, que pela clara redação legal se transcreve abaixo:

Art. 6º. [...]

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Sobre a internação voluntária não há maiores repercussões jurídicas, visto que a todo tempo o paciente pode pedir sua alta, ou recebe-la do médico que lhe assiste. Na sua forma involuntária, por exemplo a pedido da família, exige-se que o Ministério Público seja comunicado em até setenta e duas horas e a alta ocorrerá, a pedido do familiar ou responsável legal e também pelo médico responsável pelo tratamento.

O fato de maior destaque para o presente trabalho consiste na previsão da internação compulsória, como internação “determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.” (art. 9º).

Adiante se demonstrará que não há justificativa plausível para a não aplicação da Lei Federal n. 10.216/2001 para os internos dos chamados HCTP - Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, previstos no art. 172 da Lei de Execuções Penais – Lei 7.210/1984.

Cabe aqui uma observação: a Portaria/GM nº 106 - De 11 de fevereiro de 2000, do Ministério da Saúde criou, para atender ao artigo quinto supra referido, os chamados SRT – Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental, assim entendidos como moradias inseridas na comunidade, destinadas a cuidar dos pacientes que não possuam suporte social e laços familiares que viabilizem sua inserção social.[17]

Os Serviços Residenciais objetivam constituir uma modalidade assistencial e substitutiva da internação psiquiátrica prolongada, pretendendo que, a cada transferência de paciente do hospital especializado para o Serviço de Residência Terapêutica seja reduzido ou descredenciado do SUS, igual número de leitos naquele hospital, com a realocação dos recursos orçamentários em prol do Estado ou Município que se responsabilizará pela rede substitutiva de cuidados em saúde mental.

Tal dispositivo pode e deve ser aplicado a todos os pacientes egressos de internações de longa permanência, inclusive daqueles que “habitam” em HCTP. Também visando a reabilitação social, a Lei Federal n. 10.708/2001, estabelece, em seu art. 1º, a instituição de “auxílio-reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, internados em hospitais ou unidades psiquiátricas”.  Porém, o valor do auxílio é de simbólicos R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais), sem reajuste desde a edição da lei no ano de 2001.

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Sobre o autor
Vitor Trigo Monteiro

Advogado em Curitiba (PR). Consultor jurídico em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-PR. Editor Assistente e Consultor Jurídico da Governet Editora, responsável pela publicação de Boletins Especializados em Direito Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Vitor Trigo. A adoção do modelo antimanicomial nas medidas de segurança: uma questão de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3498, 28 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23557. Acesso em: 4 nov. 2024.

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