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A adoção do modelo antimanicomial nas medidas de segurança: uma questão de direitos humanos

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28/01/2013 às 10:59
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3 O TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DA PESSOA COM TRANSTORNO MENTAL EM FACE DOS DIREITOS HUMANOS.

Antes de ingressar no tratamento penal da pessoa com transtorno mental é preciso reafirmar, mesmo se tratando de uma obviedade, que os direitos dos pacientes da saúde mental estão inquestionavelmente associados à proteção dos direitos humanos.

Além da Lei Federal n. 10.216/2001 já referida, no ano de 2007, o Brasil firmou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi aprovada pelo Congresso Nacional[18] na forma do art. 5º §3º da Constituição Federal:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Sem destaques no original).

O status de emenda constitucional por si só já deveria ser suficiente para modificar a abordagem penal da matéria do paciente com transtorno mental, o que, todavia, não ocorreu.

A Convenção de Nova Iorque destaca em seu Preâmbulo que a deficiência é um conceito em evolução e que é necessária interação entre pessoas com deficiência e superação das barreiras das atitudes e do ambiente, barreiras estas impedidoras da plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade (letra “e”); que mesmo com diversos instrumentos e compromissos, as pessoas com deficiência continuam a enfrentar barreiras e violações de seus direitos humanos em todas as partes do mundo (letra “k”); e que as pessoas com deficiência e seus familiares devem receber a proteção e a assistência necessárias para tornar as famílias capazes de contribuir para o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência (letra ”x”).

Para que não restem dúvidas sobre a aplicação da Convenção aos pacientes com transtorno mental, destaca-se o art. 1º: “são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. [19]

Segundo Eric Rosenthal, a Convenção Interamericana sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência é o primeiro instrumento internacional de direitos humanos especificamente dedicado a pessoas portadoras de deficiência e representa um inestimável compromisso dos Estados Americanos para assegurar que estas pessoas gozem dos mesmos direitos que os demais cidadãos. Afirma o perito que os princípios estabelecidos são as normas mais abrangentes de direitos humanos com relação à assistência para o tratamento de doenças mentais. Esses princípios são particularmente úteis como guia para a interpretação dos direitos dispostos nos tratados de direitos humanos.[20]

Feitos tais esclarecimentos, passamos a análise do tratamento jurídico-penal do paciente com transtorno mental em conflito com a lei.

A lei penal brasileira (Código Penal, art. 26) considera inimputável todo aquele que: “por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

A inimputabilidade pode ser total ou parcial. No primeiro caso torna o agente isento de pena, mas o sujeita a outra modalidade de sanção penal: a chamada medida de segurança. Se a função da pena em sentido amplo é retributiva e de prevenção geral, nas medidas de segurança, diversamente, o objetivo buscado é reduzir a periculosidade do agente, incapaz de entender a ilicitude dos atos que comete.

As espécies de medidas de segurança estão contidas no art. 96 e são divididas em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e sujeição a tratamento ambulatorial. O art. 97 apresenta uma estranha correlação, prevendo a internação para os crimes punidos com reclusão, cumpridos em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, e o tratamento ambulatorial para crimes punidos com detenção.

A duração da medida de segurança já não corresponde ao prazo indeterminado do art. 97, §1º, mas, de acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal corresponderá a:

HABEAS CORPUS. MEDIDA DE SEGURANÇA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. DESINTERNAÇÃO PROGRESSIVA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

1. As medidas de segurança se submetem ao regime ordinariamente normado da prescrição penal. Prescrição a ser calculada com base na pena máxima cominada ao tipo penal debitado ao agente (no caso da prescrição da pretensão punitiva) ou com base na duração máxima da medida de segurança, trinta anos (no caso da prescrição da pretensão executória). Prazos prescricionais, esses, aos quais se aplicam, por lógico, os termos iniciais e marcos interruptivos e suspensivos dispostos no Código Penal.

[...]

(HC 107777, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, publicado em 16-04-2012) (Sem destaques no original).

Como dito, o objetivo da medida é “fazer cessar” a periculosidade, logo, desinternação sempre dependerá da constatação desta condição por perícia médica.

O famigerado art. 175 da Lei de Execuções Penais - Lei n. 7.210/1984, prevê os requisitos e a periodicidade mínima deste exame, sendo importante salientar que este pode ocorrer a qualquer momento, seja a pedido do Ministério Público ou do interessado e seu defensor, não devendo ultrapassar o período mínimo de um ano (art. 176). Apresentado o laudo, o juiz decide a cessação da periculosidade. O procedimento detalhado da execução das medidas de segurança é descrito no art. 751 e seguintes do Código de Processo Penal.

O tratamento da lei penal à pessoa com transtorno mental é, sem sombra de dúvidas, absolutamente incompatível todo o regramento constitucional e infraconstitucional da matéria. O exame de periculosidade referido pela lei é quase sempre ineficaz, pois na prática, é desprovido de um acompanhamento do apenado e acima de tudo porque o paciente em internação permanece totalmente isolado do meio social e familiar. Fica a pergunta: como pode a internação socializar tendo como regra o isolamento do indivíduo que, repita-se, não tem capacidade de entendimento?

O Conselho Federal de Psicologia já demonstrou sensibilidade com o problema da indicação do prognóstico de cometimento de novo delito por parte dos internados em HCTP, editando a Resolução CFP Nº 09/2010, que regulamenta a atuação do psicólogo no sistema prisional. Tal norma determina que o psicólogo deverá atuar na promoção de saúde mental tendo como referência fundamental a Lei n° 10.216/2001, visando a favorecer a criação ou o fortalecimento dos laços sociais e comunitários e a atenção integral.[21]

Por fim, impossível não fazer referência aos “direitos do internado”, de que trata o art. 99 do Código Penal: “O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento.” Em outras palavras, seu direito é ser internado e submetido a tratamento!

A leitura do art. 99 em comparação com o tratamento dispensado pela lei 10.216/2001 aos pacientes com transtorno mental revela o abismo que separa aquele está ou não em “conflito com a lei”. Em termos jurídicos, sendo ambos cidadãos com transtornos mentais, que não têm discernimento sobre seus atos, o tratamento legal afronta claramente o princípio constitucional da isonomia.

É clamoroso que os artigos 96 e seguintes do Código Penal são incompatíveis com nova lei da saúde mental. Como pode o ordenamento jurídico, que almeja coesão e unidade, dispensar tratamentos tão díspares para pessoas que, no fim das contas, não tem a capacidade de se autodeterminar?

Paulo Vasconcelos Jacobina explica com toda a propriedade que:

Assim, o fato de a Lei da Reforma Psiquiátrica não expressar a revogação dos dispositivos incompatíveis no Código Penal e na Lei de Execução Penal não significa que esses dispositivos não tenham sido revogados. Citem-se, como exemplos, os §§ 1º e 2º do art. 97, com seus prazos mínimos obrigatórios para a realização e repetição de regimes (com seus correlatos arts. 175 a 179 da Lei de Execução Penal), incompatíveis com o princípio da utilidade terapêutica do internamento, previsto no art. 4º, § 1º, da Lei da Reforma Psiquiátrica, ou com o princípio da desinternação progressiva dos pacientes cronificados (art. 5º da Lei da Reforma Psiquiátrica). Além disso, os direitos mínimos garantidos na Lei de Execução Penal àquele que cumpre medida de segurança (art. 99, parágrafo único, da Lei de Execução Penal) confrontam-se com aqueles, muito mais amplos, assegurados no art. 2º da Lei da Reforma Psiquiátrica, e a classificação do hospital de custódia e tratamento psiquiátrico como estabelecimento penal (Título IV, Capítulo VI, da Lei de Execução Penal) está em desacordo com os princípios do SUS, constitucionais e infraconstitucionais.[22]

A Convenção de Nova Iorque Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência proclama (repita-se: com status de emenda constitucional) que:

Artigo 17. Toda pessoa com deficiência tem o direito a que sua integridade física e mental seja respeitada, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Artigo 19. Os Estados Partes desta Convenção reconhecem o igual direito de todas as pessoas com deficiência de viver na comunidade, com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas, e tomarão medidas efetivas e apropriadas para facilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo desse direito e sua plena inclusão e participação na comunidade, inclusive assegurando que:[...] (Sem destaques no original). [23]

Mas há outra grave contradição no que toca ao internamento em HCTP. Paradoxalmente, o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico não é regido pelos princípios constitucionais do direito à saúde e nem está inserido no Sistema Único de Saúde[24]. Sua estrutura é inteiramente regulada pela Lei n. 7.210/1984, ou seja, é integrante do Departamento Penitenciário Estadual. Sobre o fato Paulo Jacobina comenta:

Não é fácil entender como um penalista e um constitucionalista poderiam harmonizar essa contradição principiológica. Afinal, hospital público e instituição penitenciária são instituições regidas por princípios absurdamente diversos e incongruentes entre si. Portanto, não há como defender que a medida de segurança tem natureza sanitária e não-punitiva, sem evidenciar a contradição de um hospital submetido ao sistema penitenciário e não ao Sistema Único de Saúde.

Evidenciada está a contradição entre as normas penais que regem a medida de segurança (e sua aplicação) e as regras constitucionais de garantia penal. É preciso, porém, verificar a adequação da legislação sanitária de reforma psiquiátrica aos mesmos princípios em dois planos: 1) a sua compatibilidade com a Constituição e 2) a sua integração com o restante do ordenamento infraconstitucional.[25] (Sem destaques no original).

E mais, se o transtorno mental é doença, por que razão o tempo de internação depende do fato praticado ser punido com reclusão, se este é um critério que se destina a definir o regime inicial de cumprimento da pena? (Código Penal, art. 33). Será que o tratamento mediante “reclusão” em um “hospital” pode ser considerado minimamente compatível com o art. 25 da Convenção?:

Artigo 25 . Os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabilitação, que levarão em conta as especificidades de gênero. (Sem destaques no original).

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No campo doutrinário, Guilherme de Souza Nucci assevera:

7. Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico : diz a lei ser obrigatória a internação do inimputável que pratica fatos típicos e antijurídicos punidos com reclusão. Entretanto, esse preceito é nitidamente injusto, pois padroniza a aplicação da sanção penal e não resolve o drama de muitos doentes mentais que poderiam ter suas internações evitadas. Imagine-se o inimputável que cometa uma tentativa de homicídio, com lesões leves para a vítima. Se possuir família que o abrigue e ampare, fornecendo-lhe todo o suporte para a recuperação, por que interná-lo? Seria mais propícia a aplicação do tratamento ambulatorial. Melhor, nesse sentido, a Lei de Tóxicos, prevendo a internação somente quando o caso concreto o exigir."[26]. (Sem destaques no original).

A resposta à pergunta acima é obviamente negativa, mas é salutar frisar que, felizmente, algumas das mais respeitadas instituições do Estado Democrático de Direito já se deram conta desta gravíssima distorção legislativa.

No âmbito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo foi aprovada a Tese Institucional n. 10, vinculante aos defensores, que pleiteia a revogação das medidas de segurança: “A Lei nº 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica no Brasil, derrogou a parte geral do Código Penal e da Lei de Execuções Penais no que diz respeito à medida de segurança.”

O fundamento indicado pela Defensoria é que a lei 10.216/2001 não fez qualquer restrição à aplicação de seus dispositivos (direitos), que se estendem a qualquer indivíduo que padeça de sofrimento mental. Ademais, a internação compulsória substitui plenamente a medida de segurança e deve ser aplicada apenas em caso de surto e enquanto permanecer a indicação médica para tanto.[27]

Até mesmo o Ministério Público Federal, titular da ação penal, emitiu em junho de 2011, Parecer defendendo a adequação entre a legislação penal e a lei 10.216/2001:

k) Atuação no sentido de que, após a Lei n. 10.216/2001, somente a necessidade terapêutica, devidamente demonstrada por meio de avaliação da equipe interdisciplinar, pode determinar uma internação, em caráter excepcional, cabendo aos demais serviços da rede de saúde mental previstos na legislação em saúde mental promover, no SUS, o tratamento das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei.

l) Extinção dos HCTPs e a não construção de instituições similares que os substituam, tanto nos estados que já possuem desses dispositivos, quanto nos estados que não tem HCTPs. 

m) A revisão da legislação codificada penal e processual penal e da LEP, para adequá-las à Lei n. 10.216/2001, no que concerne à medida de segurança. Especial atenção deverá ser dada à problemática da presunção de periculosidade da pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, pois além de discriminatória em relação ao indivíduo ‘normal’, imputável encontra-se superada pela mudança de paradigma, no campo clínico, da periculosidade para o de risco de violência.

n) Interpretação da legislação penal à luz da lei n. 10.216/2001, enquanto sua reformulação não for concluída.[28] (Sem destaques no original).

Inobstante todos os entendimentos, quando se trata de medida de segurança a lei 10.216/2001 é observada minoritariamente pelo Poder Judiciário, conforme se verifica na decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª, abaixo transcrita:

EMENTA: PENAL. INIMPUTABILIDADE DO RÉU NA ÉPOCA DOS FATOS. MEDIDA DE SEGURANÇA. TRATAMENTO AMBULATORIAL EM ESTABELECIMENTOS DE SAÚDE MENTAL PREVISTOS NA LEI Nº 10.216/01, COM ACOMPANHAMENTO DE MÉDICO DA CONFIANÇA DO PACIENTE. DIREITOS ASSEGURADOS AO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL. - Aplicada medida de segurança de tratamento ambulatorial a réu inimputável na época dos fatos, tem este, portador de transtorno mental, nos termos da Lei nº 10.216/01, dentre outros, direito de ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo com as suas necessidades; ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis, e, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental, a fim de que possa ser reinserido socialmente em seu meio. Dessarte, ao invés da internação em Instituto Psiquiátrico Forense, fica o paciente obrigado a tratamento ambulatorial nos estabelecimentos de saúde mental previstos na Lei nº 10.216/01, restando facultada a orientação e o acompanhamento do tratamento por médico de confiança pessoal do internado, nos termos do art. 43 da LEP. (TRF4, ACR 2001.71.00.000774-0, Oitava Turma, Relator Paulo Afonso Brum Vaz, DJ 19/11/2003).

Como modo de reforçar que a Lei 10.216/2001 traz regras inafastáveis e que seu ingresso no sistema jurídico precisa ser concluído, cita-se o fato de que a Lei n. 12.594/2012, que trata da execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional, faz expressa menção à aplicação daquela norma, em seu art. 64, abaixo transcrito:

Art 64.  O adolescente em cumprimento de medida socioeducativa que apresente indícios de transtorno mental, de deficiência mental, ou associadas, deverá ser avaliado por equipe técnica multidisciplinar e multissetorial. [...]

§ 7º O tratamento a que se submeterá o adolescente deverá observar o previsto na Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. [29]

Também o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária já editou norma neste sentido, conforme a Resolução n. 4, de 30 de julho de 2010 do, que dispõe sobre as Diretrizes Nacionais de Atenção aos Pacientes Judiciários e Execução da Medida de Segurança:

Art. 1º O CNPCP, como órgão responsável pelo aprimoramento da política criminal, recomenda a adoção da política antimanicomial no que tange à atenção aos pacientes judiciários e à execução da medida de segurança.

§ 1º Devem ser observados na execução da medida de segurança os princípios estabelecidos pela Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial de tratamento e cuidado em saúde mental que deve acontecer de modo antimanicomial, em serviços substitutivos em meio aberto;

§ 2º Devem ser também respeitadas as seguintes orientações:

I - Intersetorialidade como forma de abordagem, buscando o diálogo e a parceria entre as diversas políticas públicas e a sociedade civil e criando espaços e processos integradores de saberes e poderes;

II - Acompanhamento psicossocial contínuo, realizado pela equipe interdisciplinar que secretaria o transcurso do processo e oferece os recursos necessários para a promoção do tratamento em saúde mental e invenção do laço social possível compartilhando os espaços da cidade, bem como realiza a coleta de subsídios que auxiliem na adequação da medida judicial às condições singulares de tratamento e inserção social;

III - Individualização da medida, respeitando as singularidades psíquicas, sociais e biológicas do sujeito, bem como as circunstâncias do delito;

IV - Inserção social, que promove a acessibilidade do sujeito aos seus direitos fundamentais gerais e sociais, bem como a sua circulação na sociedade, colocando-o de modo responsável para com o mundo público;

V - Fortalecimento das habilidades e capacidades do sujeito em responder pelo que faz ou deixa de fazer por meio do laço social, através da oferta de recursos simbólicos que viabilizem a ressignificação de sua história, produção de sentido e novas respostas na sua relação com o outro;

De grande importância é a postura do Conselho Nacional de Justiça, que editou a Recomendação n. 35, em 14 de julho de 2011, que dispõe sobre as diretrizes a serem adotadas em atenção aos pacientes judiciários e a execução da medida de segurança, cuja importância se transcreve integralmente:

RESOLVE RECOMENDAR aos Tribunais que:

I – na execução da medida de segurança, adotem a política antimanicomial, sempre que possível, em meio aberto;

II – a política antimanicomial possua como diretrizes as seguintes orientações:

a) mobilização dos diversos segmentos sociais, compartilhamentos de responsabilidades, estabelecimento de estratégias humanizadoras que possibilitem a efetividade do tratamento da saúde mental e infundam o respeito aos direitos fundamentais e sociais das pessoas sujeitas às medidas de segurança;

b) diálogo e parcerias com a sociedade civil e as políticas públicas já existentes, a fim de buscar a intersetorialidade necessária;

c) criação de um núcleo interdisciplinar, para auxiliar o juiz nos casos que envolvam sofrimento mental;

d) acompanhamento psicossocial, por meio de equipe interdisciplinar, durante o tempo necessário ao tratamento, de modo contínuo;

e) permissão, sempre que possível, para que o tratamento ocorra sem que o paciente se afaste do meio social em que vive, visando sempre à manutenção dos laços familiares;

f) adoção de medida adequada às circunstâncias do fato praticado, de modo a respeitar as singularidades sociais e biológicas do paciente judiciário;

g) promoção da reinserção social das pessoas que estiverem sob tratamento em hospital de custódia, de modo a fortalecer suas habilidades e possibilitar novas respostas na sua relação com o outro, para buscar a efetivação das políticas públicas pertinentes à espécie, principalmente quando estiver caracterizada situação de grave dependência institucional, consoante o art. 5º da Lei n. 10.216/2001;

h) manutenção permanente de contato com a rede pública de saúde, com vistas a motiva a elaboração de um projeto de integral atenção aos submetidos às medidas de segurança;

i) realização de perícias por equipe interdisciplinar.

III – em caso de internação, ela deve ocorrer na rede de saúde pública ou conveniada, com acompanhamento do programa especializado de atenção ao paciente judiciário, com observância das orientações previstas nesta recomendação.[30] (Sem destaques no original).

A postura atuante do CNJ merece todos os aplausos, pois tem sido decisiva para obrigar o Estado a dispensar um tratamento humanizante aos pacientes dos HCTP. Graças a sua atuação tem sido descobertas situações como a de Joacir Alves da Cruz:

Joacir Alves da Cruz tinha apenas 21 anos quando foi internado no Complexo Médico de Pinhais, em Curitiba – único local do estado do Paraná que abriga presos com problemas mentais. Há duas semanas, prestes a completar 57 anos, Joacir conseguiu sua liberdade após seu caso ter sido revisto durante uma inspeção do mutirão de medidas de segurança do Projeto Justiça no Bairro Carcerário. Foram 36 anos, 5 meses e 9 dias de cárcere por tentativa de homicídio e roubo. “Se tivesse sido condenado por esses crimes, ele teria pego no máximo 10 anos; o que ocorre é desumano; uma sentença eterna”, avalia o juiz Moacir Antônio Dala Costa, da II Vara de Execuções Penais de Curitiba, que pela segunda vez implementou o mutirão no hospital psiquiátrico de Pinhais, seguindo o exemplo dos mutirões de medidas de segurança iniciados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).[31] (Sem destaques no original).

A informação foi veiculada na página oficial do Conselho em 31 de setembro de 2012 e demonstra a necessidade extrema de se implantar o modelo antimanicomial. Segundo a notícia, no Complexo Médico Penal do Paraná, que abriga cerca de 400 pacientes com algum tipo de sofrimento mental, mais de 100 pacientes estavam presos de forma irregular:

Ocorrido nos dias 10 e 11 de maio, o mutirão descobriu outros casos de internação com tempo indevido. Dos 431 casos avaliados, 108 não precisavam continuar internados e foram encaminhados para outras instituições ou voltaram para casa. “Descobrimos 46 internos com alvará de soltura, um deles datava de 2005”, revelou o juiz. No mutirão, foram descobertos casos de internos cumprindo medida de segurança, há mais de 20 anos, por furto de barras de chocolate e invasão de domicílio. Foi o caso de Francisco Celestino, internado em maio de 1981 – na época com 23 anos. Na sentença que o trancafiou, o juiz afirmava que embora que não ficasse comprovado nenhum ilícito penal, aplicaria medida de segurança nele presumindo sua periculosidade.

“Ele ficou internado 31 anos sem ter praticado nenhum crime junto com matadores em série, psicopatas, estupradores. E os hospitais psiquiátricos se destinam a esses casos efetivamente perigosos, que representam de fato um risco à sociedade”, explicou o juiz da I VEP, Eduardo Lino Bueno Fagundes Junior, que também participou do mutirão.

A iniciativa começou a dar frutos com a realização de mutirão no estado do Maranhão[32] e com o Seminário “Saúde Mental e Lei: os Desafios para a Implantação da Lei 10.216/2001”, no mês de setembro na cidade do Rio de Janeiro, em que foi defendido pelos próprios integrantes do CNJ: “Apesar de já ter uma década de funcionamento, a verdade é que o Estado brasileiro não se articulou para cumprir aquelas diretrizes”, avalia o juiz, que também participará do Seminário.”[33]

A comparação das leis penais que regem o tratamento da pessoa com transtorno mental em face das normas nacionais e internacionais sobre direitos humanos mostra um abismo de contradições. A lei penal, ultrapassada pela evolução do Direito e da Medicina, resiste quase incólume à nova ordem garantista. Ordem esta que foi compreendida pelos órgãos de cúpula do Poder Judiciário e do Ministério Público, que vem tentando implementar.

Os mecanismos jurídico-legais estão postos sobre o ordenamento: a lei federal n.10.216/2001, Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; as normas do Ministério da Saúde para os serviços residenciais terapêuticos e os Centros de Atenção Psicossocial, além das resoluções do CNJ, CNPCP e do Conselho Federal de Psicologia. O que falta, apesar de tudo, é o consenso em torno de uma posição de que permita aplicar a todas as pessoas com transtorno mental um tratamento médico compatível com os a defesa dos direitos humanos, tenham elas cometidos fatos definidos como crimes ou não.

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Sobre o autor
Vitor Trigo Monteiro

Advogado em Curitiba (PR). Consultor jurídico em Direito Administrativo. Especialista em Direito Processual Civil. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-PR. Editor Assistente e Consultor Jurídico da Governet Editora, responsável pela publicação de Boletins Especializados em Direito Administrativo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Vitor Trigo. A adoção do modelo antimanicomial nas medidas de segurança: uma questão de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3498, 28 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23557. Acesso em: 22 nov. 2024.

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